domingo, março 09, 2014

As Boas Intenções


As ditaduras e estados policiais, pela sua própria natureza sequestradora e castradora, convivem mal com a privacidade dos cidadãos, e as democracias, tanto as musculadas como as mais liberais, a pretexto do combate aos terrorismos e outros supostos males dos tempos actuais, têm vindo a convencer-nos que é legítimo abdicarmos de "alguma" liberdade e privacidade, para bem da nossa própria segurança. Para que baixemos os braços e não ofereçamos resistência, não se cansam de repetir vezes sem conta, que se não consentirmos na tal perda de liberdade e intrusão na privacidade, podemos vir a ser as vítimas dos próximos 11 de Setembro. E como se isso não bastasse, e acompanhando o "boom" da internet e das redes sociais, até nós vamos colaborando nessa tarefa, que ainda há uns anos atrás era olhada de soslaio e com reservas, que é a facilidade com que nos "desnudamos", à frente de meio mundo, esquecendo que de boas intenções está o inferno cheio. Na verdade, as empresas que alojam sites e redes sociais (Microsoft, Google, Facebook, Twitter, etc) não se têm coibido de fornecer todos os dados que lhes são exigidos pelos governos, sem se sentirem na mínima obrigação de proteger ou informar desse facto os utilizadores, o que nos leva a considerar que se sentem confortáveis na sua pele de diligentes informadores.

Podemos sempre dizer que não temos nada a esconder, que a nossa vida é transparente, que nada tememos, porque nada devemos, que somos inofensivos, mas há uma coisa que se chamam princípios, e sejam lá quais forem os argumentos invocados (mesmo na lógica do antes prevenir que remediar, ou do mal necessário), é garantido que ninguém gosta de saber que a sua conta bancária anda a ser bisbilhotada, que alguém o anda a espreitar pelo buraco da fechadura, a seguir os seus passos através do olho indiscreto da videovigilância, seguindo o rasto do telemóvel, o uso das caixas multibanco e portagens electrónicas, a coscuvilhar os seus e-mails, a escutar as suas conversas, por muito inocentes ou descomprometidas que sejam, pois o direito à privacidade é um dos sagrados direitos humanos, e não basta os entendidos virem dizer que a globalização, a democratização e a partilha universal dos meios de comunicação também têm os seus inconvenientes e perversas consequências.

É bom não esquecer que os métodos das polícias de hoje, agora apoiadas por uma extensa panóplia de sofisticados recursos tecnológicos, continuam a ser os mesmos das OKRANAs, STASIs, KGBs, SAVAKs, CIAs, DINAs, GESTAPOs, PIDEs/DGSs e outras que tais. A vigilância apertada de todos os nossos movimentos, simpatias, leituras, gostos e preferências, as escutas, o recurso a informadores, recrutados voluntariamente ou sob chantagem, são as ferramentas, o oxigénio e a matéria-prima das suas actividades. Embora maquilhadas com a cores da democracia, são um mundo à parte, operam por conta própria, fora dos limites, não são controladas nem escrutinadas, fazem o que lhes mandam fazer, actuando à margem das leis e segundo as conveniências e interesses de quem manda. Para além do Echelon, Prism e Tempora, complexos sistemas de espionagem global, entrelaçados e geridos pelos EUA e UK, também os há mais domésticos, isto é, cada país terá o seu, com níveis de abrangência e sofisticação variáveis. Em resumo: acabou-se a privacidade, caímos na rede, estamos metidos numa grande caldeirada, somos todos potenciais suspeitos, não há para onde fugir. E as "passwords" que nos dizem para mantermos rigorosamente a recato, está provado que não são invioláveis, pois qualquer "hacker" de meia-tigela sabe como contornar o problema, e passear alegremente dentro do nosso computador pessoal. Esta actividade é punida por lei, mas são um filão onde os governos vão recrutar os seus futuros especialistas e espiões.

Uma coisa é as nações espiarem-se reciprocamente, actividade que é da esfera dos seus jogos de influência, interesses e vantagens competitivas, e outra coisa o andarem a espiar e esgravatar a vida privada dos seus próprios cidadãos, como se de potenciais inimigos se tratassem, mesmo que sejam incapazes de fazer mal a uma mosca. Julian Assange, fundador e principal porta-voz do WikiLeaks, e Edward Snowden, ex-técnico de informática da agência norte-americana de espionagem NSA, não fizeram mais do que entreabrir o cofre dos segredos surripiados, analisados, classificados e armazenados pelos estados, à espera de quem deles faça uso, percebendo-se a razão da fúria das grandes potências (e não só) que caiu sobre eles. Se antes havia desconfianças sobre o abjecto comportamento dos governos, agora passou a haver certezas absolutas. E os grandes mandatários do poder mundial não perdoam que alguém lhes tenha posto o jogo a descoberto, havendo mesmo quem tenha sugerido que ambos os delatores deviam ser liquidados por um qualquer esquadrão da morte, na primeira oportunidade. Sobre a odisseia de Edward Snowden, aguardo com alguma expectativa o livro de Luke Harding, que sobre o tema será publicado neste mês de Março.

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