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sexta-feira, dezembro 14, 2012

Estória Breve: O Homem-de-Lata


HOJE, as duas últimas horas tinham passado sem dar por isso. Tinha voltado a ler uma narrativa simples, com linguagem directa e despretensiosa, situada naquela época pioneira das primeiras missões espaciais, quando os homens ainda tinham dificuldade em dominar a imponderabilidade, e as estações orbitais, acanhadas e mal cheirosas, eram o local onde os homens estudavam e testavam a resistência humana, tomando balanço para voos mais longínquos, apertados dentro de fatos que eram quase sarcófagos e no meio de espartanos racionamentos de água e alimentos. Eram depoimentos de antigos cosmonautas, onde eram descritas as longas permanências no espaço, e toda a imensa problemática que tal actividade envolvia, desde manter os homens sãos de corpo e espírito, bem como activos e operacionais todos os equipamentos de que as missões dependiam. Agora, quase duzentos anos depois destes pioneiros, tudo era diferente. Ali na Pegasus 2 não faltava nada. Era tudo tão fácil de operar e manobrar que até uma criança o podia fazer. Era um pequeno mundo. Havia espaço de sobra, atmosfera limpa, música ambiente, ginásios, estufas de culturas hidropónicas, alojamentos quase principescos, uma biblioteca de 100.000 volumes, uma cinemateca de 75.000 filmes, uma pinacoteca de 1 milhão de pinturas, desenhos, imagens de esculturas e visitas virtuais a monumentos, alguns que até já nem existiam, laboratórios bem equipados, e entre o pouco ou quase nada que ainda era preciso investigar, apenas a curiosidade humana subsistia. Para satisfazer isso, além das consultas que podiam ser efectuadas em qualquer momento à UNIV, até havia no sexto nível um atelier para manter ocupados os espíritos criativos, mas isto era quando havia uma tripulação de cento e sessenta humanos, entre os quais havia uma astro-navegadora Grace que pintava exuberantemente, e um exobiólogo Velasco que esculpia a canivete presépios em miniatura. Agora, quando era ele o único que restava a bordo, era a ver filmes e a ler que ocupava o seu tempo, entre as pequenas reparações que tinha que orientar, as verificações de rotina, emergências, como um ou outro impacto de meteoritos de fácil resolução, ajustes no posicionamento dos colectores solares, correções da trajectória e posição da estação, ou excepcionalmente, quando lá de baixo, das entranhas do omnipresente e sempre vigilante sistema central, vinham instruções que era preciso cumprir. Naquele contexto, ser um astrofísico a fazer trabalho de cantoneiro e a dirigir uma orquestra de robots desafinados, tornara-se irrelevante, mas isso também não vinha agora para o caso.

Ali estava ele, a 398 milhas da superfície da Terra, instalado num dos imensos braços da Pegasus 2, aquela que ainda continuava a ser uma das maiores e mais bem equipadas estações orbitais do mundo, um monumento de engenharia espacial, com os seus doze níveis de perto de duzentos mil metros quadrados de área utilizável, destinada a uma população que podia chegar a duas centenas de técnicos em actividade, cada um com a sua missão, e mais as suas cinco plataformas de docagem, aptas para receber qualquer transbordador. Só que isso também já eram recordações do passado, tal como a Grande Crise de 2156, época em que a força voltou a falar mais alto que a voz da razão, altura em que a Pegasus 2 chegou a ser militarizada, albergando lançadores de astro-virotões e um importante arsenal de armas avançadas. Depois disso foi núcleo de pesquizas, centro de estágio para futuros cosmonautas e local de quarentena para missões de regresso à Terra, até que o Centro Terrestre foi dispensando todo o pessoal, argumentando com cortes nos investimentos e nas despesas. Agora restava ele como seu único e voluntário tripulante, uma espécie de "faz-tudo" muito económico, acompanhado apenas por um casal de gatos tigrados e meia centena de robots especialistas, uns doentiamente competentes e obedientes, incansáveis e invulneráveis, outros como caricaturas de gente inteligente, burros tropeçudos que passavam o tempo a perder-se no labirinto dos corredores. Há três anos que a Pegasus 2 tinha sido totalmente despovoada. Muitas áreas tinham sido seladas, sete pisos tinham caído numa penumbra perpétua e muitos sistemas tinham sido desactivados. Embora tivesse deixado de ser utilizada como plataforma de formação para futuras tripulações, tornou-se evidente que, devido ao facto de os seus sistemas ainda se encontrarem longe de serem considerados obsoletos, poderia desempenhar muitas outras funções, embora com uma equipagem reduzida. Tão reduzida que bastava um homem e meia centena de carcaças com rodas, pinças telescópicas, tenazes articuladas e visores multicoloridos, para a manter operacional. Bastava a visita de um cargueiro de sete em sete meses, para garantir um provimento onde nem sequer faltavam caixas de vinhos raros e grande variedade de biscoitos para gato. Para que aquele mundo funcionasse, bastava haver alguém que voluntariamente não se importasse de viver longe da sua espécie, como era o seu caso. Bastava ser ele o caprichoso, estar ali e sentir-se bem, e continuar a renovar os contratos que de catorze em catorze meses lhe voltavam a apresentar, já lá iam sete anos.

