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quarta-feira, agosto 17, 2011

Revisitando o Quarteto de Alexandria (Clea)

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Alexandria, a capital da memória! Todos os escritos que eu fui buscar aos vivos e aos mortos, até eu próprio me tornar numa espécie de “post-scriptum” de uma carta que nunca foi remetida. (…) Agora encontrava-me perante a natureza do tempo, essa doença da alma humana. Tive de admitir a minha derrota como cronista. E todavia, de forma bastante curiosa, o mero acto de escrever dotou-me ainda de outra espécie de amadurecimento, pelo próprio fracasso das palavras que se afundam e se perdem uma após outra nas insondáveis cavernas da imaginação. (considerações de Darley, o narrador)

- Passaram-se muitas coisas depois de ter começado a guerra. O doutor Balthazar esteve muito doente. Sabe das intrigas de Hosnani na Palestina? Toda a organização se desmantelou. Os egípcios tentam confiscar-lhe os bens. Já se apoderaram de muita coisa. Sim, agora são pobres e longe de estarem livres de apuros. Ela tem residência fixa em Karm Abu Girg. Há muito tempo que ninguém a vê. Por privilégio especial, ele trabalha como condutor de ambulâncias nas docas. Muito perigoso. Durante um bombardeamento, ele perdeu um olho e um dedo. (…)
- Mas a guerra tem também outras vantagens. Corto o cabelo a todo o exército. A minha barbearia está sempre cheia. Três salões, doze empregados! Você vai ver, é estupendo. Como diz o nosso amigo Pombal: “você agora faz a barba aos mortos enquanto eles ainda estão vivos”. (Mnemjian, o barbeiro, põe Darley, o narrador, ao corrente do que se passou na sua ausência)

Eu tinha-a gasto como a um velho par de meias e o absoluto dessa desaparição surpreendeu-me e revoltou-me. Podia o “amor” gastar-se assim? Melissa, repeti, ouvindo o eco desse nome bem-amado ressoar no silêncio. O nome de uma planta triste, o nome de um peregrino a Elêusis. Era ela agora menos que um perfume ou que um sabor? Seria simplesmente um feixe de referências lioterárias gatafunhadas nas margens de um poema insignificante? (…) Melissa não passara de um dos muitos disfarces do amor. (Darley, o narrador, conjecturando sobre Melissa)

- Eu que julgava saber tudo sobre o amor – disse ele com ar sonhador, como falando com a sua imagem, enquanto compunha a barba com os dedos – nunca tinha imaginado uma coisa semelhante. Se há um ano me tivessem dito as coisas que estou prestes a contar-lhe, eu teria respondido: Bah! Isso não passa de uma obscenidade trovadoresca! São detritos da Idade Média. (confidências de Pombal)

Parecia muito mais magra. Erguendo alto o candelabro aproximou-se um passo e, depois de mergulhar ansiosamente os seus olhos nos meus, pousou os lábios num beijo gelado e breve sobre a minha face direita. Aquilo era frio como um obituário, seco como um pergaminho. (Darley, o narrador, reencontra Justine)

- A morte de Narouz recaiu sobre Nessim porque os coptas do povo dizem que foi ele quem a ordenou. Tornou-se para ele numa espécie de maldição familiar. A mãe dele está doente, mas afirma que nunca mais voltará a esta casa. (…) E assim aqui nos encontramos os dois encerrados. Passos as noites lendo – sabe o quê? – um maço de cartas de amor que ela abandonou. Cartas de amor de Mountolive! Mais confusão, mais recantos inexplorados. (confissões de Justine a Darley, o narrador)

O homem inventou a música para confirmar a sua solidão. (pensamento de Clea)

Mas que tarefa! Ficamos para aqui, enquanto o tempo passa, a fazer conjecturas. Todas as espécies de tempo que se escoam pela ampulheta, o tempo de uma eternidade, o tempo de um instante e o tempo do esquecimento; o tempo do poeta, do filósofo, da mulher grávida, do calendário… (dissertação de Balthazar)

Ela estava sentada no mesmo lugar onde (naquele primeiro encontro) eu tinha visto Melissa contemplando a sua xícara de café com um ar de ceptismo divertido, o queixo apoiado nas mãos. (…) Mas agora não era Melissa quem estava ali, era Clea, com a sua cabeça loura debruçada sobre a xícara de café, guardando um ar de meditação infantil. (Darley, o narrador, reencontra Clea)

A chuva caía em torrentes, como sucede frequentemente em Alexandria antes da alvorada, refrescando o ar, lavando as folhas ressequidas das palmeiras e dos jardins municipais, as grades de ferro… (…) Do porto, os odores de alcatrão, do peixe e das redes salgadas inundando as ruas vazias para enfrentar as rajadas inodoras do deserto… (imagens de Alexandria)

E se a personalidade humana for uma ilusão? E se, como nos diz a biologia, cada célula do nosso corpo é substituída por outra num período de sete anos? Quando muito, o que eu tenho nos braços é uma fonte de carne, jorrando continuamente, e no meu espírito um arco-íris de poeira. (pensamentos de Darley, o narrador)

