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Em Janeiro deste ano, no meu artigo a propósito do referendo sobre a interrupção voluntária da gravidez (IVG), prometi voltar ainda este ano a outro assunto polémico, neste caso a eutanásia. Aqui estou a cumprir o prometido.
Penso que esta questão, embora de natureza semelhante à IVG, dado dizer respeito à inviolabilidade da vida humana, tem facilitada a sua reflexão e debate, na medida em que o protagonista central, ao contrário do feto, é habitualmente um indivíduo adulto, na maior parte dos casos, possuidor de discernimento e vontade própria. Portanto, paremos para pensar. Da discussão nascerá a luz.
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No dicionário: Eutanásia - (do grego EU, boa, e THANATOS, morte)
Significado na antiguidade clássica (Grécia e Roma): morte por piedade, morte suave, morte bela e honrosa.
Significado actual: eliminação sem dor de doentes incuráveis, dados como perdidos, apressando-lhes o fim. Habitualmente esta prática implica o consentimento dos familiares do doente, por aquele se encontrar no estado de vida vegetativa.
Outras condutas equiparáveis:
Suicídio assistido: Suicídio de um doente, assistido e auxiliado por uma segunda pessoa de sua confiança, por pedido expresso do primeiro.
Rejeição de excesso terapêutico: Renúncia de tratamentos paliativos, os quais apenas servem para adiar uma morte inevitável.
Conduta brutal: durante o III Reich (1933-1945), no quadro da eugenia, a eutanásia foi oficialmente legitimada e legalizada pelo regime nazi, para que pudessem ser metodicamente eliminados todos os doentes mentais, bem como outros indivíduos portadores de doenças degenerativas e deficiências físicas, que pudessem ameaçar, através dos seus eventuais descendentes, os critérios nacional-socialistas de pureza racial. O programa alemão de eutanásia, organizado pelo Professor Werner Heyde, e realizado com uma obstinação patológica, fez 200.000 vítimas alemãs, servindo de ensaio e modelo para outras formas de extermínio de estrangeiros e pessoas indesejáveis, nos campos de concentração. Foi a partir daí que a eutanásia passou a ser equiparada, a vários níveis, com outras práticas, tão indignas quanto monstruosas, logo classificada como crime.
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O facto de 80% dos médicos oncológicos portugueses estarem dispostos a recusarem a prática da eutanásia, tal como acontece com a interrupção da gravidez, não tem a ver com a bondade ou iniquidade da prática da eutanásia, mas sim com a objecção de consciência, determinada pelo juramento de Hipócrates e princípios éticos ou religiosos adoptados pelo médico.
Deste modo, a eutanásia não deve ser considerada uma medida boa ou má, pelo simples facto de haver ou não pessoas dispostas a consenti-la ou a levá-la a cabo.
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A inviolabilidade da vida humana tem a ver com o DEVER que obriga o ser humano a respeitar a vida do seu semelhante, enquanto bem alheio, mas não deve ser confundido com o DIREITO que assiste ao ser humano de dispor da sua própria vida, enquanto bem pessoal e intransmissível. Assim sendo, não deve ser confundido o direito à vida com o dever ou obrigação de viver.
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“Viver é um direito, não uma obrigação.”
Foram estas as palavras de Ramón Sanpedro, tetraplégico espanhol que esteve imobilizado numa cama durante 29 anos, e que conseguiu por termo à vida com a ajuda da sua companheira, em Janeiro de 1998. Travou durante 5 anos uma renhida batalha com os tribunais espanhóis, os quais sempre lhe negaram o pedido que havia formulado de ter direito ao suicídio assistido, pois considerava uma humilhante escravidão, a situação de estar lucidamente preso a um corpo morto.
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Sobretudo o suicídio assistido e a rejeição de excesso terapêutico não quebram o conceito de inviolabilidade do direito à vida, na medida em que resultam de decisões íntimas, maduramente ponderadas, não sendo o mero produto de mentes turvadas e distorcidas, como algumas pessoas pretendem fazer crer.
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O direito definiu a inviolabilidade da vida humana, não como um princípio absoluto, mas como um aspecto da condição humana. Há que reconhecer o direito de fazer cessar a própria vida, em pé de igualdade com o direito de continuar a viver essa mesma vida. A separar estes conceitos existe um grau de sensibilidade perante o sofrimento, um estado pessoal e intransmissível, que não é mensurável, mas que pode determinar o desejo ou não de continuar a viver. Embora opostos, viver ou não viver, são ambos direitos humanos, logo invioláveis.
Resumindo: há que moralizar, desmistificar e descriminalizar a prática da eutanásia. Ela deve ser encarada, não como uma “solução administrativa”, mas como uma solução natural. Deve ser interpretado como a decisão que de quem está impossibilitado de executar o gesto final, pelos seus próprios meios, e que recorre à mão amiga, para assegurar a dignidade do seu desejo final.
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Quanto às religiões e suas crenças, já sabemos o que pensam sobre o assunto: se Deus pode tirar a vida de forma arbitrária e caprichosa, tal sempre foi entendido e desculpabilizado como a vontade divina; se é um humano que pratica a eutanásia, tal acto é um pecado (quando não crime cível) que supõe, tanto para o agente activo como passivo, no mínimo, a pena de arderem no inferno até ao fim dos tempos,.
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Já fez um ano que Rafael Soares, no blog A TOUPEIRA, em 13 Dez 2006, disse o seguinte:
“A morte voluntária é mais dramática justamente por ser interdita. Não fora isso e talvez fosse menos dura de suportar pelos que ficam, pelos que esperam. Estou em crer que é assunto que deve ser mais amplamente debatido. Tem a ver, convenhamos, com os direitos humanos. O direito que cada um tem, ou devia ter, para escolher o momento de partir. O direito a uma morte suave e não punitiva. … Queria, isso sim, saber que podia resolver o desenlace duma vida, a minha, como e quando me aprouvesse. Como pode alguém pretender-se livre e autónomo se não dispõe de si próprio? …”
Subscrevo as suas palavras. Espero que a sociedade portuguesa faça a necessária e competente reflexão sobre o assunto. Por mim, estou disponível para dar o segundo passo.