A semana passada tinha sentido arrepios de frio, e decidira ir ao consultório do robot-médico, um aposento totalmente automatizado, equipado com uma mesa provida de sensores e instrumentos, aptos a fazerem todo o tipo de exames e um diagnóstico a preceito. Habitualmente era o “médico” que marcava as consultas, uma vez por semana, insistindo pelo sistema sonoro da estação, para que ele se apresentasse para o exame de rotina. Desta vez a inciativa tinha sido sua. A consulta foi rápida e o veredicto simples e claro: Você anda a ler muito, a meditar sobre citações de pensadores do século XIX, anda a ver filmes em demasia… o seu trabalho exige calma e dedicação… as leituras e os filmes causam transtornos psíquicos, depressões, ansiedade, pensamentos mórbidos, estimulam em excesso a imaginação, etc.. Ora esta, querem lá ver este robozeco, a dar-me sermões, armado em protector de gente de carne e osso… Levantou-se, vestiu-se, voltou para a sua suite, para logo se arrepender de ter ido à consulta. A razão estava em que, como sempre, já iria a caminho da Terra um relatório detalhado sobre o seu estado de saúde, e lá em baixo iriam concluir que a sua cabecinha andava avariada, que não andava a bater bem, talvez fosse da solidão, e depois, sabe-se lá, talvez se recusassem a renovar o contrato e o mandassem regressar. Como o mal já estava feito, e como dizia um provérbio antigo, o que não tem remédio, remediado está, recostou-se na poltrona e preparou-se para decidir qual a escolha daquele dia; tanto podia ser um mergulho nas páginas do “Robinson Cruzoe”, como ir deleitar-se, pela enésima vez, com as imagens do “Feiticeiro de Oz”.

Quando o filme terminou, ajustou a luz artificial da suite até ficar na penumbra, mudou a imagem do quadro de parede da "Vénus Reclinada" de Giorgione para o "Cavalo Branco" de Gauguin, e recostou-se naquele beliche que era quase uma cama de casal, observando a claridade crua, reflectida pela superfície do planeta, a esgueirar-se pela clarabóia e derramando-se a seus pés em manchas circulares, acompanhando o eterno bailado e os gemidos subtis da imensa estrutura da Pegasus. A Tsai chegou-se pé ante pé, ronronou, bocejou e saltou para junto dele. Quanto ao Tsoi, preguiçoso e independente como era, deve ter ficado lá em baixo, enroscado nalgum dos cadeirões da sala de controle. Pôs-se a pensar. Era curioso como os primeiros forasteiros do espaço amavam o seu planeta, muito embora o fascínio e deslumbramento das novas fronteiras do espaço fossem a sua razão de viver. Com ele passava-se o oposto. Era grande a aversão que sentia por aquele lugar infernal e repulsivo que girava lá em baixo, camuflado pelas belas e enganosas tonalidades de azul e ocre, entrecortadas pelas pinceladas e espirais leitosas do branco das nuvens, que escondiam um rochedo que se tornara quase inóspito, mas que em tempos ostentara belos e majestosos lagos cor de esmeralda, irresistíveis planícies douradas a perder de vista, florestas que eram autênticas catedrais, onde a humidade cobria como uma segunda pele aquele reino dos mais diversos e inesperados verdes e odores, numa tão grande e caleidoscópica diversidade, que querer descrevê-la era uma missão quase impossível de levar a cabo. Sentiu novamente um arrepio de frio, mas logo concluiu que devia ser sugestão. Ainda há pouco tinha controlado a temperatura da cúpula e tudo estava em conformidade. Aconchegou a roupa à volta do pescoço, fechou os olhos e voltou a sonhar com a tal Terra dos contos de fadas, à mistura com as imagens ainda difusas do “rendez-vous” do cargueiro que viria daí a um mês, lá de baixo, um lá de baixo que é apenas aparente, criado pela gravidade artificial da estação, pois no espaço não existe um lá em cima, nem um lá em baixo. Sentiu novo arrepio, e não fez caso. Fechou os olhos e começou a fingir que sonhava, imaginando que o cargueiro traria mais uma geração de robots, uns muito pequeninos, outros maiorzitos, sempre com instruções de activação que lhe consumiam um tempo imenso (sempre eram menos uns quantos filmes que via, e menos uns tantos livros que lia), e que faziam coisas incríveis, desde “desparasitar” os equipamentos do centro de controle, até averiguar as suas preferências gustativas. Qualquer escravo de engenho de açucar de uma roça brasileira do século XVII, era mais inteligente e competente que muita da sucata que lhe mandavam. Só o trabalho de os desembalar e ler as instruções, deixavam uma pessoa derreada e desiludida, como aconteceu com aquele KAM505, cuja função era dar de comer aos gatos, mas que não conseguia acertar com o relógio biológico dos bichanos. O resultado era eles votarem um desprezo absoluto àquela geringonça, preferindo requisitar as suas humanas atenções, com artísticos bailados entre as suas pernas, prolongadas marradinhas e miados, quando era preciso reabastecer os alvéolos com a ração diária.