Ela encontrava-se à janela vendo por detrás das cortinas corridas a aurora romper sobre os telhados da cidade árabe, nua e esbelta como um lírio do oriente.
(…) Chamei docemente Clea mas ela não me ouviu; voltei a adormecer. Sabia agora que Clea partilharia tudo comigo, sem restrições – sem mesmo ocultar aquele olhar de cumplicidade que as mulheres reservam para os espelhos.
(…) Volto-me para Clea adormecida e ponho-me a estudar o perfil sereno a fim de ingeri-la, bebê-la toda sem perder uma gota, fundindo nas suas as palpitações do meu coração. (…)
- É desleal olhar para uma mulher adormecida. (Darley e Clea)

Comprámos-lhe todos qualquer coisa, com a intenção de lhe restituir quando a tormenta passasse. Os Cervoni compraram os cavalos árabes, Ganzo o automóvel, que depois revendeu a Pombal, e Pierre Balbz o telescópio. Como não tinha lugar onde guardá-lo, Mountolive permitiu-lhe depositá-lo da residência de Verão, um sítio ideal. (recordações de Clea)

Dei por mim lendo estas passagens dos cadernos de Pursewarden com toda a atenção e humor que eles mereciam e sem pensar em ofender-me – para usar a expressão de Clea. (…) Em suma, é sempre salutar saber o que pensa francamente de nós uma pessoa a quem admiramos. (Darley, o narrador, lendo escritos do falecido Pursewarden)

Por exemplo, eu não habitava permanentemente em casa dela, porque quando Clea trabalhava numa tela que reclamasse toda a sua atenção tinha necessidade de vários dias de solidão. (Darley, o narrador, falando sobre Clea)

- Peço-lhe desculpa, mas… é o meu único meio de conhecer as feições das pessoas.
E senti bruscamente os seus dedos doces e tépidos deslocando-se rapidamente sobre o meu rosto, como se estivessem lendo um texto em Braille… (Liza, a noiva cega de Mountolive, conhecendo Darley, o narrador)

Clea tinha ido ao Cairo, e não a esperava. Levei a maleta para o apartamento dela e, sentando-me no chão, abri-a. (…) Comecei a tremer como na presença de um grande génio, a tremer e a balbuciar. Com um choque interior descobri que em toda a literatura conhecida nada existia de comparável! Todas as obras-primas de Pursewarden empalideciam diante dessas cartas de um brilho e de uma prolixidade furiosa e expontânea. (…) Nesta estranha e arrepiante experiência tive por um momento a intuição do verdadeiro Pursewarden – o homem que sempre me escapara. (Darley, o narrador, lendo a correspondência de Pursewarden para sua irmã Liza)

Eu, Darley, tudo o que posso afirmar é que cinco ou seis amantes francesas, várias voltas ao mundo e numerosas aventuras em tempo de paz não me ensinaram tanto como esta guerra. (confissão de Darley, o narrador)

Enquanto eu saía, fechando docemente a porta do quartinho, veio-me ao espírito uma frase de Pursewarden: “o amor mais rico é o que se entrega ao arbítrio do tempo.” (recordação de Darley, o narrador)

Sim, nesse dia surpeendi-me a escrever com a mão trémula as três palavras que todos os rapsodos da Terra pronunciam desde que o mundo é mundo para concitar a atenção do auditório. Palavras que simplesmente anunciam a maturidade de um artista: “era uma vez…”
E senti-me como se o Universo me tivesse piscado o olho!

Apêndice

Sim, ao lado da janela, a cama
Banhada pelo sol daquela tarde,
Separámo-nos às quatro horas
Apenas por uma semana…
Nunca pensei que esses sete dias
Pudessem não ter fim.

NOTA – Ilustração de Fernando Torres

quarta-feira, agosto 10, 2011

Revisitando o Quarteto de Alexandria (Mountolive)

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Outra personagem:

Amaril, o médico, colega de Balthazar, que tem tanto de Pigmaleão como de Frankenstein.

Colectânea de citações ao correr da leitura:

Montaram e tomaram o caminho de casa. Mandando o intendente avançar adiante com a lanterna, Leila aproximou o seu cavalo do cavalo de Mountolive, para que os seus joelhos se tocassem e para que o contacto dos seus corpos apaziguasse em parte a sede dos seus sentidos. Eram amantes havia apenas dez dias, mas para o jovem Mountolive esses dez dias tinham sido uma eternidade de alegria e desespero. (recordações de Mountolive)

Nessim detestava o derramamento de sangue, o trabalho manual e as maneiras rudes; Narouz sentia prazer em tudo isso.(…)
A fortuna da sua família tinha entrado em conflito com a fortuna dos Hosnani, porque, como sempre nestes casos, um casamento era uma espécie de associação entre duas grandes companhias. (…)
A Europa para os egípcios não passava de um mercado onde os ricos se iam abastecer. (Leila, traçando o perfil da família Hosnani)

Segunda-feira. Ali afirma que as estrelas cadentes são pedras lançadas pelos anjos para afastar os demónios que se aproximam do paraíso a fim de escutar as conversas onde se enunciam os segredos do futuro. Todos os árabes têm medo do deserto, mesmo os beduínos. Que estranho! (anotação do diário de Mountolive)

