quinta-feira, agosto 04, 2011

Revisitando o Quarteto de Alexandria (Balthazar)

Consultar este post para prévia apreciação global do QUARTETO DE ALEXANDRIA.


Consultar este post para apreciação de JUSTINE.


Escrevi na introdução ao Quarteto que “os estudiosos da obra de Durrell dizem que o Quarteto de Alexandria foi uma obra inspirada na teoria da relatividade”. Engano meu! Acontece que não foram os estudiosos mas sim o próprio Durrell que o manifestou, na nota introdutória de Balthazar, com as seguintes palavras: as personagens e situações deste romance, o segundo de um grupo – constituindo este um “sósia” e não uma continuação de JUSTINE – são inteiramente imaginárias, tal como a personalidade do narrador. Mas a cidade é o menos irreal possível. A literatura moderna não nos oferece nenhum exemplo de Unidades, e em consequência disso voltei-me para a ciência e tentei realizar um romance em quatro dimensões cuja forma assenta no princípio da relatividade.
Três partes de espaço e uma de tempo, eis aqui a receita para engendrar um “continuum”. Os quatro romances obedecem a este plano. (…)

Maioritariamente baseado em comentários feitos sobre o rascunho de romance do Narrador, Balthazar é a segunda “camada” do Quarteto de Alexandria, ou melhor, uma visão diferente da realidade que foi apresentada em Justine. Às personagens apresentadas naquela obra, acrescentam-se novas figuras, intervenientes em Balthazar:

Narouz Hosnani, irmão de Nessim
Leila, mãe de Nessim e Narouz
Keats, o jornalista
Darley, o Narrador que passa a ter um nome

Colheita de citações ao correr da leitura:

Justine, Melissa, Clea… Éramos tão poucos que na verdade um livro devia ser suficiente para esgotar-nos (…) Na verdade eu via as minhas amantes e amigos não mais como seres humanos e vivos mas como criações coloridas da minha mente, eram agora habitantes do meu livro, não da cidade, como figuras de tapeçaria (…) O quadro que desenhei era provisório – como o painel de uma civilização perdida deduzido de uns escassos fragmentos de vasos, uma tábua com caracteres confusos, um amuleto, alguns ossos humanos e uma máscara mortuária de ouro, sorridente. (ponderações do Narrador sobre o seu projecto de romance)

Nós vivemos – escreve algures Pursewarden – vidas baseadas sobre uma selecção de ficções. A nossa perspectiva da realidade é condicionada pela nossa posição no espaço e no tempo, e não pela nossa personalidade, como geralmente se crê. Assim, cada interpretação da realidade baseia-se sobre uma posição única. Dois passos para leste ou para oeste e o quadro muda inteiramente. Ou qualquer coisa parecida…

Um diário é a última fonte a que o historiador deve recorrer para conhecer o seu autor. Ninguém se atreve a ser sincero no papel: pelo menos quando se trata de amor. (observação do Narrador)

No princípio os jovens, tal como a vinha, apoiam-se sobre os tutores dos mais velhos, que sentem prazer em suportar sobre eles os dedos doces e meigos; mais tarde são os velhos que se apoiam nos belos corpos dos jovens para descer o rio da morte. (citação de Balthazar)

O barbeiro muitas vezes não tinha tido sequer tempo de se barbear, tendo chegado a toda a pressa do hospital onde acabava de escanhoar um morto. Encontrávamo-nos aqui nas cadeiras acolchoadas, diante dos espelhos, por um breve instante, antes de nos dirigirmos às respectivas ocupações: Da Capo para se encontrar com os seus corretores, Pombal para a sensaboria do consulado francês (mal disposto, boca amarga, sensação de ter caminhado toda a noite de cabeça para baixo), eu para a escola onde ensinava, Scobie para a repartição da Polícia, e assim por diante…
(…) Aquelas mímicas lembravam-me um pouco os heróis dos romances ingleses diante de uma chaminé Tudor, fustigando as botas com o chicotinho e tomando ares de superioridade.
(…) Adormeceu de novo e desta vez filtrava-se pelos seus lábios um ligeiro assobio irritante. Retirei-lhe com cuidado o cachimbo de entre os dedos e acendi um cigarro. Esta maneira de aparecer e desaparecer, num simulacro de morte, tinha qualquer coisa de comovedor. Estas pequenas visitas a uma eternidade que em breve se tornaria seu domicílio, na companhia de … (observações do Narrador)

Um dia dissera com um leve suspiro: nada mais fácil de organizar nesta cidade do que uma morte ou um desaparecimento. (Balthazar citando Scobie)

Nessim possuía a pureza inodora do ar do deserto, do deserto estival, secreto e seco. Puro. Como ela odiava essa pureza! E depois? Sim, revoltava-a também a cruzinha de ouro aninhada nos cabelos do seu peito. Era um copta – um cristão. É assim que trabalha em segredo o espírito das mulheres. (Balthazar conjecturando sobre os preconceitos de Justine)

