domingo, março 23, 2014

Relatividade


(da Série Contos (In)Completos

Parte I

NAQUELE fim de tarde de Agosto, quando voltou do trabalho o Mário não arrumou o carro na garagem, não visitou a caixa do correio como era seu hábito, e quando entrou em casa beijou Francisca maquinalmente, sem a ver. Talvez fosse daquele calor sufocante ou do emprego precário que ameaçava levá-lo para o desemprego, mas o certo é que estava imensamente cansado, as pálpebras pesavam toneladas, as pernas estavam à beira de se tornarem insensíveis e quase não conseguia carregar a sua pasta com trabalho para casa.

Foi olhar-se no espelho e não se reconheceu. Sentia o cérebro vazio, o corpo e a alma tão distantes, como se lhe não pertencessem. Não jantou. Foi para o quarto e acendeu o pequeno candeeiro da cómoda. Deitou-se. Semicerrou os olhos e ficou a ver apenas aquela luminosidade frouxa que lhe amordaçava os sentidos. A escuridão conquistou-o definitivamente e o abismo do sonho, como uma goela escancarada começou a tomar conta dele. Depois deixou de se sentir.

As imagens voltaram, mas eram como se ele tivesse deixado de existir na sua forma sólida, ficando apenas ligado àquela dimensão irreal por um frágil filamento sem substância. Foi então que partilhou o calor de uma fogueira com os Templários do Santo Sepulcro, jogou xadrez com Tamerlão e assistiu a colossais batalhas cósmicas ao lado de Flash Gordon. Passeou com Helena junto das muralhas de Tróia, ensinou Pinóquio a mentir com mais subtileza e foi recebido com pompa na tenda de Sandokan. Assistiu à queda de Constantinopla, escutou deliciado alguns contos de Sherazade, chapinhou com Tom Sawyer e Huckleberry Finn nos sapais do Mississipi e andou na borga com os Três Mosqueteiros. Procurou em vão Sindbad pelos quatro cantos do mundo, escapou por pouco à matança de Chicago, cruzou-se discretamente com Romeu e Julieta, galopou com Marco Polo pela interminável Rota da Seda e conversou pela noite dentro com Júlio Verne.

Navegou com Leif Erickson pelo árctico rumo ao Novo mundo, esbarrou com Gulliver no reino de Lilliput, visitou a ciclópica Atlântida antes do grande dilúvio e singrou o mar Egeu para ir despertar os fogos de Olímpia. Construiu máquinas de guerra concebidas pelo mestre Leonardo, reviu o rei Artur junto às muralhas de Tule, discutiu à luz da candeia com Dickens, bebeu água nas nascentes do Ganges com Alexandre da Macedónia, namoriscou Alice no País das Maravilhas e adormeceu sob um ulmeiro à vista de Shangrila. Viu passar Napoleão a caminho de Santa Helena, perseguiu Moby Dick no baleeiro do capitão Ahab, entrou de roldão no Palácio de Inverno e assistiu de longe à morte inglória da bela Pompeia. Andou com Tim-Tim pelos trilhos do Tibet, viu ser construída a Grande Muralha da China, escutou Buda, acompanhou Jesus e mais tarde o Profeta, foi companheiro de Ulisses e cavalgou planícies sem fim, com os guerreiros da nação Sioux. Foi peregrino em Meca e Santiago de Compostela, voou com Peter Pan sobre os telhados de Londres, assistiu aos eclipses intermináveis das luas de Júpiter, colheu laranjas nos jardins suspensos de Babilónia e deixou-se perder nas minas de Salomão.

Tinha acabado de abandonar o oráculo do templo de Delfos e preparava-se para desvendar os mistérios da Grande Pirâmide quando sentiu que um leve e intemporal sopro de vento tropical o arrastara de novo para as fronteiras do real. Mesmo ébrio de gozo e aventura, voltara a encontrar o caminho do seu corpo. Sentiu que o sonho se volatizava, que iria voltar para o lado de cá, quando um inesperado e irresistível extraterrestre estendeu a sua mão esquálida e o convidou para entrar na sua nave, plena de cintilações, mistérios e segredos, como um imenso casulo de cristal. Deixou-se afogar naquela torrente de luz e percebeu que o estranho visitante lhe propunha uma grande e derradeira aventura, lá para a longínqua fronteira do universo, à beira da constelação do Cisne, onde os humanos são uma espécie muito rara. Não exibiu a sua visceral prudência e timidez. Não negociou nada, nem sequer o regresso. Pura e simplesmente, aceitou o desafio e partiu.

Eram onze e meia da noite quando a Francisca terminou a lida doméstica, e depois de uma curta passagem pelos programas da televisão, entrou no quarto para ir dormir. A chegada da noite ainda não refrescara aquela atmosfera pesada de Agosto. A luz fraca e esborratada do candeeiro da cómoda atraíra uma borboleta que voluteava impertinente, desenhando fugazes e imprecisas sombras chinesas nas paredes do quarto. Nem quis acreditar quando viu que o seu Mário já lá não estava. Foi até ao corredor e chamou pelo Mário, mas o Mário não respondeu. Dele apenas restavam um leve calor deixado naquele lado da cama e o vago vestígio de que a sua almofada estivera ocupada.