- Mas que sabe você, que sabem os ingleses dos coptas, se é que alguma vez se preocuparam em conhecê-los? Uma obscura heresia religiosa, pensam eles, uma linguagem alterada com uma liturgia irremediavelmente mesclada de elementos árabes e gregos. Quando os primeiros cruzados tomaram Jerusalém, foi expressamente proibido aos coptas penetrar na cidade – a nossa cidade santa. Os cristãos do ocidente nem sequer sabiam distinguir entre os muçulmanos que os tinham derrotado em Askelon e os coptas – o único ramo da igreja que foi totalmente integrado no oriente! E quando o vosso bispo de Salisbury declarou abertamente que considerava esses cristãos orientais mais execráveis que os infiéis, os vossos cruzados massacraram-nos alegremente. (palavras do patriarca Hosnani)

Não lhe parece estranho que, para nós, nunca tenha havido conflito entre a cruz e o crescente? Esse conflito foi uma criação puramente ocidental, tal como a noção da crueldade muçulmana. Os muçulmanos nunca perseguiram os coptas por motivos religiosos. Pelo contrário, o próprio Alcorão respeita Jesus como um verdadeiro profeta, um percursor de Maomet. (Nessim discorrendo sobre a tolerância religiosa)

A nomeação verificou-se nos fins desse Outono. Foi uma surpresa ver-se afectado à legação de Praga, pois tinham-lhe dado a entender uma colocação no consulado do Levante, onde a sua experiência do árabe poderia ser útil. Mas, vencida a decepção, aceitou a sua sorte e entregou-se à contradança que o Foreign Office pratica com uma eloquente impersonalidade. (Mountolive e os espinhos da carreira diplomática)

O antigo amor metamorfoseou-se lentamente em admiração até que o seu desejo físico (tão irritante no princípio) se transformou numa ternura despersonalizada e devoradora, que, em vez de diminuir, mais se nutria com a ausência. (Mountolive sobre Leila)

E pontualmente, enquanto os anos se sucediam no calendário e ele mudava de lugares, a imagem de Leila era projectada com as cores e as experiências dos países que passavam diante dele: Japão constelado de cerejeiras, Lima dos narizes aquilinos, Portugal melancólico e insípido, Helsínquia afogada em neve. (Mountolive por outras terras com o pensamento em Leila)

Não escreva enquanto eu não estiver em condições de poder ler; estou coberta de ligaduras dos pés à cabeça. Sucedeu-me qualquer coisa de terrível e definitivo. (…) É uma estranha experiência ver o nosso próprio rosto crivado de craterazinhas e ranhuras, como uma paisagem familiar depois de uma explosão. Temo ter de me acomodar à sensação de me haver transformado numa velha feiticeira. (Leila escrevendo a Mountolive, depois de ter sido atacada de varíola)

Por exemplo, tem ideias reaccionárias, o que o torna mal visto pelos colegas que o acusam de simpatias fascistas; repugnam-lhe os esquerdistas - e com efeito detesta toda a espécie de radicalismo. Mas exprime as suas opiniões sem rancor e sem paixão. Não consegui, por exemplo, fazê-lo falar sobre a guerra de Espanha. (Mountolive a avaliar Pursewarden)

Devemos preocuparmo-nos mais com os valores do que com a política. Hoje tudo isso me faz pensar num espectáculo ridículo de sombras chinesas, porque governar é uma arte, não uma ciência, da mesma forma que a sociedade é um organismo e não um sistema. (convicções de Pursewarden)

- Para começar, a mulher em questão – disse Nessim friamente – é judia, e bem sabe o terror absurdo que os coptas sentem pelos judeus. Temos mesmo um provérbio que diz “se deixares entrar a raposa judia na tua vinha, ela acabará por te devorar o coração”. (Nessim fala a Mountolive sobre o seu futuro casamento com Justine)

No decurso da sua carreira tinha concitado a inimizade do outro, sem saber porquê, pois nunca houvera entre os dois qualquer atrito concreto. Mas a coisa ali estava, como um nó na madeira. (a propósito de um colega de Mountolive do Foreign Office)

Pegou no moinho de orações tibetano colocado sobre a secretária e deu-lhe uma ou duas voltas, escutando o débil atrito no interior do tambor, abafado pelos bocadinhos de papel amarelado onde penas piedosas tinham escrito havia muito tempo a invocação “Om Mani Padme Aum”. Fora um presente de seu pai no momento da despedida. (Mountolive na casa de seus pais em Inglaterra)

Desde que o exército descobriu que a cobardia é essencialmente um produto da inteligência, começou a produzir os Maskelynes, educando-os em todas as virtudes da estupidez: uma espécie de apatia turca. O desprezo pela morte transformou-se em desprezo pela vida, e um tal tipo de homem só aceita a vida segundo as suas normas. (excerto de uma carta de Pursewarden a Mountolive)

“Mas se casa, torna-se amante de outro homem, um estrangeiro ainda por cima”. Falava de Darley, o amável e míope compatriota que às vezes habita nos aposentos de Pombal. Ganha a vida como professor e escreve romances. Tem um crâneo gentil e arredondado de bebé, como às vezes se encontra nos intelectuais; ligeiramente curvado, cabelos louros e aquela timidez que acompanha as grandes emoções imperfeitamente dominadas. (…) De qualquer maneira, esse Darley deve ter qualquer encanto, porque também conquistou as graças de uma artistazinha de cabaret chamada Melissa. (Mountolive descrevendo Darley, o narrador, Justine e Melissa, a propósito de um comentário de Pursewarden)

