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segunda-feira, dezembro 06, 2010

WikiLeaks vs Big Brother

VOLTEMOS ao WikiLeaks. A propósito da documentação que o WikiLeaks tem estado a divulgar, e tanto furor está a provocar, entre as virgens ofendidas e escandalizadas que proliferam por este mundo fora, tenho algumas considerações a fazer. Antes de mais, quer-me parecer que E-MAILS e TELEGRAMAS, muitos deles CONFIDENCIAIS e SECRETOS, trocados entre embaixadas e departamentos de estado, e vice-versa, não são exactamente difusão ilícita de PENSAMENTOS e COISAS PRIVADAS, em tudo semelhantes a elucubrações de CONFESSIONÁRIO, como muita gente se esforça por fazer crer. Parecem-me antes a lícita denúncia do que há de mais (im)puro EXERCÍCIO DO PODER, onde a baixeza, e os jogos de interesses, falam mais alto do que a transparência, o consenso e a concertação. Depois de se certificar que o produto é genuíno, o WikiLeaks não faz juízos de valor sobre o que divulga; limita-se a exibir as provas e a deixar nas nossas mãos, o trabalho de avaliar a densidade e peso daquilo que transferiu para o domínio público (antes de tempo, dizem alguns).

Existir um WikiLeaks, além de ser uma pedrada no charco dos nossos descontentamentos, acaba por comprovar a grande vantagem e benefícios que se podem obter das sociedades abertas e democráticas. Mas também sabemos que há quem, embora se considere um genuíno democrata, não esteja pelos ajustes de haver tanta liberdade à solta, pois ela deve ser servida em doses reduzidas, bem medidas e controladas, de forma a que não seja posta em causa a habitual liberdade ilimitada de alguns poucos, em prejuízo da liberdade condicionada de todos os outros, ou que a regra de haver metade do mundo a esforçar-se para enganar a outra metade (para eles, o ideal seria haver uma minoria a enganar uma maioria), se veja substituída pelas boas práticas. E não é por acaso, que do lado das tais virgens pudicas, agora ofendidas e escandalizadas, habitualmente indisponíveis para conviverem com algumas verdades inconvenientes, façam de conta que nunca ouviram falar de tudo aquilo que anda a ser tramado, muito antes de existir o tal WikiLeaks, que agora se quer emudecer a qualquer preço, bem como ao seu mentor, para o qual foi pedido, em directo na televisão, pelo ex-conselheiro do Governo canadiano, Tom Flanagan, o seu assassínio/linchamento a frio, sem direito a julgamento nem nada.

Preocupado fico eu, quando sei que existe um sistema denominado ECHELON, nascido nos idos de 1980, baseado numa complexa rede de rastreio de comunicações via satélite e estações terrestres, que cobre todo o planeta, criada e mantida pela Agência de Segurança Nacional (NSA) dos Estados Unidos, com a participação do Reino Unido, Canadá, Austrália e Nova Zelândia, e que tem por função efectuar a interceptação e escuta, a nível mundial, de todas as telecomunicações (cabo submarino, rádio, internet, fax, telemóvel, gps), que possam ser consideradas ameaças àquilo que, eufemisticamente, se convencionou chamar de “segurança mundial”, actuando através da interconectividade de todos os sistemas de escuta, e exercendo uma vigilância permanente sobre uma larga fatia da Humanidade.