Os trinta dias que o separavam da visita do cargueiro escoaram-se depressa. Aquela tarefa de registar os valores das emissões da Cintura de Van Allen, tinham absorvido muito do seu tempo. Contudo, começou a ficar ligeiramente preocupado quando faltando 48 horas para a esperada acoplagem do cargueiro, ainda não se tinha feito ouvir a habitual lenga-lenga, debitada hora a hora pelo centro de controle terrestre: "Atenção Pegasus 2: rendez-vous menos 46 horas, 14 minutos e 25 segundos... ". Embora as operações de aproximação e atracagem fossem inteiramente automáticas, era sempre requerida a sua presença na sala de controle, para supervisionar a fase final de abertura das câmaras de comunicação entre a estação e o cargueiro, o qual habitualmente não era tripulado. Eram depois os robots-estivadores que faziam a transfega dos contentores com os reabastecimentos, e que para lá voltavam com o lixo não reciclável produzido na estação. Apreensivo com aquele silêncio, testou a operacionalidade das comunicações, e depois deixou passar mais um par de horas, antes de fazer uma chamada para o centro terrestre, inquirindo a razão do silêncio. A resposta veio curta e incisiva; não iria ocorrer o programado reabastecimento porque o seu contrato não iria ser renovado. Iria regressar à Terra, depois de ser substituído por um robot inteligente da última geração, uma maquineta que dava pelo nome de SHERP712, sobre o qual já tinha lido qualquer coisa. Disseram ainda que tinha sido agraciado com a medalha de mérito por serviços distintos, e que por força da quebra unilateral de contrato, já estava calculada e creditada a sua indemnização compensatória, no valor de trezentos e cinquenta milhões de créditos. Só faltava esperar pelas instruções complementares, as quais seriam enviadas dentro de poucas horas. À pergunta de qual a razão porque não renovavam o contrato, a resposta veio fria e sem rodeios: o seu comportamento e os relatórios médicos indiciavam que o prolongado isolamento estava a provocar desvios da sua personalidade e a levá-lo a perder o controle da realidade, situação que desaconselhava a sua permanência à frente dos destinos da Pegasus 2. Nestas missões - acrescentaram eles - corre-se um grande risco quando alguém começa a não saber distinguir a ficção da realidade. Ora bem, lá na Terra, está visto que continuavam a ter a propensão para os maus hábitos, usando todos os pretextos mais à mão, para baixar os custos com o pessoal, indiferentes aos maus resultados que daí advinham, e insensíveis aos estragos que provocavam nas carreiras e na vida das pessoas.