Foi uma festa sumptuosa e bárbara, e toda a Alexandria veio prestar homenagem a Mountolive, como para festejar o regresso de um filho pródigo, embora ele de facto pouca gente conhecesse além de Nessim e sua família. Mas agradou-lhe reencontrar Balthazar e Amaril, os dois inseparáveis médicos que estavam constantemente a implicar um com o outro; e Clea, que conhecera em tempos na Europa. (Mountolive chega a Alexandria vindo do Cairo)

Depois pediria a transferência (…) Havia qualquer coisa naquele Egipto de imensidões sufocantes, de vazios ardentes, com os seus monumentos de granito aos faraós mortos, necrópoles tornadas cidades, que o sufocava. (projectos pessoais de Pursewarden)

Os seus abraços eram semelhantes aos das figuras de gesso sobre um túmulo clássico. Ela acariciou-lhe os flancos, os rins, o pescoço, as faces, com as suas mãos experientes, apoiando aqui e ali os dedos na sombra, dedos de cega procurando um painel secreto numa parede, o botão que faria jorrar a luz iluminando um outro mundo, fora do tempo. (Melissa com Pursewarden)

Por acaso e de forma totalmente inesperada descobri o acerto das teorias de Maskelyne sobre Nessim e o erro das minhas. Não lhe confiarei a minha fonte, mas sei agora que Nessim introduz armas na Palestina, e isso já há algum tempo. (carta de Pursewarden a Mountolive pouco antes de se suicidar)

Por outro lado sabia, subconscientemente, que a mulher oriental não é uma sensualista no sentido europeu do termo; a pieguice não faz parte da sua constituição. Embora não o queira aparentar, está obcecada pelo poder, pela política e pelos bens materiais. (conjectura de Nessim ao contar a Justine os planos da sua conspiração)

Durante todo o verão e Outono os conspiradores organizaram uma série de festas de um esplendor raro na cidade. Agora, na casa de Nessim, não havia repouso, sempre animada de frescas e desusadas melodias de um quarteto de cordas, ou sacudida pelos sobressaltos viscerais dos saxofones, grasnando como patos no meio da noite. As cozinhas, vastas cavernas outrora desertas, fervilhavam agora com um exército de cozinheiros que mal acabavam de arrumar os destroços de uma festa sumptuosa começavam a preparar iguarias para o próximo banquete. (a casa de Nessim no auge das conspirações)

Em breve estariam lançados em caminhos que não tinham escolhido, aprisionados num campo magnético dominado pelas mesmas forças que provocam as marés ou que obrigam os salmões cintilantes a subir um rio. (as inquietações de Mountolive, Nessim e Justine)

- Dizer que os coptas retomarão o seu lugar ao sol é uma coisa; mas dizer que eles varrerão o regime corrupto dos paxás que possuem noventa por cento das terras… falar de se apoderar do poder no Egipto e de reformar a ordem…
- Ele diz semelhantes coisas? – balbuciou Nessim, e o velho confirmou gravemente com um gesto de cabeça. (Nessim confrontado com o fervor militante da Narouz)

- Se tudo correr de acordo com os planos.
- Tudo correrá de acordo com os planos.
- E depois?
- E depois? – Nessim espreguiçou-se bocejando e piscou o olho a Justine. – Havemos de tomar novas disposições. Da Capo desaparecerá; você partirá. Leila irá passar umas grandes férias no Quénia, com Narouz. E é tudo. (excerto de conversa entre Nessim e Justine)

Nessim, Justine, Leila – tinham agora um ar substancial, como projecções de um sonho agindo num mundo habitado por inexpressivos bonecos de cera. Era difícil conceber que lhes devesse sequer algum amor. (desânimo de Mountolive)

Defrontava-o uma senhora egípcia de idade incerta, de rosto lavado e balofo, profundamente lavrado pela varíola e com os olhos grotescamente pintados com antimónio. (Mountolive reencontra Leila)

Mountolive sentia como se uma barreira interior estivesse a ponto de se quebrar, como uma barragem que cede. Teve então a ideia de ir jantar ao bairro árabe, simplesmente, humildemente, como um amanuense ou um pequeno comerciante da cidade. (Mountolive desiludido)

NOTA – Ilustração de Fernando Torres

quinta-feira, agosto 04, 2011

Revisitando o Quarteto de Alexandria (Balthazar)

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Escrevi na introdução ao Quarteto que “os estudiosos da obra de Durrell dizem que o Quarteto de Alexandria foi uma obra inspirada na teoria da relatividade”. Engano meu! Acontece que não foram os estudiosos mas sim o próprio Durrell que o manifestou, na nota introdutória de Balthazar, com as seguintes palavras: as personagens e situações deste romance, o segundo de um grupo – constituindo este um “sósia” e não uma continuação de JUSTINE – são inteiramente imaginárias, tal como a personalidade do narrador. Mas a cidade é o menos irreal possível. A literatura moderna não nos oferece nenhum exemplo de Unidades, e em consequência disso voltei-me para a ciência e tentei realizar um romance em quatro dimensões cuja forma assenta no princípio da relatividade.
Três partes de espaço e uma de tempo, eis aqui a receita para engendrar um “continuum”. Os quatro romances obedecem a este plano. (…)