A pobreza obrigava-a a servir de modelo, a tantas piastras à hora, para os estudantes de arte do Atelier. Clea, que apenas a conhecia de nome, passava certo dia na extensa galeria e, impressionada pela sombria beleza alexandrina do seu rosto, contratou-a para um retrato.
(…) Da mesma forma que uma prostituta pode ignorar que o seu cliente é um poeta que a imortalizará num soneto que ela nunca chegará a ler, Justine entregando-se a esses prazeres sexuais mais subtis, ignorava que eles deixariam, por muitos anos, uma marca indelével em Clea…
(…) Certas pessoas nasceram para dispensar o bem e o mal em maior medida do que as outras – são os veículos inconscientes de doenças que não podem tratar. (considerações de Balthazar sobre os amores de Clea e Justine)

Leila não admitia nenhum espelho no harém desde que a doença a tinha privado da sua própria estima; mas, na intimidade de um espelhinho de bolso de ouro, pintava os olhos – o único tesouro que lhe restava. (…) Era como um homem que cega e aprende a ler com o único órgão que lhe resta: as mãos. (Leila isolada com os seus danos da varíola)

Imaginar não é necessariamente inventar, da mesma maneira que se podem interpretar as acções dos outros sem nos proclamarmos omniscientes. (notas de Balthazar)

Ei-las, sentadas as duas, a esfinge velada e a descoberta, comendo as violetas cristalizadas que ambas odiavam. Deliciava-me observar as mulheres assim, no seu estado mais puro. (comentário de Balthazar sobre Leila e Justine)

Uma mulher não pensa duas vezes (se a paixão sanciona o crime) antes de enganar o marido; mas ser infiel a Nessim era como roubar a caixa das esmolas. (notas de Balthazar sobre Justine)

Os factos e os gestos mais inocentes – a visita a uma biblioteca, uma lista de compras, uma mensagem num cardápio – tornavam-se em provas aos olhos de um ciúme fundado na impotência sentimental. (notas de Balthazar sobre a relação de Nessim com Justine)

Os factos são instáveis por natureza. Narouz disse-me certo dia que amava o deserto porque lá o vento apaga o traço dos nossos passos como apaga uma vela. Assim, ao que me parece, faz também a realidade. (observações de Balthazar)

Pursewarden tinha lançado frases do género: “é um dever de todo o patriota odiar a sua pátria de uma maneira criadora”… (memórias de Balthazar)

Pursewarden oferecia um amor amargo, sem compaixão, mas de uma maneira curiosa que tornava os seus beijos excitantes. Eram tão vivos como a dentada de uma criança faminta numa maçã madura. (observações de Balthazar)

Os silêncios de Nessim tinham já atingido enormes proporções no seu espírito. Estendiam-se por todos os lados como o próprio deserto – enervando-a. (Balthazar comentando o relacionamento de Nessim com Justine)

O rosto de Pursewarden, na morte, recorda-me o de Melissa; tinham ambos o ar de quem acaba de gozar secretamente uma boa piada, adormecendo antes de o sorriso ter tempo de se apagar nos cantos boca. (Balthazar comentando o suicídio de Pursewarden)

Tremia de emoção, como se estivesse prestes a profanar um lugar santo com qualquer obscenidade irresistível, cuja significação crepitava no seu espírito como um raio, com uma beleza horrível e singular. (Afrodite consente todas as conjugações do espírito e dos sentidos na prática do amor). (Narouz imaginando-se a fazer amor com Clea)

Em pensamento vejo-os sempre assim, olhos nos olhos, de mão dada, muito juntos e todavia tão longe. O telefone é o símbolo moderno das comunicações que nunca se realizam. (Messim e Justine)

Suponho (escreve Balthazar) que se você desejar, de qualquer modo, incorporar no seu manuscrito de Justine aquilo que eu acabo de lhe contar, se encontrará em presença de um livro bastante curioso; será uma história contada em camadas sucessivas. (…) Estes são os pequenos depósitos aluvionários do tempo no lugar. Da mesma forma a vida deposita sobre o rosto do indivíduo, camada após camada, as rugas sucessivas da experiência onde é impossível discriminar a herança das lágrimas e do riso. Dejeções da experiência sobre as areias da vida… (sugestão de Balthazar ao Narrador, agora Darley)

Areias, roseirais e pedras brancas
De Alexandria – faróis do navegante,
Dunas que se esmagam e deslizam,
A areia beija o mar a todo o instante,
(…)
(versos gregos recitados por Justine para Darley, o Narrador)

As verdadeiras ruínas da Europa são os seus grandes homens. (das notas estenografadas de Keats)

Memorandum
Quantos amorosos, depois de Pigmaleão, conseguiram moldar na carne o rosto da amada, como o fez Amaril? - perguntava Clea. O grande tabuleiro de narizes para ele escolher um – de Nefertiti a Cleópatra. Um trabalho de paciência numa sala sombria.

NOTA – Ilustração de Fernando Torres

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