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"Para quando em Portugal queimarem-se carros?" A pergunta, que recordo de memória, foi feita na noite de sexta-feira da semana passada pelo jornalista João Pacheco, um dos fundadores do movimento Precários Inflexíveis, numa sessão de lançamento do livro organizado e lançado por um outro movimento de precários, o Ferve-Fartos/as d"Estes Recibos Verdes.
A pergunta - feita por um jornalista que recebeu o Prémio Gazeta de Revelação em 2006 e que hoje continua a trabalhar sem vínculo para o "i", depois de ter já trabalhado para a "Visão" e para o "PÚBLICO" - espelha o desespero de uma geração sem perspectivas de atingir as garantias e a segurança laboral e material que aos seus pais e avós estiveram asseguradas.
Hoje em Portugal os números atingidos pela precarização do trabalho são avassaladores e atingem um crescimento exponencial não acompanhado por outros países europeus. Estima-se que cerca de dois milhões de trabalhadores, ou seja, 40 por cento da população activa, estejam numa situação de vínculo laboral não permanente ou mesmo sem vínculo e trabalhe sob fórmulas jurídicas diversas como os contratos a prazo, as bolsas, o trabalho temporário, o trabalho não declarado e a prestação de serviços mediante recibo verdes. Sabe-se ainda que cerca de 900 mil pessoas trabalham a recibo verde.
Acresce a este mundus horribilis o facto de em Portugal o desemprego ter atingindo, segundo os dados do Instituto Nacional de Estatística e no trimestre de Abril, Maio e Junho, os 9,1 por cento da população activa, isto é, mais de meio milhão de pessoas. Já a OCDE prevê que até ao final de 2010 em Portugal se chegue aos 11,7 por cento, com um total de cerca de 650 mil pessoas sem emprego.
Quando um novo governo se prepara para entrar em funções, é importante questionar e reflectir sobre qual a realidade social que está a ser criada em Portugal. E nesta reflexão importa ter em conta o facto de o poder executivo continuar a ser liderado por José Sócrates, o primeiro-ministro responsável pela revisão do Código do Trabalho que consagrou de forma simbólica o reconhecimento legal do trabalho precário.
Nada indica que de facto a situação social em Portugal esteja para melhorar. Mais, o problema do dumping social não é um fenómeno que possa ser associado a uma crise conjuntural, a um mau momento na economia. Tudo indica que as mudanças são estruturais e que resultam de uma real alteração do modelo de organização sócio-económico.
Por isso é problemático pensar qual o futuro dos jovens. Não só dos que participaram na sessão organizada pelos Ferve e cujo olhar expectante feria a sensibilidade e a consciência de qualquer um. Mas de todos os jovens que foram criados num mundo e num modelo sócio-económico em que apreenderam - com o que viram em casa através da experiência de pais e de avós - que o emprego é também uma profissão e uma carreira. Que um emprego é também um lugar de inserção social e de identificação no colectivo. Que o emprego é também uma função e um papel social.
E que ter emprego é o meio pelo qual se cumprem deveres para com a sociedade e se auferem direitos no plano da redistribuição da riqueza produzida pela sociedade. Riqueza essa que é garantida aos trabalhadores através do salário, mas também dos subsídios de Natal e de férias, do direito a subsídio de doença ou de desemprego.
Só que agora, quando chegou a sua vez, passaram a ser conhecidos como a geração que não tem direito a esses direitos e que apenas tem à sua espera trabalho precário e mal pago. E até já tem direito a alcunha: a geração dos 500 euros.
O modelo mudou e com ele o que parece ser o paradigma de quem trabalha. E se ainda persistem os privilegiados que vivem dentro do agora considerado como antigo modelo - e provavelmente sempre haverá, já que o modelo de economia capitalista pode não comportar a precariedade absoluta -, há uma massa crescente de trabalhadores que se vêem privados dos seus direitos laborais e sociais associados ao trabalho e que entram numa situação de isolamento absoluto, sem redes de inserção e de identificação na sociedade.
É que a regressão que em termos históricos se vive é-o no que se refere à garantia de direitos. Mas é nova a situação de isolamento e de não inserção dos indivíduos na sociedade. A individualização, a autonomização das relações sociais hoje agrava o isolamento do indivíduo, que se sente diferente ou excluído, e aumenta a estigmatização.
Ora a questão central que a pergunta de João Pacheco encerra é essa: até que ponto é que essa estigmatização, a de se ser um trabalhador diferente, um trabalhador sem direitos, um trabalhador de segunda, pode levar a actos de desespero e de raiva, que desencadeiem manifestações de agressão contra a sociedade que os maltrata. Até que ponto a violência que é sempre o ser-se estigmatizado é de tal forma atroz que motiva uma reacção e uma resposta de fúria contra a sociedade ou de pura agressividade sem objecto definido.
É dado como adquirido que os portugueses não são violentos, assim como é dado como adquirido que a atomização das relações sociais hoje seja razão suficiente para contrariar acções de revolta. Mas agora que um novo governo se prepara para entrar em funções, e mesmo sabendo que ele não irá inverter a situação criada e impor o fim do trabalho precário, é bom que se tenha consciência de que há uma bomba-relógio que pode estar accionada e com o tempo a contar."
