A
… ou um conto às três pancadas
Talvez tivesse sido do cansaço, mas naquele dia de Setembro, mesmo com o despertador programado, o Vasco deixou-se dormir, e quando finalmente saltou da cama para ir para as aulas, o tempo já era escasso para um asseio a preceito. A barba, como de costume, é que pagou as favas. Tinha estado até às tantas da madrugada a preparar a dissertação sobre Newton e as leis da gravitação, e o descanso é que ficara a perder. Posta de lado a hipótese de um pequeno-almoço simulado, vestiu-se quase às cegas, depois pegou nos apontamentos do curso, meteu-os na pasta, desligou as luzes e saiu porta fora. Enquanto esperava pelo elevador sentiu o prédio estremecer ligeiramente.
– Olá, querem ver que vamos ter sismo! disse ele para os seus botões, a pensar que, mesmo sendo um acontecimento insignificante, apenas um susto, já tinha ali uma desculpa, assaz esfarrapada, para o atraso. A Terra, de vez em quando precisava de acomodar as suas entranhas, e isso acabava a reflectir-se na superfície da sua pele, e na vida quotidiana dos parasitas que a habitavam, com os incómodos que são conhecidos, que podem ir do simples sobressalto, até à demolição de cidades inteiras. Parou, olhou à volta e esperou meia dúzia de segundos, enquanto a vizinha do apartamento contíguo, a dona Sandra, corria espavorida pelas escadas abaixo, sem sequer gemer o tradicional “bom-dia”. As tremuras não voltaram. Por precaução, tal como a vizinha, desistiu do elevador e optou por descer as escadas, mas sem grandes correrias. Já na rua, instalou-se no velho Fiat a cair de podre, e fez-me ao caminho. O dia estava esquisito, ostentando uma luminosidade ambiente de cor âmbar com pinceladas de sépia (parecia um pergaminho envelhecido), tempo encoberto e demasiado abafado para aquela estação e para aquela hora da manhã. A meio da Avenida de Roma circulava-se a passo de caracol. Havia um acidente complicado, enquadrado por muitos mirones e gente a gesticular, qualquer coisa parecida com um invulgar choque em cadeia, coisa esquisita dado que aquela artéria não era propícia a grandes velocidades. No entroncamento da Avenida do Brasil com a Rio de Janeiro, enquanto esperava, no meio do tráfego que o semáforo voltasse ao verde, o chão voltou a tremer, só que agora de forma mais prolongada e acompanhado de um ruído cavo e surdo, oriundo das profundezas da terra, ao mesmo que tempo que o Vasco era ligeira e inexplicavelmente arremessado para cima, batendo com a cabeça no tejadilho, como se tivesse perdido o peso, ao mesmo tempo que o estafado Fiat, mesmo parado, se bamboleava estranhamente na sua decrépita e rangedora suspensão. As luzes dos semáforos tremeram, apagaram-se, voltaram a acender-se, tremeluziram e acabaram por se apagar em definitivo, iniciando-se o habitual concerto de buzinas. A fila de trânsito estava imobilizada e assim ficou. Lá à frente, gesticulando e dizendo coisas inaudíveis, os condutores começavam a sair dos carros, visivelmente amedrontados, e com ar inquiridor sondavam a fila que serpenteava a perder de vista. Começava a ficar instalada a confusão, e o atraso para as aulas começava agora a tornar-se escandaloso.
- Irá haver aulas? Interrogou-se ele falando para os seus botões, ao mesmo tempo que as tremuras do pavimento voltaram mais insistentes, e alguns carros que estavam imobilizados no engarrafamento, sabe-se lá devido a que força, começaram a chocar entre si, como se subitamente se tivessem transformado naqueles velhos brinquedos de meados do século passado, prensados em levíssima folha-de-flandres. Depois de uma manobra quase impossível aproveitou uma nesga desimpedida sobre o passeio e lá estacionou o carro. A universidade ficava a pouco mais de mil metros dali, alcançável numa corridinha esforçada, para aquela hora matinal, mas oportuna para quem tentava escapar à barafunda circundante. Trancou o carro e começou a correr. Em dada altura sentiu-se mais leve e o chão parecia fugir-lhe debaixo dos pés. Tropeçou meia dúzia de vezes, fintou contentores do lixo que andavam a rebolar e protegeu-se de veículos que pareciam carrinhos de choque desgovernados, umas vezes já sem condutor, outras vezes com pessoas ao volante, incrédulas, paralisadas e aterrorizadas.