Ainda pensou em amotinar-se, barricando-se nos níveis inferiores da Pegasus, mas acabou por abandonar a ideia, porque era duvidoso que pudesse ganhar algo com isso. Sublevar-se contra o CET, o todo-poderoso Centro Espacial Terrestre, apenas levaria a que tivesse que pagar o protesto com uma mais ou menos prolongada perda de liberdade, mais o cancelamento da sua reforma. Assim, quedou-se à espera das tais instruções e do seu desfecho. O Homem-de-Lata que o iria substituir, o tal SHERP712, versão R-27, especialmente adaptado para supervisionar a Pegasus, chegou sete dias depois. Antes disso o Centro Terrestre tinha-o informado que não haveria período de adaptação nem transmissão de agenda ou funções. A nave que levava Nicklaus - assim tinha sido baptizada aquela cibernética inteligência – seria a mesma que o recolheria a ele, de regresso à Terra. Quanto a Nicklaus, já sabia tudo, todos os lugares e recantos da estação, todas as suas funções e obrigações ao pormenor, informações de que fora atulhado, com afinco e determinação, durante largas semanas, no centro operacional terrestre. Quando chegou não houve espanto nem surpresa. Sua excelência tinha uma forma que oscilava entre um aracnídeo e um aspirador industrial, tinha alguns pares de rodas, muitos braços, muitas pinças, tenazes e sensores, era mudo e provávelmente também surdo. De facto, entre robots, para quê o dom da palavra e da audição, se entre eles as informações e as ordens circulavam à velocidade da luz através do sistema integrado da própria Pegasus? Nicklaus tinha todos os manuais operacionais memorizados, não se divertia, não se cansava, não dormia e o seu alimento era assegurado diáriamente, ligando-se durante breves minutos, aos colectores solares da estação. Resumindo: entrava ao serviço um luzidio Nicklaus, e saía ele, um astrofísico sonhador com supostos desvios de personalidade. Sem um queixume, não se despediu de nada e foi directamente para a câmara de acoplagem do transbordador que o aguardava impaciente, já em contagem decrescente, depois de ter recolhido os seus poucos pertences, e envergado o fato de voo para a viagem de regresso à Terra, sete anos depois de ter jurado que a ela não mais regressaria.

Antes isto que uma perna partida, pensou ele com os seus botões, sentindo novo arrepio de frio. Instalou-se no assento da cabine do transbordador, regulou a posição de conforto, correu o fecho do capacete, activou as funções de apoio de vida do fato, apertou o arnês, baixou a viseira e viu fechar-se lentamente a comporta de comunicação com a Pegasus. Dois minutos depois a contagem decrescente quedou-se no zero. Sentiu o ligeiro balanço da naveta a desprender-se da estação, e os propulsores começarem a rugir. Ali ao lado ainda estava o berço onde o seu substituto fizera, cómodamente, a viagem para a Pegasus. A iluminação baixou lentamente, e os monitores do transbordador automático animaram-se. Dali para a frente, até ao cosmódromo de Gobi, numa viagem de pouco mais de hora e meia, não precisaria de mexer uma palha, pois a navegação e a entrada na atmosfera terrestre, era toda por conta e risco do CET. Passou mentalmente em revista as últimas horas que passara na Pegasus, e havia uma preocupação que não o abandonava. Como é que a Tsai e o Tsoi iriam reagir ao seu desaparecimento físico e à total ausência de calor humano? Não estava a ver o super-inteligente Nicklaus-Homem-de-Lata conseguir interpretar, ou sequer condoer-se, com os seus miados e marradinhas, a fim de assegurar o competente reabastecimento, a tempo e horas, dos seus alvéolos de alimento.

domingo, novembro 18, 2012

Estória Breve: Glória e Renúncia


HÁ CINQUENTA anos, mais precisamente em 1939, ano do início da Segunda Guerra Mundial, que o senhor Ernesto Martins, vindo não se sabe de onde, se tinha instalado na aldeia do Chão de Barrocos, e iniciara a sua actividade de serralheiro. Dessa altura em diante, naquele concelho, não havia casa ou propriedade que não ostentatasse alguma coisa da autoria do senhor Ernesto, cuja obra se multiplicava por um número incalculável de portas, portões, armações para alpendres, janelas de marquises, gradeamentos, varandins, escadas de caracol, utensílios de lareiras, e até algum mobiliário de jardim, incluindo estufas envidraçadas. Nas épocas em que o trabalho da sua arte escasseava, deitava a mão a trabalhos de canalizador, electricista, cataventos e até reparava bicicletas, alcatruzes e motores de rega. Chegou mesmo a inventar um prodigioso sistema de abertura e fecho de portões, que por não ter registado a patente, veio mais tarde a ser copiado e explorado com grande êxito por uma empresa belga.
 