Maioritariamente baseado em comentários feitos sobre o rascunho de romance do Narrador, Balthazar é a segunda “camada” do Quarteto de Alexandria, ou melhor, uma visão diferente da realidade que foi apresentada em Justine. Às personagens apresentadas naquela obra, acrescentam-se novas figuras, intervenientes em Balthazar:

Narouz Hosnani, irmão de Nessim
Leila, mãe de Nessim e Narouz
Keats, o jornalista
Darley, o Narrador que passa a ter um nome

Colheita de citações ao correr da leitura:

Justine, Melissa, Clea… Éramos tão poucos que na verdade um livro devia ser suficiente para esgotar-nos (…) Na verdade eu via as minhas amantes e amigos não mais como seres humanos e vivos mas como criações coloridas da minha mente, eram agora habitantes do meu livro, não da cidade, como figuras de tapeçaria (…) O quadro que desenhei era provisório – como o painel de uma civilização perdida deduzido de uns escassos fragmentos de vasos, uma tábua com caracteres confusos, um amuleto, alguns ossos humanos e uma máscara mortuária de ouro, sorridente. (ponderações do Narrador sobre o seu projecto de romance)

Nós vivemos – escreve algures Pursewarden – vidas baseadas sobre uma selecção de ficções. A nossa perspectiva da realidade é condicionada pela nossa posição no espaço e no tempo, e não pela nossa personalidade, como geralmente se crê. Assim, cada interpretação da realidade baseia-se sobre uma posição única. Dois passos para leste ou para oeste e o quadro muda inteiramente. Ou qualquer coisa parecida…

Um diário é a última fonte a que o historiador deve recorrer para conhecer o seu autor. Ninguém se atreve a ser sincero no papel: pelo menos quando se trata de amor. (observação do Narrador)

No princípio os jovens, tal como a vinha, apoiam-se sobre os tutores dos mais velhos, que sentem prazer em suportar sobre eles os dedos doces e meigos; mais tarde são os velhos que se apoiam nos belos corpos dos jovens para descer o rio da morte. (citação de Balthazar)

O barbeiro muitas vezes não tinha tido sequer tempo de se barbear, tendo chegado a toda a pressa do hospital onde acabava de escanhoar um morto. Encontrávamo-nos aqui nas cadeiras acolchoadas, diante dos espelhos, por um breve instante, antes de nos dirigirmos às respectivas ocupações: Da Capo para se encontrar com os seus corretores, Pombal para a sensaboria do consulado francês (mal disposto, boca amarga, sensação de ter caminhado toda a noite de cabeça para baixo), eu para a escola onde ensinava, Scobie para a repartição da Polícia, e assim por diante…
(…) Aquelas mímicas lembravam-me um pouco os heróis dos romances ingleses diante de uma chaminé Tudor, fustigando as botas com o chicotinho e tomando ares de superioridade.
(…) Adormeceu de novo e desta vez filtrava-se pelos seus lábios um ligeiro assobio irritante. Retirei-lhe com cuidado o cachimbo de entre os dedos e acendi um cigarro. Esta maneira de aparecer e desaparecer, num simulacro de morte, tinha qualquer coisa de comovedor. Estas pequenas visitas a uma eternidade que em breve se tornaria seu domicílio, na companhia de … (observações do Narrador)

Um dia dissera com um leve suspiro: nada mais fácil de organizar nesta cidade do que uma morte ou um desaparecimento. (Balthazar citando Scobie)

Nessim possuía a pureza inodora do ar do deserto, do deserto estival, secreto e seco. Puro. Como ela odiava essa pureza! E depois? Sim, revoltava-a também a cruzinha de ouro aninhada nos cabelos do seu peito. Era um copta – um cristão. É assim que trabalha em segredo o espírito das mulheres. (Balthazar conjecturando sobre os preconceitos de Justine)

A pobreza obrigava-a a servir de modelo, a tantas piastras à hora, para os estudantes de arte do Atelier. Clea, que apenas a conhecia de nome, passava certo dia na extensa galeria e, impressionada pela sombria beleza alexandrina do seu rosto, contratou-a para um retrato.
(…) Da mesma forma que uma prostituta pode ignorar que o seu cliente é um poeta que a imortalizará num soneto que ela nunca chegará a ler, Justine entregando-se a esses prazeres sexuais mais subtis, ignorava que eles deixariam, por muitos anos, uma marca indelével em Clea…
(…) Certas pessoas nasceram para dispensar o bem e o mal em maior medida do que as outras – são os veículos inconscientes de doenças que não podem tratar. (considerações de Balthazar sobre os amores de Clea e Justine)

Leila não admitia nenhum espelho no harém desde que a doença a tinha privado da sua própria estima; mas, na intimidade de um espelhinho de bolso de ouro, pintava os olhos – o único tesouro que lhe restava. (…) Era como um homem que cega e aprende a ler com o único órgão que lhe resta: as mãos. (Leila isolada com os seus danos da varíola)

Imaginar não é necessariamente inventar, da mesma maneira que se podem interpretar as acções dos outros sem nos proclamarmos omniscientes. (notas de Balthazar)