Atingiu o campus universitário pelas 10h e 50m quando as primeiras pessoas, a gritarem e de olhos esbugalhados, começavam a deixar de ter os pés assentes na terra, e aquela, do chão até às copas das árvores, tremia como se tudo quisesse mudar de lugar. A partir daquele momento o atraso tinha perdido todo o significado. Mudo e assombrado com o que estava a acontecer, o Vasco sabia que as desculpas tinham perdido o sentido, e verdade, verdadinha, era que aquela lei que dizia que a força da gravidade depende da massa dos corpos e da distância entre eles, e que é proporcional ao inverso do quadrado desta distância, tinha começado a deixar de funcionar, e o mundo, talvez o próprio universo, estavam em vias de mudar de forma, talvez mudar de lugar ou de sentido, talvez a caminho da extinção, sem avisar nem pedir licença a ninguém, no meio de um grande caos e terror.
O Vasco, com um misto de pavor e desânimo a esgravatar-lhe as entranhas, achou-se a esbracejar junto às copas das árvores, agarrado à pasta que já aberta espalhava pelos ares os seus agora inúteis tópicos e apontamentos, misturando-se com bandos de passarada em pânico, um carrinho apagado de castanhas assadas, pedras, pedrinhas e pedregulhos em remoinho, a mochila de criança, cabines telefónicas, telhas, muitas telhas, toneladas de telhas, bicicletas, uma baliza de futebol, contentores de lixo, muito lixo, montanhas de lixo, na mais colossal demonstração de ausência de gravidade de que há memória. Se naquele momento, por qualquer razão, o seu efeito cessasse, seria pior a emenda que o soneto, porque ninguém tinha o costume de sair de casa de capacete e com um pára-quedas amarrado às costas, para o que desse e viesse. Ao mesmo tempo, entre a dúvida e a angústia continuava a dizer de si para si: - O raio da aula deve ter sido adiada de certeza absoluta! Para já, e sem avançar com grandes conjecturas ou explicações, aquele iria ser um dia diferente, talvez para recordar, talvez para esquecer.
Dois ou três minutos depois, já a uma altura considerável, talvez uns dois mil metros, deixou de se ver a superfície da terra, o traçado das ruas, a mancha do Campo Grande e a geometria da Cidade Universitária, tanto era o pó que rodopiava, à mistura com a mais extravagante amálgama de pessoas, objectos e detritos. Havia muita gente a espernear, desde vestidos a rigor, embora já muito amarrotados, até outros de pijama ou em nu integral, uns de cabeça para baixo, uma velhinha com o cão preso pela trela, um casal abraçado, outros a ensaiarem um estranho bailado ou uma espécie de tentativa de voo, expresso num misto de esbracejar e bater de asas, outros aos berros, muitos a urinarem-se, outros a vomitarem o pequeno almoço, outros paralisados, como que hipnotizados, com o terror estampado no rosto, quase todos a tentarem agarrar-se a qualquer coisa que passasse perto, nem que fosse o telhado do quiosque dos jornais, como se estivessem no alto mar, debatendo-se à procura de uma tábua de salvação. Como algum do seu sentido de humor se mantinha intacto, imaginou que para o cenário ficar composto, só estava mesmo a faltar ver passar ali por perto o primeiro-ministro, a prometer solenemente que ia baixar os impostos, a dar autógrafos aos graúdos e computadores aos miúdos, arrastando consigo, cinco ou seis guarda-costas, pendurados nas bainhas das suas calças e nas bandas do seu casaco.
Mesmo a propósito, veio-lhe à memória aquele romance do Douglas Adams, que estivera a ler a semana passada, mas até agora, e tal como acontecia no livro, antes da Terra ser riscada do sistema solar, não tinha aparecido pelas imediações, in extremis, qualquer espécie de nave alienígena para lhe dar uma boleia. Como é compreensível, naquela aflição, uma coisa dessas vinha mesmo a calhar!
Sempre a subir rumo às alturas, até à estratosfera rarefeita, e pensando que à falta de um fato de astronauta, ou algo melhor, seria bom ter por ali uma garrafa de oxigénio, achou por bem voltar a matutar no mau uso que tinha andado a fazer do seu tempo:
- E eu que perdi uma noite agarrado às leis de Newton, quando bastava ter dormido como um justo, para agora as ver comprovadas na prática! Este universo, descomunal e talvez imensurável, não respeita nada nem ninguém. Raios partam os buracos negros, as galáxias em colisão, o efeito doppler, as energias radiantes, os quasares e os pulsares, o Isaac Newton e as suas leis da atracção universal…
E foi então que o Vasco, a pairar no vazio, entre aquela dramática, singular e colossal desordem, tomou uma decisão radical: atirou fora a pasta vazia, as chaves do carro, adoptou a posição fetal, pousou a cabeça sobre as mãos entrelaçadas, aconchegou-se, fechou os olhos e voltou a pegar no sono interrompido.
