Baseado numa novela de Kiyoko Murata, Rapsódia de Agosto é um filme que explora as cicatrizes deixadas pelos ataques atómicos sobre o Japão, neste caso particular, sobre a cidade de Nagasaki, durante a Segunda Guerra Mundial. Uma Avó (Sachiko Murase num desempenho de antologia) já em fim de vida, sobrevivente da grande hecatombe, reconstrói as suas memórias (avivadas pela notícia da existência de um irmão ainda vivo em terras da América) para os netos ainda jovens, que com ela passam aquele Agosto, eles que não têm qualquer memória sobre aqueles trágicos acontecimentos. Quando a Avó diz que a culpa foi da guerra, ela já excluiu tanto os vencedores como os vencidos, do seu papel de protagonistas, deixando a guerra esvaziada, como uma carcaça abjecta que deve ser odiada e repelida. Deixa também uma mensagem fundamental: a vida só tem algum sentido quando as pessoas são capazes de abrigar e manter vivas as suas memórias, mesmo que esbatidas e reduzidas a simples significados. A sabedoria está em expurgá-las dos ódios e emoções que teimam em envenenar a vida e as relações humanas. Porém, os fantasmas daqueles dias de fogo, morte e horror continuam, muitos anos depois, a vir habitar o dia a dia da Avó. Só a sua bondade e o exorcismo dos rituais budistas, consegue cauterizar aquelas memórias dolorosas, mais aquele gigantesco e pérfido olho que continua a povoar os seus sonhos. Naquela quietude do ambiente rural, para cá das montanhas, que se perfilam no horizonte, tudo se apazigua. Para lá delas continua a existir uma Nagasasaki, agora reconstruída, porém, no espírito de quem viveu aqueles tempos de morte, será sempre uma Nagasaki mártir.
Apesar da sua bucólica simplicidade, este é um dos mais belos libelos pacifistas que conheço, e demonstra bem o grande humanismo de que as pessoas são capazes para perdoarem algo, sem contudo o esquecerem. É um hino à vida e ao respeito pela diversidade, quando se vê o carreiro das formigas a serpentear até à roseira, revelando a comunhão entre a natureza e a humanidade, postada ali mesmo ao lado, cumprindo um ritual budista. O filme consuma-se e consome-se com uma corrida debaixo dum inclemente temporal, encerrando uma controversa simbologia. Os jovens, gente deste tempo, apesar de correrem desenfreadamente, não conseguem alcançar a velha Avó, uma mulher sábia mas quase tonta e trôpega, sobrevivente de outro tempo, tão grande é o abismo anímico que os separa. O magistral Akira Kurosawa foi o realizador desta pequena, mas fundamental, obra-prima.
E
Uma Verdade Inconveniente
(An Inconvenient Truth)
2006 – Realização de Davis Guggenheim
E
É um documentário com a duração de 1 hora e 40 minutos, onde Al Gore, ex-vice-presidente dos E.U.A., defende a tese de que estamos à beira de grandes transformações ambientais, por força de termos edificado a nossa actual civilização, desrespeitando algumas regras básicas de convívio e respeito pela natureza. As ideias enunciadas são claras, escorreitas, bem fundamentadas e documentadas, apresentadas de forma convincente, por um orador muito bem preparado. Sem aprofundar os temas, aborda o que é essencial saber-se sobre o aquecimento global e as alterações climáticas daí decorrentes. Sem cair na ficção científica, o documentário é apropriado e provoca impacto, sobretudo junto da classe estudantil e das pessoas menos esclarecidas. No fim, apercebemo-nos de como é notória a distância colossal que ainda separa as boas intenções das boas práticas, sobre um tema que todos consideram angustiante, mas que alguns insistem em ignorar (caso dos E.U.A.), enquanto outros persistem em continuar a adiar a solução para o dia seguinte. Como aspecto negativo deste documentário, refira-se a inserção ao longo dos capítulos, de vários apontamentos que pretendem aflorar pormenores biográficos de Al Gore e a sua militância ecológica. É uma pequenina manobra, nada ingénua, que tem tanto de desnecessária como de decepcionante. Se Al Gore ambicionava um Nobel e um Óscar (este último já o conseguiu), o estratagema, sem desacreditar o mérito do trabalho, vem deixar uma ligeira mancha naquilo que poderia ter nota máxima.
