quarta-feira, agosto 17, 2011

Revisitando o Quarteto de Alexandria (Clea)

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Alexandria, a capital da memória! Todos os escritos que eu fui buscar aos vivos e aos mortos, até eu próprio me tornar numa espécie de “post-scriptum” de uma carta que nunca foi remetida. (…) Agora encontrava-me perante a natureza do tempo, essa doença da alma humana. Tive de admitir a minha derrota como cronista. E todavia, de forma bastante curiosa, o mero acto de escrever dotou-me ainda de outra espécie de amadurecimento, pelo próprio fracasso das palavras que se afundam e se perdem uma após outra nas insondáveis cavernas da imaginação. (considerações de Darley, o narrador)

- Passaram-se muitas coisas depois de ter começado a guerra. O doutor Balthazar esteve muito doente. Sabe das intrigas de Hosnani na Palestina? Toda a organização se desmantelou. Os egípcios tentam confiscar-lhe os bens. Já se apoderaram de muita coisa. Sim, agora são pobres e longe de estarem livres de apuros. Ela tem residência fixa em Karm Abu Girg. Há muito tempo que ninguém a vê. Por privilégio especial, ele trabalha como condutor de ambulâncias nas docas. Muito perigoso. Durante um bombardeamento, ele perdeu um olho e um dedo. (…)
- Mas a guerra tem também outras vantagens. Corto o cabelo a todo o exército. A minha barbearia está sempre cheia. Três salões, doze empregados! Você vai ver, é estupendo. Como diz o nosso amigo Pombal: “você agora faz a barba aos mortos enquanto eles ainda estão vivos”. (Mnemjian, o barbeiro, põe Darley, o narrador, ao corrente do que se passou na sua ausência)

Eu tinha-a gasto como a um velho par de meias e o absoluto dessa desaparição surpreendeu-me e revoltou-me. Podia o “amor” gastar-se assim? Melissa, repeti, ouvindo o eco desse nome bem-amado ressoar no silêncio. O nome de uma planta triste, o nome de um peregrino a Elêusis. Era ela agora menos que um perfume ou que um sabor? Seria simplesmente um feixe de referências lioterárias gatafunhadas nas margens de um poema insignificante? (…) Melissa não passara de um dos muitos disfarces do amor. (Darley, o narrador, conjecturando sobre Melissa)

- Eu que julgava saber tudo sobre o amor – disse ele com ar sonhador, como falando com a sua imagem, enquanto compunha a barba com os dedos – nunca tinha imaginado uma coisa semelhante. Se há um ano me tivessem dito as coisas que estou prestes a contar-lhe, eu teria respondido: Bah! Isso não passa de uma obscenidade trovadoresca! São detritos da Idade Média. (confidências de Pombal)

Parecia muito mais magra. Erguendo alto o candelabro aproximou-se um passo e, depois de mergulhar ansiosamente os seus olhos nos meus, pousou os lábios num beijo gelado e breve sobre a minha face direita. Aquilo era frio como um obituário, seco como um pergaminho. (Darley, o narrador, reencontra Justine)

- A morte de Narouz recaiu sobre Nessim porque os coptas do povo dizem que foi ele quem a ordenou. Tornou-se para ele numa espécie de maldição familiar. A mãe dele está doente, mas afirma que nunca mais voltará a esta casa. (…) E assim aqui nos encontramos os dois encerrados. Passos as noites lendo – sabe o quê? – um maço de cartas de amor que ela abandonou. Cartas de amor de Mountolive! Mais confusão, mais recantos inexplorados. (confissões de Justine a Darley, o narrador)

O homem inventou a música para confirmar a sua solidão. (pensamento de Clea)

Mas que tarefa! Ficamos para aqui, enquanto o tempo passa, a fazer conjecturas. Todas as espécies de tempo que se escoam pela ampulheta, o tempo de uma eternidade, o tempo de um instante e o tempo do esquecimento; o tempo do poeta, do filósofo, da mulher grávida, do calendário… (dissertação de Balthazar)

Ela estava sentada no mesmo lugar onde (naquele primeiro encontro) eu tinha visto Melissa contemplando a sua xícara de café com um ar de ceptismo divertido, o queixo apoiado nas mãos. (…) Mas agora não era Melissa quem estava ali, era Clea, com a sua cabeça loura debruçada sobre a xícara de café, guardando um ar de meditação infantil. (Darley, o narrador, reencontra Clea)