Ei-las, sentadas as duas, a esfinge velada e a descoberta, comendo as violetas cristalizadas que ambas odiavam. Deliciava-me observar as mulheres assim, no seu estado mais puro. (comentário de Balthazar sobre Leila e Justine)

Uma mulher não pensa duas vezes (se a paixão sanciona o crime) antes de enganar o marido; mas ser infiel a Nessim era como roubar a caixa das esmolas. (notas de Balthazar sobre Justine)

Os factos e os gestos mais inocentes – a visita a uma biblioteca, uma lista de compras, uma mensagem num cardápio – tornavam-se em provas aos olhos de um ciúme fundado na impotência sentimental. (notas de Balthazar sobre a relação de Nessim com Justine)

Os factos são instáveis por natureza. Narouz disse-me certo dia que amava o deserto porque lá o vento apaga o traço dos nossos passos como apaga uma vela. Assim, ao que me parece, faz também a realidade. (observações de Balthazar)

Pursewarden tinha lançado frases do género: “é um dever de todo o patriota odiar a sua pátria de uma maneira criadora”… (memórias de Balthazar)

Pursewarden oferecia um amor amargo, sem compaixão, mas de uma maneira curiosa que tornava os seus beijos excitantes. Eram tão vivos como a dentada de uma criança faminta numa maçã madura. (observações de Balthazar)

Os silêncios de Nessim tinham já atingido enormes proporções no seu espírito. Estendiam-se por todos os lados como o próprio deserto – enervando-a. (Balthazar comentando o relacionamento de Nessim com Justine)

O rosto de Pursewarden, na morte, recorda-me o de Melissa; tinham ambos o ar de quem acaba de gozar secretamente uma boa piada, adormecendo antes de o sorriso ter tempo de se apagar nos cantos boca. (Balthazar comentando o suicídio de Pursewarden)

Tremia de emoção, como se estivesse prestes a profanar um lugar santo com qualquer obscenidade irresistível, cuja significação crepitava no seu espírito como um raio, com uma beleza horrível e singular. (Afrodite consente todas as conjugações do espírito e dos sentidos na prática do amor). (Narouz imaginando-se a fazer amor com Clea)

Em pensamento vejo-os sempre assim, olhos nos olhos, de mão dada, muito juntos e todavia tão longe. O telefone é o símbolo moderno das comunicações que nunca se realizam. (Messim e Justine)

Suponho (escreve Balthazar) que se você desejar, de qualquer modo, incorporar no seu manuscrito de Justine aquilo que eu acabo de lhe contar, se encontrará em presença de um livro bastante curioso; será uma história contada em camadas sucessivas. (…) Estes são os pequenos depósitos aluvionários do tempo no lugar. Da mesma forma a vida deposita sobre o rosto do indivíduo, camada após camada, as rugas sucessivas da experiência onde é impossível discriminar a herança das lágrimas e do riso. Dejeções da experiência sobre as areias da vida… (sugestão de Balthazar ao Narrador, agora Darley)

Areias, roseirais e pedras brancas
De Alexandria – faróis do navegante,
Dunas que se esmagam e deslizam,
A areia beija o mar a todo o instante,
(…)
(versos gregos recitados por Justine para Darley, o Narrador)

As verdadeiras ruínas da Europa são os seus grandes homens. (das notas estenografadas de Keats)

Memorandum
Quantos amorosos, depois de Pigmaleão, conseguiram moldar na carne o rosto da amada, como o fez Amaril? - perguntava Clea. O grande tabuleiro de narizes para ele escolher um – de Nefertiti a Cleópatra. Um trabalho de paciência numa sala sombria.

NOTA – Ilustração de Fernando Torres

sábado, julho 30, 2011

Revisitando o Quarteto de Alexandria (Justine)

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QUEM é quem, ao longo de todo o Quarteto:

Alexandria, a cidade mágica, sempre presente
O Narrador, professor e candidato a escritor cujo nome não é revelado
Justine, a esposa de Nessim
Nessim, o rico negociante copta
Melissa, a dançarina de cabaré
Balthazar, o médico e cabalista
David Mountolive, o embaixador britânico
Cohen, o peleiro, antigo amante de Melissa
Clea, a pintora
Pombal, o diplomata
Pursewarden, o diplomata e escritor
Scobie, o decadente oficial da Ordem do Império Britânico
Mnemjian, o barbeiro anão e corcunda, natural de Babilónia
Jacob Arnauti, primeiro marido de Justine
Capodístria, o homem da pala negra
Selim, o criado de Nessim
Hamid, o criado berbere do Narrador

Recolha de citações:

As nossas acções quotidianas nada mais são que os ouropéis que velam o vestido de ouro – a essência da forma. É na sua arte que o artista encontra, pela imaginação, um feliz compromisso com tudo quanto o feriu na vida quotidiana, e não para escapar ao seu destino, como faz o homem vulgar, mas para realizá-lo da forma mais adequada e completa que lhe for possível. (reflexão do Narrador)

- Olha! Cinco imagens diferentes da mesma pessoa. Se eu fosse escritor tentaria descrever uma personagem assim, através de uma visão prismática. Porque será que não podemos ver mais do que um perfil de uma só vez? (comentário de Justine, numa visita à modista)

Lastimo-o, diz ela. Tem o coração empedernido e tudo quanto lhe resta são os cinco sentidos, como os fragmentos de um copo quebrado. (Justine classificando Capodístria)