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O Leopardo
(Il Gattopardo)
1963 - Luchino Viscinti
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Há filmes que não me canso de rever. O Leopardo, de Luchino Visconti, foi coisa que me fez salivar durante muitos anos, limitando-me a revê-lo nos fogos-fátuos que persistiam na minha memória, e de que só agora me consegui desedentar, com a recente edição em DVD. Baseado na obra homónima de Giuseppe Tomasi Di Lampedusa, descreve os momentos mais conturbados da vida de uma família da aristocracia rural siciliana, dando especial atenção ao seu patriarca, o Príncipe Don Fabrizio De Salina (Burt Lancaster). O tempo é o do Risorgimento italiano, ocorrido à volta de 1860, aquando do levantamento do guerrilheiro José Garibaldi, que conduziu à unificação italiana. Toda a Itália estava em ebulição, em mudança. Uma aristocracia proprietária, mas quase falida, perdia terreno para uma burguesia inculta, meia labrega, mas patriota, endinheirada e cheia de iniciativa. À desintegração das grandes famílias sucedia-se a ascensão das classes médias. O filme é marcado, desde o início, por uma frase que fica a latejar até ao fim: “algo terá que mudar para que tudo fique na mesma". Quer isto dizer que no turbilhão das revoluções, mudar a forma para que o conteúdo permaneça o mesmo, é sempre o desejo oculto de quem está na eminência de perder poder, regalias e privilégios. O príncipe De Salina, embora aristocrata, era um homem com ideias liberais, logo já não era propriamente um puro exemplar dos tempos antigos, mas também não estava preparado para aceitar as mudanças que aí vinham. As ancestrais fidelidades e a sua dignidade falavam mais alto. Estava na fronteira entre os dois mundos, um que sucumbia e outro que despontava. Vivia de corpo inteiro as rupturas políticas e a sua decadência como classe dominante. O oportunismo, a versatilidade e o disfarce eram atributos que não tinham lugar no seu modo de vida. Mas esses novos tempos, continuavam a necessitar do envolvimento da fidalguia, para assumirem uma imagem de credibilidade. Portanto, acenam-lhe com um compensador lugar de senador, que ele acaba por rejeitar. Não aceita fazer batota, logo não entra no jogo. Entre o desertar e ficar, escolhe ficar. Como ele próprio diz, aquele que foi leopardo não pode tornar-se chacal. A sua decência não tem preço, não é negociável. Toda a sua energia vai então convergir para retardar o seu próprio eclipse, estabelecendo laços familiares com a nova sociedade emergente, para o que promove o casamento do seu sobrinho Tancredi (Alain Delon) com Angélica (Cláudia Cardinale), a filha de um rico comerciante com ambições políticas. O baile de apresentação de Angélica à sociedade, é o corolário final do seu desencanto, a passagem de testemunho de um poder que já não lhe pertence. E aquela valsa em que ele rodopia nos braços da bela Angélica, não é mais do que a confrontação da frescura e juventude que desponta, com a sua velhice que se torna inevitável. Baile que na sua parte final, é a mais expressiva e clarividente imagem do declínio da alta sociedade, que dança, come, bebe, trocando cortesias e futilidades, numa patética exibição da sua perfeita inutilidade.