Excepto a curta presença diária da dona Bemvinda, que lhe tratava da casa e das refeições, vivia só e não se lhe conhecia família. Vivia para o seu trabalho, era pouco falador, porém, houvesse o que houvesse, tivesse muito ou pouco trabalho, chovesse ou fizesse sol, o senhor Ernesto reservava sempre duas ou três horas diárias, dizia ele, para estudo, pesquiza e experimentação na sua oficina, cuja entrada estava permanentemente vedada a todos, e que ele tratava carinhosamente como o seu “laboratório”. Correspondia-se com gente ilustre da Alemanha, Itália, França e Estados Unidos da América, mas não se sabia muito bem com que fim, pois não se lhe conheciam cursos, competências ou aptidões intelectuais, e muito menos conhecimentos de outras línguas. Mas a verdade é que recebia e enviava correio para outros países, sendo muitos os que se roíam de curiosidade para saber a que outras actividades se dedicava, mas acima de tudo, com quem se correspondia, e a propósito de quê. Talvez fosse um daqueles refugiados da guerra, dizia-se à boca pequena. Nos últimos anos a curiosidade da vizinhança agudizou-se, ao ponto de o senhor Castanheira, o velho distribuidor de correio, ser assediado com perguntas sobre a identidade dos destinatários do correio do senhor Ernesto, tendo até havido quem tivesse pedido, insistentemente, para ele deixar dar umas espreitadelas ao conteúdo das missivas, ao que ele respondeu escandalizado, oh minhas senhoras, então não sabem que a correspondência é coisa sagrada e a sua violação um abuso?
 
E assim se foi mantendo o mistério até que um dia, sem que ninguém estivesse a contar com isso, o senhor Ernesto faleceu durante o sono, plácidamente, sem qualquer vestígio de sofrimento. Mesmo antes de começar a ser combinado o seu funeral, logo houve quem corresse a profanar o secretismo do seu “laboratório”. Perante uma dona Bemvinda escandalizada, foi tudo virado do avesso, mas nada de especial foi encontrado. Entre o fraco espólio havia uma bancada, duas cadeiras, as habituais ferramentas de serralheiro, máscaras e ferros de soldadura, um candeeiro, um ou outro trabalho inacabado, uma salamandra com cinzas, provávelmente das tais cartas que recebia do estrangeiro, uma pilha de jornais antigos, um maço de folhas de papel em branco e duas cintas de envelopes, mas nada de livros, nem apontamentos, nem aparelhómetros esquisitos, nem frascos de substâncias, nem almofarizes, nem retortas, nem tubos de ensaio. Quem imaginara aquele retiro como um antro de mistérios mirabolantes e manipulações alquímicas, sentiu-se defraudado. Excepto uma gravura antiga da cidade de Palermo, pendurada na parede da cozinha, na acanhada e espartana residência do senhor Ernesto, também nada havia de excepcional.
 
Três dias depois foi o seu funeral, e mais uma vez o espanto e a incredulidade, percorreram toda a aldeia do Chão de Barrocos, quando apareceram no cemitério cinco estrangeiros, trazidos por dois táxis, que se mantiveram, afastados e silenciosos, a assistir às exéquias. Não trocaram palavra com ninguém, e conforme chegaram, assim se foram embora, sempre silenciosos e taciturnos, ficando a pairar no ar mais outro perturbante mistério: quem seriam e quem os informara, com tão eficaz rapidez, do passamento do senhor Ernesto? Passaram dois meses, e entretanto, alguém que fez questão de manter o anonimato, mandara fazer uma placa para a campa do senhor Ernesto, com as iniciais E.M. e as datas Agosto 1906-Novembro 1989, respectivamente os meses e anos de nascimento e falecimento, encomenda essa que voltou novamente a acicatar a coscuvilhice aldeã e a despoletar novo mistério: embora E.M. fossem as iniciais correspondentes a Ernesto Martins, quem seria a pessoa que sabia exactamente o seu mês e ano de nascimento, e que teve a preocupação de mandar esculpir a placa para perpetuar a sua memória?
 
