quinta-feira, fevereiro 09, 2006

Notas Soltas


A Sonae lançou uma OPA (Operação Pública de Aquisição) hostil sobre a Portugal Telecom, mostrando que o empresário Belmiro de Azevedo continua empenhado em manter o crescimento do seu império económico. Se for bem sucedido na sua operação, o Estado (que por agora não interfere, mas lá no íntimo até talvez agradeça) perde o controle de uma grande empresa do sector empresarial do estado, mas encaixa uns quantos milhões para ver se equilibra o orçamento, ou esbanjar como é seu costume, sendo que a operação, se for concretizada, pouco ou nada acrescentará ao desenvolvimento económico de que o país carece. Indiferente aos problemas do país, e enquanto os grandes tubarões se divertem a jogar ao Monopólio, o governo deixa que empresas estratégicas sejam vendidas a retalho e a pataco, para que alguns poucos fiquem cada vez mais ricos, e todos os outros cada vez mais pobres.

Ainda não está tudo dito nem visto, mas o facto de Belmiro de Azevedo, ostentando dotes de áugure, ter afirmado, há uns meses atrás, que Cavaco Silva iria ser um excelente Presidente da República, para ombrear com o excelente Primeiro-Ministro que Sócrates já era, dá bem uma ideia do que pensam os grandes empresários, sobre as agradáveis perspectivas de uma coabitação abençoada pelo espírito santo do bloco central, que tanto pode dar em união de facto como em casamento de conveniência. Com a actual OPA da Sonae sobre a Portugal Telecom em curso, começa a ficar explicada a afabilidade e deferência com que o governo encara a operação. Naturalmente, amor com amor se paga.

No país em que um qualquer Valentim (com mais direito de antena que qualquer outro português) se permite humilhar e ameaçar um agente da PSP em plena via pública, em que uma Fátima fugida à justiça regressa à terrinha para ganhar as eleições, para logo a seguir a justiça fazer recuar o processo para a estaca zero, para já não falar em Apitos Dourados, Freeports, Facturas Falsas, Aeroporto de Macau, corrupção nos Impostos e na Direcção Geral de Viação, Universidades Modernas, Casas Pias, Furacões, Portucales, Eurominas, e mais um interminável cortejo de arrastamentos, prescrições e respectivos arquivamentos, chamar a isto imunidade ou impunidade não faz grande diferença. Assim sendo, talvez a expressão mais adequada seja o de estarmos a viver numa sociedade corrompida até ao tutano.

Até Abril, em obras que avançam a passo acelerado, e contrariando a tão apregoada falta de verbas, vão ser gastos mais uns quantos milhões de euros para levantar em Évora um Centro de Estágio para a Selecção Nacional de Futebol, com vista ao campeonato do mundo que se disputa este ano. Depois dos dez (10) estádios de futebol, que ostentámos garbosamente durante o campeonato da Europa de 2004, e que actualmente nos estão a dar imenso jeito, temos agora mais uma obra que prima por contrariar a nossa pelintrice, ser eminentemente necessária e inadiável, enquanto escolas, tribunais, hospitais e outras estruturas de utilidade pública, umas são exíguas, outras metem água, ao passo que outras correm o risco de derrocada. (*)

Tive o meu primeiro sobressalto que quase tocou a raiva, quando assisti, nos idos de 60 do século passado, ao filme de Trufault, que se intitulava FARENHEIT 451, baseado no romance de ficção científica de Ray Bradbury, esse mesmo, onde as brigadas de bombeiros tinham a diabólica missão de atear o fogo a bibliotecas inteiras, reeditando os autos de fé do III Reich, e onde os poucos resistentes, optavam, cada um, por decorar uma obra da sua preferência, para mais tarde a declamar de memória, salvando-a assim de um trágico e fatal esquecimento. À época, lembro-me de ter ficado revoltado, porque todos os tostões que amealhava eram para resgatar livros em segunda mão aos alfarrabistas de rua (como aquele concorrido pátio ao lado do cinema Éden), e não concebia que o fruto da criatividade do espírito humano, adquirido com tanto sacrifício, e tratado com tanto cuidado e desvelo, pudesse ser inspiradora de perseguições e combustível para alimentar fogueiras.
Agora, a propósito das reacções desencadeadas pela publicação de algumas caricaturas, começo a acreditar que estamos a viver tempos complexos e perigosos. Ai das civilizações e da paz, quando as religiões se introduzem nas relações entre os povos, e vice-versa! Ai das artes e das culturas, quando a intolerância e as inquisições voltam a querer ditar regras, impedindo que os seres humanos cultivem a comédia e o grotesco, contando histórias licenciosas e exercitando o riso.

Na América as coisas passam-se assim: um empregado foi despedido porque, fora das horas de serviço, foi visto a consumir uma marca de cerveja, concorrente da marca para que trabalhava. O patrão diz que quem faz as regras é ele, e quem não gostar, paciência...
Nos EUA não há legislação que proteja quem trabalha, contra prepotências deste tipo, que roçam o mais retinto fascismo.

Folheei aquela revista e a páginas tantas, estava lá a casa que foi de Karen Blixen, a dinamarquesa que nos primórdios do século passado, cheia de coragem e com aquelas saias imensas a roçar os tornozelos, andou pelo Quénia a lutar contra as mentalidades, fórmulas e intransigências do espírito colonizador. Continuo a não saber se aquele morro sobranceiro ao vale dominado pelas montanhas Ngong, onde os leões, ao fim da tarde, se vinham deitar, como se viessem venerar o local que recebera os restos mortais de Finch Hatton, o homem que não queria pertencer a ninguém, nem a lado nenhum, é verdadeiro, ou se não passa de um produto da ficção que Sidney Pollack, genialmente, materializou para o cinema, baseado no livro que Karen nos deixou. Assim, voltei a rever o filme “Out of Africa” (África Minha), com a sua história simples, nostálgica, recheada de humanidade, imagens fortes e emoções, quando o mundo e muitas convenções estavam em vias de sofrer mais um safanão.


Falando ainda sobre cinema, cada filme de Andrei Tarkovsky, o cineasta que nos deixou “Andrey Rubliov”, “Solaris” e “Stalker”, é um mergulho em apneia, nas profundezas dos seres humanos e das suas relações com o universo.
(*) Publicado no EXPRESSO de 2006-02-11 com o título “Futebóis”.

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