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Transcrição do artigo do director do semanário Expresso, Henrique Monteiro, publicado na edição de 27 de Março de 2010, com o título "A propósito de um falso desmentido de Sócrates” . O título do post é de minha autoria.
O director do EXPRESSO, Henrique Monteiro, responde ao primeiro-ministro, que em entrevista ao "JORNAL DE NOTÍCIAS" o acusou de não ter falado verdade aos deputados da Comissão Parlamentar de Ética, Sociedade e Cultura.
"1. Na comissão de ética do Parlamento, em resposta a uma pergunta do deputado do PS João Serrano sobre se alguma vez o primeiro-ministro me pressionara, respondi sim. Que me pedira para não publicar uma notícia sobre a sua licenciatura na Universidade Independente. No sábado passado, numa entrevista ao "Jornal de Notícias", o primeiro-ministro referiu-se a esse facto nos seguintes termos: "Esse depoimento é falso. Essa conversa não ocorreu como foi descrita. O depoimento diz tudo sobre pessoas que são capazes de dar a sua versão sobre uma conversa privada e que o fazem de forma cobarde, quando não está a outra presente, para o desmentir".
Quero deixar bem claro que fui educado de forma a não mentir. Menos ainda numa Comissão Parlamentar. Fui educado por pessoas que tinham e têm da democracia e da liberdade um alto conceito, algumas delas pagando um preço elevado por isso. Estudei no Colégio Moderno e os valores que me transmitiram foram os mesmos que os da minha família: sou um homem livre e vou continuar a sê-lo.
2. O telefonema que refiro foi na noite de 29 para 30 de Março de 2007 (de quinta para sexta-feira, antes da saída da notícia). Foi feito para mim, depois de um assessor de Sócrates ter também telefonado, com modos mais suaves. O assessor era José Almeida Ribeiro, hoje secretário de Estado-adjunto do primeiro-ministro, mas dessa conversa nada tenho a dizer - foi cordial e correcta, naturalmente expressando o ponto de vista do chefe do Governo.
Seguiu-se o telefonema do primeiro-ministro - e, de facto, foi bem pior do que eu contei na Comissão de Ética: além de me ter pedido para eu não publicar o texto em causa, o telefonema decorreu no meio de berros exaltados por parte do chefe do Governo. Podem pensar que me foi indiferente - não foi. Ninguém fica indiferente quando o dever o obriga a fazer algo que deixa outro ser humano tão exasperado, tão fora de si, tão desagradavelmente mal-educado.
Infelizmente - por uma estrita consciência deontológica e pelo sentido de dever - não tive outra alternativa senão publicar essa notícia, recolhida por duas jornalistas e que estava devida e rigorosamente sustentada.
O primeiro-ministro falou, na mesma noite, com outro membro da direcção do Expresso sobre este assunto e fê-lo também de forma desagradável, pouco cordata, não só não compreendendo o nosso dever e a nossa missão como recusando-se a:
a) Fazer qualquer desmentido ou comentário à notícia que tínhamos;
b) Escrever exactamente o que nos estava a dizer (sem os insultos), de forma a publicarmos o seu ponto de vista;
c) Esclarecer o que quer que fosse sobre o assunto (recordo que só o fez na RTP, muito depois de o caso ter começado).
Quero ainda deixar claro que, nos tempos subsequentes, e até à Comissão Parlamentar de Ética, nunca referi este facto. Fi-lo na Comissão porque um deputado, como se pode ver na gravação disponível na Assembleia da República, me perguntou directamente se tinha sido pressionado por Sócrates. Verifico também - e acho grave - que o primeiro-ministro entende ser um acto de cobardia envolvê-lo numa resposta a um deputado, numa Comissão de Ética. Lamento que o chefe do Governo não tenha percebido que eu não estava num grupo de amigos, nem num debate televisivo, mas na sede da democracia portuguesa onde ao lado da estátua da eloquência - que Sócrates tem em abundância - está a da Justiça - que ele não entende.
3. Mas quanto a cobardia, gostava ainda de acrescentar uma coisa: só uma vez tinha referido esta pressão - foi ao próprio José Sócrates, por carta.
Essa carta veio a propósito de uma acusação que o primeiro-ministro me fez, numa entrevista à "Visão", a 15 de Outubro de 2009. Cito Sócrates: "Vou-lhe contar um episódio com o Expresso. Numa entrevista, em 2005, o director do jornal perguntou-me: 'Então, o pior já passou?'. E eu respondi: 'O pior é sempre o que está para vir...'. Título do Expresso: 'O pior está para vir'. São episódios como este... Não gosto que coloquem as minhas palavras nas mãos de editores que estão ávidos de uma frase bombástica, embora não correspondendo àquilo que eu disse".
Ainda que tudo isto fosse verdade, se este é o melhor exemplo de mau jornalismo que Sócrates tem, dê-se por feliz; eu tenho bem piores. Mas é mentira... O título que saiu (em 4 de Março de 2006 e não 2005, como Sócrates por lapso diz) pode ser consultado em qualquer arquivo e foi "O mais difícil está por fazer". Aliás, toda a entrevista, antes de publicada, foi revista pelo primeiro-ministro, tendo as suas objecções sido tomadas em conta - possibilidade, aliás prevista no nosso Código de Conduta..
Foi por isso que, numa carta que lhe enviei no mesmo dia em que aquela acusação me foi feita - e da qual tenho o protocolo de entrega -, lhe dei conta da confusão que fizera e da injustiça que cometera ao acusar-me de algo que não fiz. Nessa mesma carta, de 15 de Outubro de 2009 - muito antes, repito, de haver qualquer Comissão de Ética ou de inquérito, tinha Sócrates acabado de ganhar as eleições -, escrevi ainda: "Nunca me queixei do facto de me teres pressionado para retirar a notícia da licenciatura". O primeiro-ministro nunca teve a iniciativa, nem a hombridade, de repor a verdade das suas declarações à "Visão", nem a educação de me responder, apesar de nos conhecermos há muitos anos, muito embora não fôssemos amigos chegados (como jornalista acompanhei o PS durante anos, o que justifica o tratamento por tu). Sócrates não pode, pois, queixar-se de cobardia da minha parte. Nem eu lhe devolverei o insulto.
4. Nada disto abala as minhas convicções de homem livre. Sei bem o que José Sócrates pretende: dramatizar, extremar e colocar-me a mim e ao Expresso na linha de fogo dos inimigos do Governo e do PS. Mas, do mesmo modo que o Expresso nunca se colocou contra ou ao lado de governos, sem nunca abdicar do seu direito de crítica (mesmo quando o seu patrão era o primeiro-ministro), assim eu me mantenho no meu caminho, com bons amigos em todos os quadrantes, incluindo no Governo e no PS, alguns meus familiares.
Nem Sócrates é o país, nem Sócrates é o PS. Quem, como eu, já passou por 17 governos e 10 primeiros-ministros, sem qualquer desmentido ao seu trabalho, passará também de cabeça erguida por este."