Na sua vida passional ela era directa, como um machado que cai. Recebia os beijos como a tela recebe as pinceladas do pintor. (…) Ela toma o amor como uma planta absorve a água, naturalmente, cegamente. (Jacob Arnauti numa avaliação de Justine, sua ex-mulher)

Encontro-me no centro do corpo da cidade, no seu sistema génito-urinário; é um lugar excelente para perder quaisquer ilusões. (afirmação de Balthazar, referindo-se às suas funções no hospital de Alexandria)

Ah!, minha querida, depois de todas as obras dos filósofos sobre a alma e dos cientistas sobre o corpo, que existe que possamos afirmar conhecer, realmente, sobre o homem? Que afinal de contas ele não é mais do que uma passagem para os líquidos e para os sólidos, um cano de carne. (Balthazar conversando com Justine)

E que posso dizer da própria Cabala? Alexandria é uma cidade de seitas e evangelhos. E, para cada asceta, ela produziu sempre um religioso libertino. (congeminações do Narrador)

Falo-lhe agora como membro da Cabala e não a título pessoal. Amar apaixonadamente, ainda que à própria mulher, é cometer adultério. (advertência de Balthazar a Justine)

Compreendi, então, a verdade do amor: um absoluto que tudo aceita ou tudo despreza. Os outros sentimentos, a compaixão, a ternura, e assim por diante, só existem à periferia, são aquisições da vida social e do hábito. (considerações do Narrador)

É preciso ser-se extraordinariamente ignorante para crer em Deus. Creio que, pela minha parte, soube sempre o bastante para não cair nessa armadilha. (confissão de Pursewarden ao Narrador)

Fui chefe de escuteiros, depois de reformado. Mas tive que sair de Inglaterra, meu velho. A tensão era excessiva para mim. Esperava a cada semana ler no News of the World: «Mais um jovem vítima dos imundos desejos do seu monitor»
(…)
O monitor que me antecedeu apanhou vinte anos de cadeia. (confissão de Scobie ao Narrador. Nos anos 40 e 50 do século passado, ainda o magnata da informação Rupert Murdoch (n.1931) era um "teenager", provávelmente com outras ambições, e já o jornal "News of the World" tinha tradição de não olhar a meios para andar a esgravatar a vida privada dos cidadãos britânicos. Esta menção de Scobie é bem exemplificativa daquela característica.)

É fácil escrever sobre beijos, diz Arnauti, mas onde a paixão devia ser plena de sinais e de chaves, isso só serve para calafetar os nossos pensamentos, sem fornecer nenhum conhecimento novo. (considerações do Narrador, sobre um escrito da autoria de Arnauti)

Às vezes divago e lanço-me contra a parede quando me lembro das loucuras que podem parecer insignificantes aos outros ou aos olhos de Deus – se é que existe algum Deus. Dirijo-me à pessoa que sempre imaginei vivendo num lugar tranquilo e verdejante como o Salmo 23. (divação de Justine)

Ele nunca compreenderá que é justamente com Deus que é necessário ser-se mais prudente; é Ele que cria uma atracção por tudo quanto de mais vil existe na natureza humana – o sentimente da nossa insuficiência, o nosso receio do desconhecido e os nossos insignificantes fracassos pessoais;e, sobretudo, o nosso egoísmo monstruoso que vê n coroa do martírio o prémio de uma acrobacia difícil de executar. (Pursewarden a falar com o Narrador, sobre o livro que quer escrever e as preocupações que o assaltam)

- Como deve parecer repugnante – disse-me um dia Justine – esta confusão obscena de ideias contraditórias que existem dentro de mim; esta doentia procura de Deus e a minha absoluta incapacidade para me submeter aos mais ligeiros imperativos morais da minha natureza, como, por exemplo, ser fiel ao homem que adoro. (o Narrador descrevendo diálogos com Justine)

De entre todas as espécies de fracassos, cada pessoa escolhe aquele que menos compromete o seu orgulho, que menos o decepciona. (Reflexão do Narrador)

Ainda bem que eu não sou um génio, porque um génio não tem ninguém em quem confiar (…) apaixonamo-nos sempre pelo ser, que a pessoa a quem amamos escolheu para amante. (Nessim confessando-se a Melissa)

Tinha mudado tanto naquelas poucas horas que sentia agora o desejo de que Melissa o visse nu, e apreciasse a sua beleza, que durante tanto tempo tinha permanecido inerte, como um belo vestido esquecido num armário. (Nessim com Melissa)

Reconhecia, com uma espécie de estupor, que Justine já tinha morrido para ele; de imagem interior tinha-se tornado num objecto, um medalhão gravado que se poderia trazer, para sempre, suspenso de um cordão em torno do pescoço. (sentimento de Nessim em relação a Justine)

No porto de Alexandria as sereias mugem e gemem. As hélices dos anvios rasgam as águas esverdeadas das docas. Os iates balançam preguiçosamente, mastros apontados para o céu, respirando sem esforço como ao ritmo da sístole e diástole da Terra.
(…)
As mesmas ruas e as mesmas praças ardem na minha imaginação como Pharos arde na História. Quartos onde amei, mesas de café onde a pressão dos meus dedos sobre um pulso me encadeava enfeitiçado, e eu sentia subir das ruas ardentes os ritmos de Alexandria que só se podiam traduzir em beijos famintos e palavras de amor pronunciadas por vozes roucas e maravilhadas. (contemplações e sensações do Narrador)