Parte II

A SUA VIAGEM durou onze dias, com curtas e escassas paragens. Extasiado, levaram-no até ao outro lado do universo, como se fosse uma coisa já ali, ao virar da esquina. Inacreditável! Viu explosões de estrelas supernovas, colisão de galáxias e contornou os vórtices devoradores de buracos negros. Arregalou os olhos perante biliões e biliões de inusitados objectos celestes, dançou nos braços espiralados das nebulosas, espreitou de longe planetas desertos e outros habitados, acercou-se de colossais mundos jupiterianos, cruzou-se com Vega, Cassiopeia e Alfa do Centauro, corpúsculos filamentosos, gases, poeiras e destroços de estrelas moribundas, viajou lado a lado com cometas e asteróides e ouviu como ruído de fundo, algumas vozes a articularem línguas estranhas. Sequioso e esfomeado, onze dias depois voltou à Terra, materializou-se nas coordenadas de onde partira, e não reconheceu nada.

Estava deitado no chão, alagado em suor, já não existia a sua cama, nem o seu quarto, nem o seu apartamento do décimo andar, nem o prédio onde habitara, e quando chamou pela Francisca, nem o mais subtil eco do seu chamamento se ouviu. Levantou-se e olhou à sua volta. Tudo lhe era estranho. Fora largado naquilo que parecia ser uma espécie de museu de antiguidades, recheado de mastodônticas locomotivas a vapor, tenders e carruagens centenárias restauradas, manequins fardados de fogueiros, agulheiros, revisores e chefes de estação, e moveu-se pasmado por entre aquelas relíquias reluzentes de outros tempos. Chamou de novo por Francisca e nada, de Francisca nem um suspiro, nem um ai. Atónito, espreitou por um dos janelões e lá fora reconheceu o antigo edifício da Câmara Municipal, o seu jardim fronteiro agora mais cuidado, que tantas vezes atravessara, nas suas idas e vindas de casa para o trabalho, e vice-versa, com aquele pitoresco coreto, recheado de arabescos, onde uma vez por outra tocavam as bandas lá do bairro. Encostou a testa à vidraça, fechou os olhos, reviu passagens da sua viagem galáctica, e pensou de si para si:
- Parece que voltei, mas não voltei, estou exausto e perdido!
Se queria enfrentar o exterior, não era descalço, com uma camiseta e uns calções mínimos que o podia fazer. Despiu e descalçou um manequim de bagageiro, e lá se ataviou o melhor possível. Depois, pelo sim, pelo não, voltou a consultar o calendário do seu relógio. Não há dúvida, tinham passado apenas onze dias, porém, tempo bastante para que tudo ficasse fora do tempo, mas não do lugar.

Saiu do museu e começou a andar em direcção ao jardim, voltando a concluir que, não fosse o caso de ter sido tragado por um qualquer universo paralelo, ou ter esbarrado com alguma deformação do espaço-tempo, não havia razão para duvidar que o seu relógio estava a funcionar correctamente. Curiosamente não havia automóveis e a balbúrdia do trânsito fora substituída por uma pacatez quase provinciana. Havia gente na rua, gente calma à mistura com gente apressada. As roupas que traziam vestidas eram ligeiramente diferentes das suas, mas não deixavam de ser pessoas por isso. Habituado como estava a que as diferenças fossem apenas aparentes, cruzou-se com um homem de meia-idade, pigarreou para aclarar a voz, e perguntou:
- Por favor, sabe dizer-me que dia é hoje?
- É Quarta, respondeu o homem, medindo-o curioso de alto a baixo.
- Não, não é isso, o que quero saber é em que ano e mês é que estamos, insistiu o Mário.
- Bem, hoje é 22 de Agosto de 2108. Está satisfeito? perguntou o outro, com uma ligeira expressão irónica a bailar-lhe no rosto, quase divertido por ver que ainda há gente que não sabe a quantas anda.
O Mário amparou-se a um banco do jardim e quase desfaleceu. Mais sério, o outro olhou-o de esguelha e perguntou:
- Sente-se mal, veja lá, precisa de alguma coisa?
O Mário fechou os olhos, passou a mão pelo queixo com barba de onze dias, balbuciou uma negativa, e começou a fazer contas de cabeça. 2108 menos 2015 dá uma pechincha de 93 anos, e a conclusão foi fácil de tirar. Salvo algum pormenor que lhe estava a escapar, já não valia de nada voltar a chamar pela Francisca.

Nota do autor – A Parte I foi escrita em Março de 1996, e publicada com o título “Viagem Fantástica”. A Parte II foi escrita em Março de 2014. Entre elas há uma ninharia de 18 anos autênticos, comparados com os 93 da ficção global.

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