Pelo meio há muitos outros momentos únicos de cinema. Como a chegada e a recepção à família De Salina a Donnafugata, para a sua habitual estadia anual, os cumprimentos das forças vivas e a austeridade da missa, que é um autêntico fresco cinematográfico. Os sinais da cruz e as rezas do terço da beata princesa De Salina, entre duas carícias do príncipe. Os lamentos do príncipe, quando diz que tem sete filhos e nunca conseguiu ver o umbigo da mulher. O príncipe a aconselhar o padre a tomar um banho de vez em quando. A perseguição e o jogo de escondidas, recheado de volúpia e sedução, entre Tancredi e Angélica, pelas salas abandonadas do palácio. Os diálogos entre o príncipe e o padre, com este último a querer manter o seu ascendente no seio da família. Mais a rusticidade das pessoas, a atmosfera, o vento, o pó, as paisagens violentas, as sombras, as cores fortes, as transparências e a luz siciliana, tão envolvente e arrebatadora. Mais a banda sonora irrepreensível de Nino Rota. Mais os pincéis e a paleta de um Luchino Visconti, único na história do cinema. Como disse no início deste apontamento, há filmes que não me canso de rever.
Publicado em http://cinema.ptgate.pt/main.php
Apesar da sua bucólica simplicidade, este é um dos mais belos libelos pacifistas que conheço, e demonstra bem o grande humanismo de que as pessoas são capazes para perdoarem algo, sem contudo o esquecerem. É um hino à vida e ao respeito pela diversidade, quando se vê o carreiro das formigas a serpentear até à roseira, revelando a comunhão entre a natureza e a humanidade, postada ali mesmo ao lado, cumprindo um ritual budista. O filme consuma-se e consome-se com uma corrida debaixo dum inclemente temporal, encerrando uma controversa simbologia. Os jovens, gente deste tempo, apesar de correrem desenfreadamente, não conseguem alcançar a velha Avó, uma mulher sábia mas quase tonta e trôpega, sobrevivente de outro tempo, tão grande é o abismo anímico que os separa. O magistral Akira Kurosawa foi o realizador desta pequena, mas fundamental, obra-prima.
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Uma Verdade Inconveniente
(An Inconvenient Truth)
2006 – Realização de Davis Guggenheim
E
É um documentário com a duração de 1 hora e 40 minutos, onde Al Gore, ex-vice-presidente dos E.U.A., defende a tese de que estamos à beira de grandes transformações ambientais, por força de termos edificado a nossa actual civilização, desrespeitando algumas regras básicas de convívio e respeito pela natureza. As ideias enunciadas são claras, escorreitas, bem fundamentadas e documentadas, apresentadas de forma convincente, por um orador muito bem preparado. Sem aprofundar os temas, aborda o que é essencial saber-se sobre o aquecimento global e as alterações climáticas daí decorrentes. Sem cair na ficção científica, o documentário é apropriado e provoca impacto, sobretudo junto da classe estudantil e das pessoas menos esclarecidas. No fim, apercebemo-nos de como é notória a distância colossal que ainda separa as boas intenções das boas práticas, sobre um tema que todos consideram angustiante, mas que alguns insistem em ignorar (caso dos E.U.A.), enquanto outros persistem em continuar a adiar a solução para o dia seguinte. Como aspecto negativo deste documentário, refira-se a inserção ao longo dos capítulos, de vários apontamentos que pretendem aflorar pormenores biográficos de Al Gore e a sua militância ecológica. É uma pequenina manobra, nada ingénua, que tem tanto de desnecessária como de decepcionante. Se Al Gore ambicionava um Nobel e um Óscar (este último já o conseguiu), o estratagema, sem desacreditar o mérito do trabalho, vem deixar uma ligeira mancha naquilo que poderia ter nota máxima.