A chuva caía em torrentes, como sucede frequentemente em Alexandria antes da alvorada, refrescando o ar, lavando as folhas ressequidas das palmeiras e dos jardins municipais, as grades de ferro… (…) Do porto, os odores de alcatrão, do peixe e das redes salgadas inundando as ruas vazias para enfrentar as rajadas inodoras do deserto… (imagens de Alexandria)

E se a personalidade humana for uma ilusão? E se, como nos diz a biologia, cada célula do nosso corpo é substituída por outra num período de sete anos? Quando muito, o que eu tenho nos braços é uma fonte de carne, jorrando continuamente, e no meu espírito um arco-íris de poeira. (pensamentos de Darley, o narrador)

Ela encontrava-se à janela vendo por detrás das cortinas corridas a aurora romper sobre os telhados da cidade árabe, nua e esbelta como um lírio do oriente.
(…) Chamei docemente Clea mas ela não me ouviu; voltei a adormecer. Sabia agora que Clea partilharia tudo comigo, sem restrições – sem mesmo ocultar aquele olhar de cumplicidade que as mulheres reservam para os espelhos.
(…) Volto-me para Clea adormecida e ponho-me a estudar o perfil sereno a fim de ingeri-la, bebê-la toda sem perder uma gota, fundindo nas suas as palpitações do meu coração. (…)
- É desleal olhar para uma mulher adormecida. (Darley e Clea)

Comprámos-lhe todos qualquer coisa, com a intenção de lhe restituir quando a tormenta passasse. Os Cervoni compraram os cavalos árabes, Ganzo o automóvel, que depois revendeu a Pombal, e Pierre Balbz o telescópio. Como não tinha lugar onde guardá-lo, Mountolive permitiu-lhe depositá-lo da residência de Verão, um sítio ideal. (recordações de Clea)

Dei por mim lendo estas passagens dos cadernos de Pursewarden com toda a atenção e humor que eles mereciam e sem pensar em ofender-me – para usar a expressão de Clea. (…) Em suma, é sempre salutar saber o que pensa francamente de nós uma pessoa a quem admiramos. (Darley, o narrador, lendo escritos do falecido Pursewarden)

Por exemplo, eu não habitava permanentemente em casa dela, porque quando Clea trabalhava numa tela que reclamasse toda a sua atenção tinha necessidade de vários dias de solidão. (Darley, o narrador, falando sobre Clea)

- Peço-lhe desculpa, mas… é o meu único meio de conhecer as feições das pessoas.
E senti bruscamente os seus dedos doces e tépidos deslocando-se rapidamente sobre o meu rosto, como se estivessem lendo um texto em Braille… (Liza, a noiva cega de Mountolive, conhecendo Darley, o narrador)

Clea tinha ido ao Cairo, e não a esperava. Levei a maleta para o apartamento dela e, sentando-me no chão, abri-a. (…) Comecei a tremer como na presença de um grande génio, a tremer e a balbuciar. Com um choque interior descobri que em toda a literatura conhecida nada existia de comparável! Todas as obras-primas de Pursewarden empalideciam diante dessas cartas de um brilho e de uma prolixidade furiosa e expontânea. (…) Nesta estranha e arrepiante experiência tive por um momento a intuição do verdadeiro Pursewarden – o homem que sempre me escapara. (Darley, o narrador, lendo a correspondência de Pursewarden para sua irmã Liza)

Eu, Darley, tudo o que posso afirmar é que cinco ou seis amantes francesas, várias voltas ao mundo e numerosas aventuras em tempo de paz não me ensinaram tanto como esta guerra. (confissão de Darley, o narrador)

Enquanto eu saía, fechando docemente a porta do quartinho, veio-me ao espírito uma frase de Pursewarden: “o amor mais rico é o que se entrega ao arbítrio do tempo.” (recordação de Darley, o narrador)

Sim, nesse dia surpeendi-me a escrever com a mão trémula as três palavras que todos os rapsodos da Terra pronunciam desde que o mundo é mundo para concitar a atenção do auditório. Palavras que simplesmente anunciam a maturidade de um artista: “era uma vez…”
E senti-me como se o Universo me tivesse piscado o olho!

Apêndice

Sim, ao lado da janela, a cama
Banhada pelo sol daquela tarde,
Separámo-nos às quatro horas
Apenas por uma semana…
Nunca pensei que esses sete dias
Pudessem não ter fim.

NOTA – Ilustração de Fernando Torres

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