Tinham-lhe amarrado o queixo e fechado a boca, o que lhe dava um ar de ter adormecido durante um tratamento de beleza. Felizmente, ela tinha os ohos fechados; não teria suportado o seu olhar. (o Narrador perante o cadáver de Melissa)

Os amantes nunca se combinam bem, não acha? Um deles lança sempre a sua sombra sobre o outro e impede-o de crescer, de modo que aquele que se sente sufocado procura desesperadamente um meio de se evadir, para poder crescer sem entraves. Não é este o drama essencial do amor? (considerações de Clea sobre o amor)

(…)
De Alexandria que te abandona,
Não te deixes iludir e não digas
Que foi sonho ou um logro dos teus sentidos.
(…)
Abre a janela e olha para a rua
E bebe a taça inteira da amargura
E a derradeira embriaguez da multidão mística
E despede-te de Alexandria que te abandona.

NOTA – Ilustração de Fernando Torres

quarta-feira, julho 20, 2011

Revisitando o Quarteto de Alexandria

«Considero a televisão muito educativa. Logo que alguém a liga vou para outra sala ler um livro»
Groucho Marx (1890-1977) - Actor


HABITUALMENTE, para marcar os livros que vou lendo ou relendo, uso os espécimes mais heterogéneos que tenho à mão. Dentro do primeiro volume da obra de que vos vou falar, fui encontrar um bilhete da “carris” dos anos 60, enfim, um resquício do passado. Como curiosidade, junto imagem do mesmo. Entretanto, quase 50 anos volvidos, e depois de algumas fortuitas investidas pelo meio, estou de volta a reler o fascinante Quarteto de Alexandria, de Lawrence Durrell (1912-1990), uma tetralogia composta pelos volumes Justine (1957), Balthazar (1958), Mountolive (1959) e Clea (1960), traduzida por Daniel Gonçalves e publicada pela Editora Ulisseia em 1960.


Se quisesse usar expressões-chave para classificar a obra, diria simplesmente que é notável e fascinante, sob todos os aspectos. Desde a força telúrica que emana da cidade fundada pelo macedónio Alexandre, até aos retratos das personagens que a habitam, que por ela se apaixonam e por ela se deixam devorar, é uma espiral de descobertas, onde tanto se mergulha até águas profundas, como de repente se vem cá acima respirar em grandes haustos. É um teorema sobre a condição e as relações humanas, as íntimas e as outras, de uma riqueza e espessura que nos deixa atónitos, senão mesmo atordoados. É um friso de quatro figuras básicas, que embora sendo centrais, são mais observadores que protagonistas, servindo mais de escalpelo para, entre avanços e recuos na linha do tempo, esgravatarem tudo o que o ser humano tem de bom, mau ou péssimo, expondo-nos a sua anatomia até às vísceras, e cartografando tudo o que determina personalidades e comportamentos. É também a olhadela sobre um tempo de mudança, a época que precede e depois mergulha na Segunda Guerra Mundial, conflito que apenas tocou ao de leve a textura humana daquela cidade-invólucro ou cidade-labirinto, meio mercado, meio bordel, onde se confundem europeus, judeus, árabes, gregos e coptas, uma espécie de Babel, produto de muitas paixões, ódios, encontros e desencontros, diásporas e outras tantas deserções, operando a transição entre o mundo mediterrânico e o deserto, caldeando raças e culturas.

Dizem os estudiosos da obra de Durrell que o Quarteto foi uma obra inspirada na teoria da relatividade, isto é, os acontecimentos, embora dizendo respeito a uma mesma realidade, são interpretados segundo pontos de vista de diferentes, numa espécie de jogo de espelhos, onde se conjugam mistérios com revelações, o antes com o depois, o sagrado com o profano, o falso com o verdadeiro, em que Justine, Balthazar, Mountolive e Clea, cada um à vez, cumprem o papel de observadores múltiplos da mesma história, ao mesmo tempo que são protagonistas de histórias dentro de histórias, qual conjunto de matrioskas, umas vezes como sujeitos ocasionais, apanhados de raspão, outras vezes como autênticos descodificadores da realidade. Em Justine, primeiro volume, são relatados os acontecimentos do ponto de vista do sujeito, ou seja, do narrador da história. Os mesmos acontecimentos voltam a ser descritos em Balthazar e Mountoliove, embora na segunda história, a realidade seja remontada e revista, sob outra perspectiva e entendimento, ao passo que a verdade volta a ser reposta na terceira narrativa. Finalmente, Clea encarrega-se de elaborar a síntese, fechar a abóbada da obra, acertando as contas da realidade com o tempo.

Conforme for progredindo na redescoberta do Quarteto, irei acrescentando alguns apontamentos, feitos basicamente de citações. Tal como há 50 anos atrás, continuo cativo de encantamento por este Quarteto de Alexandria, e insisto em perguntar, como foi possível alguém ter concebido e escrito uma obra assim, tão imensa, intrincada e coerente, quanto exímio e sedutor é o seu discurso? Garanto-vos que é uma experiência inesquecível!