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O Leopardo
(Il Gattopardo)
1963 - Luchino Viscinti
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Há filmes que não me canso de rever. O Leopardo, de Luchino Visconti, foi coisa que me fez salivar durante muitos anos, limitando-me a revê-lo nos fogos-fátuos que persistiam na minha memória, e de que só agora me consegui desedentar, com a recente edição em DVD. Baseado na obra homónima de Giuseppe Tomasi Di Lampedusa, descreve os momentos mais conturbados da vida de uma família da aristocracia rural siciliana, dando especial atenção ao seu patriarca, o Príncipe Don Fabrizio De Salina (Burt Lancaster). O tempo é o do Risorgimento italiano, ocorrido à volta de 1860, aquando do levantamento do guerrilheiro José Garibaldi, que conduziu à unificação italiana. Toda a Itália estava em ebulição, em mudança. Uma aristocracia proprietária, mas quase falida, perdia terreno para uma burguesia inculta, meia labrega, mas patriota, endinheirada e cheia de iniciativa. À desintegração das grandes famílias sucedia-se a ascensão das classes médias. O filme é marcado, desde o início, por uma frase que fica a latejar até ao fim: “algo terá que mudar para que tudo fique na mesma". Quer isto dizer que no turbilhão das revoluções, mudar a forma para que o conteúdo permaneça o mesmo, é sempre o desejo oculto de quem está na eminência de perder poder, regalias e privilégios. O príncipe De Salina, embora aristocrata, era um homem com ideias liberais, logo já não era propriamente um puro exemplar dos tempos antigos, mas também não estava preparado para aceitar as mudanças que aí vinham. As ancestrais fidelidades e a sua dignidade falavam mais alto. Estava na fronteira entre os dois mundos, um que sucumbia e outro que despontava. Vivia de corpo inteiro as rupturas políticas e a sua decadência como classe dominante. O oportunismo, a versatilidade e o disfarce eram atributos que não tinham lugar no seu modo de vida. Mas esses novos tempos, continuavam a necessitar do envolvimento da fidalguia, para assumirem uma imagem de credibilidade. Portanto, acenam-lhe com um compensador lugar de senador, que ele acaba por rejeitar. Não aceita fazer batota, logo não entra no jogo. Entre o desertar e ficar, escolhe ficar. Como ele próprio diz, aquele que foi leopardo não pode tornar-se chacal. A sua decência não tem preço, não é negociável. Toda a sua energia vai então convergir para retardar o seu próprio eclipse, estabelecendo laços familiares com a nova sociedade emergente, para o que promove o casamento do seu sobrinho Tancredi (Alain Delon) com Angélica (Cláudia Cardinale), a filha de um rico comerciante com ambições políticas. O baile de apresentação de Angélica à sociedade, é o corolário final do seu desencanto, a passagem de testemunho de um poder que já não lhe pertence. E aquela valsa em que ele rodopia nos braços da bela Angélica, não é mais do que a confrontação da frescura e juventude que desponta, com a sua velhice que se torna inevitável. Baile que na sua parte final, é a mais expressiva e clarividente imagem do declínio da alta sociedade, que dança, come, bebe, trocando cortesias e futilidades, numa patética exibição da sua perfeita inutilidade.
Pelo meio há muitos outros momentos únicos de cinema. Como a chegada e a recepção à família De Salina a Donnafugata, para a sua habitual estadia anual, os cumprimentos das forças vivas e a austeridade da missa, que é um autêntico fresco cinematográfico. Os sinais da cruz e as rezas do terço da beata princesa De Salina, entre duas carícias do príncipe. Os lamentos do príncipe, quando diz que tem sete filhos e nunca conseguiu ver o umbigo da mulher. O príncipe a aconselhar o padre a tomar um banho de vez em quando. A perseguição e o jogo de escondidas, recheado de volúpia e sedução, entre Tancredi e Angélica, pelas salas abandonadas do palácio. Os diálogos entre o príncipe e o padre, com este último a querer manter o seu ascendente no seio da família. Mais a rusticidade das pessoas, a atmosfera, o vento, o pó, as paisagens violentas, as sombras, as cores fortes, as transparências e a luz siciliana, tão envolvente e arrebatadora. Mais a banda sonora irrepreensível de Nino Rota. Mais os pincéis e a paleta de um Luchino Visconti, único na história do cinema. Como disse no início deste apontamento, há filmes que não me canso de rever.
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