Preocupado ando eu (*), quando sei que existe em desenvolvimento um sistema europeu de vigilância que monitoriza e processa continuamente a informação colhida de várias fontes e origens, tais como câmaras de vídeo-vigilância (CCTV), comunicações telefónicas e os vários recursos disponibilizados pela internet, tais como sites, blogs, e-mail, redes e fóruns de discussão, com o objectivo de detectar, uma coisa tão vaga e abrangente como "ameaças", e outros "comportamentos suspeitos e anormais", em todo o espaço da União Europeia. O sistema é conhecido por Projecto Indect, tem um site na Internet (o endereço é
http://www.indect-project.eu/), auto-define-se como "Intelligent Information System Supporting Observation, Searching and Detection for Security of Citizens in Urban Environment", e os seus críticos assumem que é uma criação sinistra, destinada a promover a devassa da privacidade, tratando-se de uma ferramenta essencial para uma futura polícia federal ou serviço de informações pan-europeu, que venha a ser criado, à imagem e semelhança da norte-americana CIA.
Como é compreensível, seremos muito ingénuos se acreditarmos que o dispositivo se destina apenas a trazer debaixo de olho e com rédea curta os "meninos maus" que infestam o Velho Continente, e não visa chegar mais longe, fazendo espionagem e controle cerrado sobre os 491 milhões de potenciais suspeitos, que são toda a população da União Europeia.
Este Projecto Indect, a par do já muito falado sistema Echelon, a versão gerida pela NSA (National Security Agency) que já espia há alguns anos a população norte-americana, bem como a de outros países que aderiram ao sistema, é o elo que faltava para que o planeta se transforme numa colossal penitenciária, onde cada um de nós, sem excepção, ficará equipado com uma invisível "pulseira electrónica", que nos manterá numa espécie de prisão preventiva e sob constante vigilância.
Curiosamente, mas isso percebe-se, não é feito segredo da existência destes sistemas, antes pelo contrário. Os seus mentores e criadores sabem que, apenas por divulgá-los, geram no subconsciente dos cidadãos um sinal de alerta ou condicionamento, convidando-os a auto-censurarem-se, seja nos protestos a que aderem, nas interrogações que suscitam, nas opiniões que têm, ou mesmo nas opções que tomam, e que esse comportamento, ao estar sob permanente escrutínio, gera, por sua vez, o MEDO das consequências que daí podem resultar. (**)

Preocupado estou eu, quando sei que existe um sistema denominado SWIFT (abreviatura de Society for Worldwide Interbank Financial Telecommunication), o qual é, nem mais nem menos, que um consórcio que gere a comunicação de transferências de dinheiro entre bancos de diferentes países, funcionando em regime de quase monopólio, e que após o 11 de Setembro passou a ser acedido pelas autoridades americanas (sem disso os europeus se terem apercebido), dizem eles que com o objectivo de detectarem movimentos bancários suspeitos, que pudessem traduzir eventuais financiamentos de redes terroristas. Depois de alguns supostos mal-entendidos e peripécias do estilo, então digam lá o que é que querem, e outros de acerto de pormenores, os E.U.A. dispõem agora do acordo da União Europeia para rastrear e espiolhar o que muito bem entenderem, fazendo tábua-raza das soberanias, isto é, à revelia dos parlamentos nacionais de todos os estados-membros. Como afirmou o historiador e deputado europeu Rui Tavares ao abordar este caso, «podemos considerar que, apesar das garantias, essa base de dados lá estará, e será em si mesma uma arma poderosa e uma tentação. Há um argumento a considerar que nos diz que não devemos colocar nas mãos das democracias os instrumentos a que não gostaríamos que as ditaduras tivessem acesso. Os regimes mudam, os tratados caducam, as administrações americanas e europeias têm visões muitos diferentes do que é possível e desejável fazer em caso de emergência

Resumindo: Preocupado continuo eu, quando sei que o direito à privacidade, a protecção de identidades e de dados, o controlo democrático são tudo expressões que, apesar de todas as garantias e precauções, passam ao lado destas ferramentas gigantescas, que dispõem de colossais meios e recursos para acompanhar (por onde andamos, com quem falamos, o que pensamos, o que fazemos) cada uma das nossas 24 horas diárias, sete dias da semana, 30 dias do mês e 365 dias do ano das nossas vidas. Quem tiver dúvidas do que aqui se disse, que se disponha a ganhar algum tempo, fazendo algumas consultas ao Google, e já não ficará tão confundido ou convencido, com os argumentos indignados e pseudo-moralistas que, a propósito dos atrevimentos do WikiLeaks, andam por aí a ser propagados, isto para já não falar do cordão sanitário que os governos todo-poderosos estão a tecer, para tentarem isolar o WikiLeaks da opinião pública. É bom que se diga que o WikiLeaks é uma resposta teimosa, corajosa e vigorosa, contra o planeta concentracionário e arrepiante em que nos querem aprisionar.

(*) Este parágrafo sobre o Projecto Indect foi publicado por mim, num artigo autónomo, intitulado “491 Milhões de Suspeitos”, em 2009 Outubro 8, neste mesmo blog.

(**) Cá em Portugal, a Câmara Municipal de Lisboa, mais preocupada em descobrir quem eventualmente deixou abandonado na rua um saco com lixo, fora dos contentores, do que com outras necessidades da cidade e dos seus munícipes, numa versão doméstica e menos elaborada de controle de “actividades suspeitas”, dispõe de umas equipas de “detectives” especializados, que vasculham o lixo desses sacos solitários, em busca de restos de endereços de correspondência ou de outros vestígios incriminadores, com o objectivo de identificarem e aplicarem multas aos infractores.