… ou um conto às três pancadas
Talvez tivesse sido do cansaço, mas naquele dia de Setembro, mesmo com o despertador programado, o Vasco deixou-se dormir, e quando finalmente saltou da cama para ir para as aulas, o tempo já era escasso para um asseio a preceito. A barba, como de costume, é que pagou as favas. Tinha estado até às tantas da madrugada a preparar a dissertação sobre Newton e as leis da gravitação, e o descanso é que ficara a perder. Posta de lado a hipótese de um pequeno-almoço simulado, vestiu-se quase às cegas, depois pegou nos apontamentos do curso, meteu-os na pasta, desligou as luzes e saiu porta fora. Enquanto esperava pelo elevador sentiu o prédio estremecer ligeiramente.
– Olá, querem ver que vamos ter sismo! disse ele para os seus botões, a pensar que, mesmo sendo um acontecimento insignificante, apenas um susto, já tinha ali uma desculpa, assaz esfarrapada, para o atraso. A Terra, de vez em quando precisava de acomodar as suas entranhas, e isso acabava a reflectir-se na superfície da sua pele, e na vida quotidiana dos parasitas que a habitavam, com os incómodos que são conhecidos, que podem ir do simples sobressalto, até à demolição de cidades inteiras. Parou, olhou à volta e esperou meia dúzia de segundos, enquanto a vizinha do apartamento contíguo, a dona Sandra, corria espavorida pelas escadas abaixo, sem sequer gemer o tradicional “bom-dia”. As tremuras não voltaram. Por precaução, tal como a vizinha, desistiu do elevador e optou por descer as escadas, mas sem grandes correrias. Já na rua, instalou-se no velho Fiat a cair de podre, e fez-me ao caminho. O dia estava esquisito, ostentando uma luminosidade ambiente de cor âmbar com pinceladas de sépia (parecia um pergaminho envelhecido), tempo encoberto e demasiado abafado para aquela estação e para aquela hora da manhã. A meio da Avenida de Roma circulava-se a passo de caracol. Havia um acidente complicado, enquadrado por muitos mirones e gente a gesticular, qualquer coisa parecida com um invulgar choque em cadeia, coisa esquisita dado que aquela artéria não era propícia a grandes velocidades. No entroncamento da Avenida do Brasil com a Rio de Janeiro, enquanto esperava, no meio do tráfego que o semáforo voltasse ao verde, o chão voltou a tremer, só que agora de forma mais prolongada e acompanhado de um ruído cavo e surdo, oriundo das profundezas da terra, ao mesmo que tempo que o Vasco era ligeira e inexplicavelmente arremessado para cima, batendo com a cabeça no tejadilho, como se tivesse perdido o peso, ao mesmo tempo que o estafado Fiat, mesmo parado, se bamboleava estranhamente na sua decrépita e rangedora suspensão. As luzes dos semáforos tremeram, apagaram-se, voltaram a acender-se, tremeluziram e acabaram por se apagar em definitivo, iniciando-se o habitual concerto de buzinas. A fila de trânsito estava imobilizada e assim ficou. Lá à frente, gesticulando e dizendo coisas inaudíveis, os condutores começavam a sair dos carros, visivelmente amedrontados, e com ar inquiridor sondavam a fila que serpenteava a perder de vista. Começava a ficar instalada a confusão, e o atraso para as aulas começava agora a tornar-se escandaloso.
- Irá haver aulas? Interrogou-se ele falando para os seus botões, ao mesmo tempo que as tremuras do pavimento voltaram mais insistentes, e alguns carros que estavam imobilizados no engarrafamento, sabe-se lá devido a que força, começaram a chocar entre si, como se subitamente se tivessem transformado naqueles velhos brinquedos de meados do século passado, prensados em levíssima folha-de-flandres. Depois de uma manobra quase impossível aproveitou uma nesga desimpedida sobre o passeio e lá estacionou o carro. A universidade ficava a pouco mais de mil metros dali, alcançável numa corridinha esforçada, para aquela hora matinal, mas oportuna para quem tentava escapar à barafunda circundante. Trancou o carro e começou a correr. Em dada altura sentiu-se mais leve e o chão parecia fugir-lhe debaixo dos pés. Tropeçou meia dúzia de vezes, fintou contentores do lixo que andavam a rebolar e protegeu-se de veículos que pareciam carrinhos de choque desgovernados, umas vezes já sem condutor, outras vezes com pessoas ao volante, incrédulas, paralisadas e aterrorizadas.
