sábado, fevereiro 17, 2007

Muita Incúria e Pouca Terra

M
As empresas portuguesas do sector ferroviário, são uma fonte inesgotável de casos, que vão do invulgar até ao trágico. O recente acidente do vale do Tua insere-se na segunda categoria. 120 anos depois da sua inauguração (1887), até 12 de Fevereiro deste ano, sem qualquer acidente digno de registo, e sendo um dos mais belos percursos ferroviários do país, serpenteando por entre uma paisagem agreste, de princípio do mundo, ocorreu uma tragédia. Por razões ainda insuficientemente explicadas, uma automotora que fazia o troço entre Tua e Mirandela, descarrilou e despenhou-se pela ladeira sobranceira ao rio Tua, provocando três mortos e dois feridos.
Em 2001, a REFER produziu um relatório que aconselhava a correcção de alguns problemas e anomalias daquele percurso ferroviário, porém, tal como acontece abundantes vezes em Portugal, o referido relatório, se não foi ignorado, acabou por cair no esquecimento. Mais uma vez a incúria e o desprezo pelas condições de segurança, falaram mais alto. Entretanto, a CP já vinha considerando o troço altamente deficitário, tudo fazendo no sentido de levar ao encerramento da exploração, vendendo material circulante e recusando-se a fazer novos investimentos. Agora, após este acidente, a Secretaria de Estado dos Transportes decidiu instaurar mais um inquérito, para apurar o que é que correu pior, entre aquilo que já corria mal. As conclusões foram rápidas. Depois de ter sido dito que o percurso tem sido vistoriado com frequência (???), salta-se para a conclusão de que o acidente resultou de uma circunstância, que tem tanto de insólita como de infeliz coincidência, isto é, um pedregulho assassino desprendeu-se lá de cima, exactamente no momento em que ia a passar a automotora, embatendo contra ela e provocando o descarrilamento e a queda no abismo. Tudo isto me faz lembrar o caso da ponte de Entre-os-Rios, onde a justiça acabou por concluir que não houve responsáveis materiais pelo colapso da estrutura, contrariando provas e factos. A minha teoria é um pouco diferente. Devido à falta de protecções e escoramento, as chuvadas arrastaram tudo o que era pavimento debaixo dos carris. Sem terra e sem cascalho, a linha ficou desapoiada, autenticamente suspensa no vazio. Aproxima-se a automotora, falta-lhe o apoio, a linha torce-se sob o peso, a automotora inclina-se perigosamente, perde o centro de gravidade e precipita-se no despenhadeiro, só parando na margem do rio e ficando meio submersa. Pelo caminho ficaram três mortos e dois feridos. A foto do local do acidente, publicada pelo jornal PÚBLICO de 14 de Fevereiro de 2007, nas páginas 2 e 3, é bem ilustrativa: não há pavimento debaixo dos carris. Por outro lado, há as declarações de um dos sobreviventes do acidente, que afirmou ter ouvido o maquinista exclamar a propósito do estado do troço, momentos antes do acidente, além de não se ter apercebido de nenhum impacto antes da automotora começar a despenhar-se. Isto reforça a crença de que há a preocupação em desfigurar a verdade, culpando o mau tempo (tal como em Entre-os-Rios) e os calhaus, as únicas coisas que estavam ali mais à mão e não têm voz para contestar. Este comportamento desculpabilizador, também é próprio de quem deixou de se preocupar com a manutenção dos equipamentos existentes (estradas, pontes, linhas ferroviárias, etc.), para apenas acolher as obras novas, bem mais atraentes e rentáveis, tais como a rede de autoestradas, as OTAs e os TGVs. Pelo meio vão-se ocultando as negligências, as incúrias e incompetências, que umas vezes pagamos com os impostos e as novas tarifas, e uma vez por outra, também pagamos com a vida.

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