domingo, agosto 07, 2005

A Senha 98


Andava pelas nove e meia da manhã é já fazia um calor dos diabos. O Xavier e a Mafalda entraram na repartição e já o espaço regurgitava de gente que aguardava para ser atendida, obedientemente sentada numa imensa plateia, organizada em quatro filas de assentos, virados para os gabinetes de atendimento separados por biombos e encimados pelo painel electrónico de chamada, onde era suposto desfilarem os números. Foram até ao dispensador de senhas e calhou-lhes o número 98, antecipando a ideia de que a espera iria ser longa, já que o atendimento ainda se ficava pelo número 11, e dos doze gabinetes de atendimento que se alinhavam ao longo do imenso espaço, apenas quatro estavam operacionais.
O ar condicionado zumbia, as pessoas iam segredando comentários, alguns passavam a vista pelas revistas e jornais, enquanto que outros que haviam madrugado, aproveitavam a espera para agarrarem novamente o sono interrompido.
Os funcionários, entretanto, iam consumindo o tempo a fazer e receber telefonemas, a bebericarem café, a visitarem-se uns aos outros nos gabinetes de atendimento, trocando trivialidades, e até alguém lá do fundo comentou em voz de trovão que tinha acabado o papel para as impressoras, e assim era impossível trabalhar. E ali estava a assistência, impávida e tolerante, a assistir ao espectáculo matinal, com o mesmo número 11 a assomar lá no painel, como uma sentinela, na sua imobilidade confrangedora.
- Já são quase dez horas e isto não ata nem desata, exclamou a Mafalda. Tu ficas aqui a ver o andar da carruagem, enquanto eu aproveito para ir até às finanças tratar do outro assunto. Ficas com a senha e se entretanto chamarem, já sabes...
- Tá bem, respondeu o Xavier.
Viu a Mafalda dirigir-se para a saída, cruzando-se com um indivíduo que vinha a entrar, que não tirou senha e disparou um sonoro cumprimento.
- Ora então bom dia, pessoal!
- Olha, olha, quem aqui está, sibilou uma criaturinha que acabava de pôr o telefone no descanso, e se levantou para cumprimentar o recém-chegado.
- Já viram, o Leandro veio matar saudades... e correu ligeira a interromper a escassa produtividade dos outros gabinetes, enquanto o tal Leandro andava por ali a girar, a gesticular, a distribuir beijinhos e abraços, ao passo que o número 11 continuava lá no cimo a contemplar a assistência que começou a agitar-se incomodada.
- Então mas isto é para hoje ou será que viemos para acampar? Ouviu-se alguém dizer.
- Mas afinal quem é que manda aqui nesta chafarica? Atirou para o ar um homem corpulento e com voz de barítono que se tinha levantado e começou a assomar à entrada dos gabinetes.
- Tenha lá calminha, vá-se lá sentar outra vez que isto já vai andar, respondeu uma funcionária com óculos de meia cana, equilibrados na ponta do nariz.
- Calminha uma ova! Vim aqui para ser atendido e isto mais parece um teatro de robertos que uma repartição... há quase uma hora que não chamam ninguém, ripostou o indignado cidadão.
Finalmente tocou a gaita e o painel saltou para o número 12. Daí para a frente os números começaram a suceder-se a uma cadência razoável, porém, eram muitos os utilizadores que, por força da lentidão do atendimento, ou já haviam desistido, ou tal como a Mafalda, tinham aproveitado a modorra para ir tratar de outros assuntos.
Por alturas do número 50 houve nova pausa. Havia muitas chamadas telefónicas a inundar o ambiente e começava a faltar o papel nas impressoras. Alguém se ausentou para ir buscar umas resmas. Mais um café, mais um bolinho, mais uma chalaça, e o teatrinho lá ia andando mais comedido, não fosse o tal cidadão com ares de estivador investir, outra vez, contra a pacatez da repartição. Dez minutos depois chegou o papel, alimentaram-se as impressoras, e pelas onze e meia os números voltaram a correr no painel, agora a uma cadência alucinante, porque muita gente não estava presente, isto é, tinha abandonado o barco. Dava para perceber que tudo aquilo tinha a ver com um processo de eliminação bem congeminado, em que era posta à prova a paciência, tenacidade, perseverança e capacidade de resistência de quem aguardava a vez de ser atendido.
Entretanto a Mafalda regressou.
- Então, em que número vai? Perguntou ela.
- Agora já não falta muito. Então, conseguiste? Perguntou o Xavier.
- Nada. A repartição estava fechada e tinha um letreiro na porta a dizer que mudaram para o Parque das Nações em Abril.
- Homessa, mas na página da internet indicavam aquela morada, ripostou o Xavier.
- Pois é! Se calhar o choque tecnológico ainda lá não chegou àquelas bandas... adiantou a Mafalda com o suplemento do jornal a fazer de leque.
Entretanto aproximava-se o meio-dia, acelerava-se o ritmo dos números nos painel e viam-se algumas pessoas, meio atarantadas, a inquirirem o número dos gabinetes.
- Prepara-te, está quase no 98, advertiu o Xavier.
A Mafalda levantou-se, com a papelada debaixo do braço e ficou de olhos pregados no painel, à espera do toque da gaita.
Tocou e apareceu o 98.
- Olha é no gabinete 12, mesmo lá para o fundo, disse o Xavier, ao mesmo tempo que a Mafalda arrancava à desfilada.
Toca a gaita novamente e cai o 99 para o mesmo gabinete 12. O Xavier arqueou a sobrancelha.
- Olá, tá visto que o pessoal tomou o freio nos dentes, rosnou o Xavier a arquear a sobrancelha, a levantar-se, ajeitar o cinto das calças e a ir no encalço da Mafalda.
O homem da senha 99 tinha chegado primeiro, mas fez um compasso de espera ao ver a Mafalda a aproximar-se, exibindo a senha 98, e mais atrás o Xavier a expelir vapor.
- Faça favor, como tem havido tantas desistências pensei que estava com sorte...
- Não, não, grasnou a funcionária lá de dentro do gabinete, com voz de cana rachada. O 98 já perdeu a sua vez, tem que ir tirar outra senha.
O Xavier assomou ao gabinete e começou a arregaçar as mangas.
- Vai-me bater? Quis saber a empregada.
- Não, que ideia, estou só a começar a ferver, esclareceu o Xavier para adiantar logo de seguida:
- Mas se ela não for atendida, quem é atendida é você, mas na urgência do hospital.
- Bem, se o senhor do 99 deixar passar o 98 à frente, não há crise, não há problema... adiantou a sonsa a empertigar-se atrás da secretária.
- O senhor do 99 já disse que sim. Em que ficamos? Perguntou o Xavier.
- Pronto, pronto, ninguém vem para aqui para se divertir, arriscou a mulher.
- Deste lado não, mas desse lado parece que sim. Já agora quero o livro de reclamações e dar uma palavrinha ao responsável desta “coisa”, atalhou o Xavier.
- Acho que não é possível satisfazer o seu pedido...
- Então porquê? Quis saber o Xavier.
- O livro extraviou-se e o chefe foi lá fora comprar uns pastéis de nata e ver se arranjava mais papel para as impressoras...

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