ERAM para aí umas sete da manhã daquela Quinta-feira, quando o meu pai entrou no meu quarto e veio acordar-me, antecipando-se ao despertador. Ele estava excitadíssimo, com o rádio do quarto dele com o volume mais alto que o habitual, enquanto ia comentando:
- Passa-se qualquer coisa... de dez em dez minutos, estão a dar comunicados de um comando das forças armadas, a dizer para nos mantermos calmos e não sairmos de casa..., dizia-me ele nervoso, ainda em traje de pijama e a passar a máquina de barbear de uma mão para outra, enquanto que do seu quarto vinham os sons pouco comuns de trechos de música clássica, sem interrupções de publicidade, à mistura com algumas marchas militares.
- Desta vez é que é! Exclamei eu, sentado na cama, a fazer tentativas para espantar aquele sono pegajoso. - Afinal aquilo em 15 de Março, sempre foi um ensaio! Levantei-me e fui até ao quarto do meu pai, à espera de mais novidades da Rádio Clube Português.
- Aqui posto de comando do Movimento das Forças Armadas, vamos passar a ler um comunicado dirigido à população, anunciava a voz calma mas decidida do locutor. Logo a seguir mais marchas militares entrecortadas de apelos à calma e pedidos para nos mantermos em casa, para não perturbar as operações militares em curso.
- Desta vez é que é! Voltei a repetir, convencido sabe-se lá de quê.
- Vamos lá a ver se não é uma golpada dos ultras, intercalava o meu pai. Não te esqueças que há meia dúzia de dias os generalotes foram todos ao beija-mão do Caetano, por isso não deitemos foguetes, voltou a adiantar o meu pai, cheio de inquietação, a calcorrear, vezes sem conta, o curto percurso entre a casa de banho e o quarto. Os tratos-de-polé por que passara nas mãos da PIDE, há uns anos atrás, e os quatro anos de reclusão no reduto Norte do Forte de Caxias, aconselhavam-no a ser cauteloso, e a não embandeirar em arco aos primeiros sinais.
OITO e meia da manhã. Saímos de casa, cada um para seu lado, eu com o transístor no bolso com pilhas novas, para ir sabendo mais novidades. Como ia casar-me daí a um mês, precisava de telefonar da cabine pública do café Tatu (não havia telefone em nossa casa), para aconselhar calma e ninguém se assustar. Depois fui até à empresa. Pelo caminho vi passar no Campo Grande, talvez vinda do Lumiar, uma coluna de carros de combate em andamento acelerado. Na empresa onde trabalhava, na zona do Saldanha, circulava a informação que todos estavam dispensados.
Entretanto, e porque as notícias não adiantavam grande coisa, rumei à Rua das Enfermeiras da Grande Guerra, a casa da minha futura mulher. Voltei cá fora pelas duas da tarde e lá consegui descobrir, na Rua do Forno do Tijolo, uma leitaria de portas meio abertas, para me reabastecer de café e cigarros. Um cliente ocasional ia contando que o Caetano estava no Quartel do Carmo, cercado pelas tropas revoltosas. À saída vi passarem forças militares. Em passo acelerado fui atrás delas. Em Sapadores perguntei para que lado é que a tropa tinha ido. Informaram-me que tinham tomado o caminho da Rua da Penha de França. Fui até lá. Estava a ser iniciado o assalto ao quartel-general da Legião Portuguesa. Fiquei algum tempo por ali, a assistir ao lançamento de muita papelada pelas janelas, e à apreensão do armamento ultramoderno, muito dele ainda encaixotado, que por lá estava acumulado.
Voltei à Rua das Enfermeiras da Grande Guerra e, finalmente, à noite a televisão iniciou uma emissão improvisada que confirmava definitivamente que daquela vez é que o regime tinha caído, que a longa noite tinha expirado, e as nossas vidas iam tomar novo rumo. Hoje só tenho palavras para balbuciar um grande obrigado a meu pai, a todos aqueles que também sofreram as perseguições do regime, e sobretudo, a todos os corajosos capitães de Abril.
NOTA - Excerto de um texto de minha autoria, publicado em 25 de Abril de 2001, com o título "Daquela Vez é Que Foi!"