Atingiu o campus universitário pelas 10h e 50m quando as primeiras pessoas, a gritarem e de olhos esbugalhados, começavam a deixar de ter os pés assentes na terra, e aquela, do chão até às copas das árvores, tremia como se tudo quisesse mudar de lugar. A partir daquele momento o atraso tinha perdido todo o significado. Mudo e assombrado com o que estava a acontecer, o Vasco sabia que as desculpas tinham perdido o sentido, e verdade, verdadinha, era que aquela lei que dizia que a força da gravidade depende da massa dos corpos e da distância entre eles, e que é proporcional ao inverso do quadrado desta distância, tinha começado a deixar de funcionar, e o mundo, talvez o próprio universo, estavam em vias de mudar de forma, talvez mudar de lugar ou de sentido, talvez a caminho da extinção, sem avisar nem pedir licença a ninguém, no meio de um grande caos e terror.
O Vasco, com um misto de pavor e desânimo a esgravatar-lhe as entranhas, achou-se a esbracejar junto às copas das árvores, agarrado à pasta que já aberta espalhava pelos ares os seus agora inúteis tópicos e apontamentos, misturando-se com bandos de passarada em pânico, um carrinho apagado de castanhas assadas, pedras, pedrinhas e pedregulhos em remoinho, a mochila de criança, cabines telefónicas, telhas, muitas telhas, toneladas de telhas, bicicletas, uma baliza de futebol, contentores de lixo, muito lixo, montanhas de lixo, na mais colossal demonstração de ausência de gravidade de que há memória. Se naquele momento, por qualquer razão, o seu efeito cessasse, seria pior a emenda que o soneto, porque ninguém tinha o costume de sair de casa de capacete e com um pára-quedas amarrado às costas, para o que desse e viesse. Ao mesmo tempo, entre a dúvida e a angústia continuava a dizer de si para si: - O raio da aula deve ter sido adiada de certeza absoluta! Para já, e sem avançar com grandes conjecturas ou explicações, aquele iria ser um dia diferente, talvez para recordar, talvez para esquecer.
Dois ou três minutos depois, já a uma altura considerável, talvez uns dois mil metros, deixou de se ver a superfície da terra, o traçado das ruas, a mancha do Campo Grande e a geometria da Cidade Universitária, tanto era o pó que rodopiava, à mistura com a mais extravagante amálgama de pessoas, objectos e detritos. Havia muita gente a espernear, desde vestidos a rigor, embora já muito amarrotados, até outros de pijama ou em nu integral, uns de cabeça para baixo, uma velhinha com o cão preso pela trela, um casal abraçado, outros a ensaiarem um estranho bailado ou uma espécie de tentativa de voo, expresso num misto de esbracejar e bater de asas, outros aos berros, muitos a urinarem-se, outros a vomitarem o pequeno almoço, outros paralisados, como que hipnotizados, com o terror estampado no rosto, quase todos a tentarem agarrar-se a qualquer coisa que passasse perto, nem que fosse o telhado do quiosque dos jornais, como se estivessem no alto mar, debatendo-se à procura de uma tábua de salvação. Como algum do seu sentido de humor se mantinha intacto, imaginou que para o cenário ficar composto, só estava mesmo a faltar ver passar ali por perto o primeiro-ministro, a prometer solenemente que ia baixar os impostos, a dar autógrafos aos graúdos e computadores aos miúdos, arrastando consigo, cinco ou seis guarda-costas, pendurados nas bainhas das suas calças e nas bandas do seu casaco.
Mesmo a propósito, veio-lhe à memória aquele romance do Douglas Adams, que estivera a ler a semana passada, mas até agora, e tal como acontecia no livro, antes da Terra ser riscada do sistema solar, não tinha aparecido pelas imediações, in extremis, qualquer espécie de nave alienígena para lhe dar uma boleia. Como é compreensível, naquela aflição, uma coisa dessas vinha mesmo a calhar!
Sempre a subir rumo às alturas, até à estratosfera rarefeita, e pensando que à falta de um fato de astronauta, ou algo melhor, seria bom ter por ali uma garrafa de oxigénio, achou por bem voltar a matutar no mau uso que tinha andado a fazer do seu tempo:
- E eu que perdi uma noite agarrado às leis de Newton, quando bastava ter dormido como um justo, para agora as ver comprovadas na prática! Este universo, descomunal e talvez imensurável, não respeita nada nem ninguém. Raios partam os buracos negros, as galáxias em colisão, o efeito doppler, as energias radiantes, os quasares e os pulsares, o Isaac Newton e as suas leis da atracção universal…
E foi então que o Vasco, a pairar no vazio, entre aquela dramática, singular e colossal desordem, tomou uma decisão radical: atirou fora a pasta vazia, as chaves do carro, adoptou a posição fetal, pousou a cabeça sobre as mãos entrelaçadas, aconchegou-se, fechou os olhos e voltou a pegar no sono interrompido.