Texto da jornalista São José Almeida, publicado na edição de 24 de Outubro de 2009 do jornal PÚBLICO
"Para quando em Portugal queimarem-se carros?" A pergunta, que recordo de memória, foi feita na noite de sexta-feira da semana passada pelo jornalista João Pacheco, um dos fundadores do movimento Precários Inflexíveis, numa sessão de lançamento do livro organizado e lançado por um outro movimento de precários, o Ferve-Fartos/as d"Estes Recibos Verdes.
A pergunta - feita por um jornalista que recebeu o Prémio Gazeta de Revelação em 2006 e que hoje continua a trabalhar sem vínculo para o "i", depois de ter já trabalhado para a "Visão" e para o "PÚBLICO" - espelha o desespero de uma geração sem perspectivas de atingir as garantias e a segurança laboral e material que aos seus pais e avós estiveram asseguradas.
Hoje em Portugal os números atingidos pela precarização do trabalho são avassaladores e atingem um crescimento exponencial não acompanhado por outros países europeus. Estima-se que cerca de dois milhões de trabalhadores, ou seja, 40 por cento da população activa, estejam numa situação de vínculo laboral não permanente ou mesmo sem vínculo e trabalhe sob fórmulas jurídicas diversas como os contratos a prazo, as bolsas, o trabalho temporário, o trabalho não declarado e a prestação de serviços mediante recibo verdes. Sabe-se ainda que cerca de 900 mil pessoas trabalham a recibo verde.
Acresce a este mundus horribilis o facto de em Portugal o desemprego ter atingindo, segundo os dados do Instituto Nacional de Estatística e no trimestre de Abril, Maio e Junho, os 9,1 por cento da população activa, isto é, mais de meio milhão de pessoas. Já a OCDE prevê que até ao final de 2010 em Portugal se chegue aos 11,7 por cento, com um total de cerca de 650 mil pessoas sem emprego.
Quando um novo governo se prepara para entrar em funções, é importante questionar e reflectir sobre qual a realidade social que está a ser criada em Portugal. E nesta reflexão importa ter em conta o facto de o poder executivo continuar a ser liderado por José Sócrates, o primeiro-ministro responsável pela revisão do Código do Trabalho que consagrou de forma simbólica o reconhecimento legal do trabalho precário.
Nada indica que de facto a situação social em Portugal esteja para melhorar. Mais, o problema do dumping social não é um fenómeno que possa ser associado a uma crise conjuntural, a um mau momento na economia. Tudo indica que as mudanças são estruturais e que resultam de uma real alteração do modelo de organização sócio-económico.
Por isso é problemático pensar qual o futuro dos jovens. Não só dos que participaram na sessão organizada pelos Ferve e cujo olhar expectante feria a sensibilidade e a consciência de qualquer um. Mas de todos os jovens que foram criados num mundo e num modelo sócio-económico em que apreenderam - com o que viram em casa através da experiência de pais e de avós - que o emprego é também uma profissão e uma carreira. Que um emprego é também um lugar de inserção social e de identificação no colectivo. Que o emprego é também uma função e um papel social.
E que ter emprego é o meio pelo qual se cumprem deveres para com a sociedade e se auferem direitos no plano da redistribuição da riqueza produzida pela sociedade. Riqueza essa que é garantida aos trabalhadores através do salário, mas também dos subsídios de Natal e de férias, do direito a subsídio de doença ou de desemprego.
Só que agora, quando chegou a sua vez, passaram a ser conhecidos como a geração que não tem direito a esses direitos e que apenas tem à sua espera trabalho precário e mal pago. E até já tem direito a alcunha: a geração dos 500 euros.
O modelo mudou e com ele o que parece ser o paradigma de quem trabalha. E se ainda persistem os privilegiados que vivem dentro do agora considerado como antigo modelo - e provavelmente sempre haverá, já que o modelo de economia capitalista pode não comportar a precariedade absoluta -, há uma massa crescente de trabalhadores que se vêem privados dos seus direitos laborais e sociais associados ao trabalho e que entram numa situação de isolamento absoluto, sem redes de inserção e de identificação na sociedade.
É que a regressão que em termos históricos se vive é-o no que se refere à garantia de direitos. Mas é nova a situação de isolamento e de não inserção dos indivíduos na sociedade. A individualização, a autonomização das relações sociais hoje agrava o isolamento do indivíduo, que se sente diferente ou excluído, e aumenta a estigmatização.
Ora a questão central que a pergunta de João Pacheco encerra é essa: até que ponto é que essa estigmatização, a de se ser um trabalhador diferente, um trabalhador sem direitos, um trabalhador de segunda, pode levar a actos de desespero e de raiva, que desencadeiem manifestações de agressão contra a sociedade que os maltrata. Até que ponto a violência que é sempre o ser-se estigmatizado é de tal forma atroz que motiva uma reacção e uma resposta de fúria contra a sociedade ou de pura agressividade sem objecto definido.
É dado como adquirido que os portugueses não são violentos, assim como é dado como adquirido que a atomização das relações sociais hoje seja razão suficiente para contrariar acções de revolta. Mas agora que um novo governo se prepara para entrar em funções, e mesmo sabendo que ele não irá inverter a situação criada e impor o fim do trabalho precário, é bom que se tenha consciência de que há uma bomba-relógio que pode estar accionada e com o tempo a contar."
Texto da jornalista São José Almeida, publicado na edição de 24 de Outubro de 2009 do jornal PÚBLICO