Estas perguntas ficaram para sempre sem resposta, no entretanto, aconteceu um caso insólito. Um jornalista, tendo tido conhecimento, através de um amigo do Chão de Barrocos, dos misteriosos enigmas que envolviam a vida e morte desse tal serralheiro, resolveu fazer uma pequena investigação para tentar tirar a coisa a limpo. E a primeira coisa que fez foi consultar o obituário do jornal do concelho, deparando-se então com uma anacrónica fotografia do senhor Ernesto. Fotografia que não era a de um octogenário - como era suposto que fosse - mas sim a de um homem trintão, talvez a única que fora encontrada para ilustrar a notícia do falecimento. O tal jornalista, que era um bom fisionomista, à vista do retrato do senhor Ernesto, foi assaltado por aquela sensação de já se ter cruzado com aquele rosto, fosse ele de carne e osso, ou através de uma mera fotografia. Assim, durante três dias, foi revolvendo o arquivo de fotografias do jornal, até que os seus esforços foram compensados. Comparado o retrato do senhor Ernesto com a foto recém-descoberta, que estava devidamente identificada, era óbvio que se tratavam da mesma pessoa. E chegou à seguinte conclusão: O senhor Ernesto Martins, ou apenas E.M., vindo de nenhures para o Chão de Barrocos em 1939, e nascido em Agosto de 1906, era a mesmíssima pessoa que o genial cientista italiano de nome Ettore Majorana, físico teórico responsável pela descoberta dos neutrinos e da fissão nuclear, nascido em 1906 na Catânia, Sicília, misteriosamente desaparecido em 1938, acreditando-se que se tenha auto-exilado, renunciando à glória, descontente com o rumo que o mundo e a ciência estavam a tomar, e cujo paradeiro nunca mais foi descoberto ou revelado.

quarta-feira, agosto 08, 2012

Estória Breve: Aurice Que Lavas no Rio


ERA o ano de 1543, um ano aziago, com o povo a voltar a ser maltratado pela peste, e com os campos definhados pela moléstia a prometerem mais um Inverno de fome, naquela região inóspita, senhorio do conde do Couto Calvo, que pouca semente lançava à terra, mas que compensava com as abundantes sementes que espargia pelas alcovas alheias, gerando um exército de bastardos. Eram tempos adversos, até mesmo para o mosteiro de Romalde, que pela sua traça mais parecia uma fortaleza que casa de retiro e oração, cuja fundação remontava aos recuados tempos da monarquia visigótica. Implantado no alto da colina, era amparado pelo pequeno burgo que crescera aconchegado à sua volta, sendo ponto de passagem de um dos caminhos de Santiago.

Estivera quase em ruínas, mas, dois séculos atrás fora reconstruído para albergar os freires da Ordem da Adoração, gente que ingressava na vida religiosa, como forma de se furtar ao cortejo de fome e miséria que os esperava no mundo dos outros mortais. Por isso e outras razões, era uma época em que a santidade andava pelas ruas da amargura. As exigências das regras conventuais eram bem mais brandas do que a dureza e precariedade do mundo exterior, razão porque pobres e bastardos, senão mesmo foragidos, era vê-los a fazerem fila para envergarem o hábito, tivessem ou não vocação para abraçarem a vida monástica e espalharem a mensagem divina, à mistura com o terror dos suplícios e fogos eternos. Entre uma vida dedicada à santidade, preferiam a santa vida que a fingida devoção proporcionava. Era o próprio papado que dava maus exemplos, que vivia amancebado e fazia vista grossa à vida dissoluta da classe sacerdotal, a qual, quantas vezes de barriga cheia e testículos vazios, tinha o costume de passar umas temporadas no recato dos mosteiros, entre jejuns e orações, a desintoxicarem-se de banquetes e orgias de sacristia.

Aurice Mendes, filha de Paio e Joana Mendes, tratava dos porcos, abichando algumas poucas moedas como lavadeira dos paramentos e toalhas de altar do mosteiro, tarefa que cumpria na ribeira de Sule, pois a cisterna conventual há muito que estava à míngua de água. Era neta de judeus que tinham sido enxotados de Castela em 1492, refugiando-se em Portugal, sendo forçados a receber o baptismo, e por cá foram ficando, cuidando de passarem despercebidos, furtando-se assim às perseguições e "limpezas de sangue" que periódicamente recaíam sobre os “cristãos-novos”. Uma vez por mês, Aurice voltava afogueada ao convento para entregar os panos lavados, recebia de volta as prometidas moedas, mas depois, esgueirando-se, espraiava-se pelo claustro e pela celas dos freires, a ouvir histórias, a ser seduzida com sermões e palmadinhas, e outras coisas mais. Até um dia! Atacada de vómitos e com a barriga a crescer cada dia que passava, ameaçada pelos pais de que a punham a comer e a dormir com os porcos, contou que aquele estado só podia ter acontecido no mosteiro, na brincadeira com os frades. Qual deles? Perguntaram os Mendes. Não sei! Respondeu ela.

Paio Mendes não perdeu tempo. Deu uma tareia na filha e logo a seguir subiu até ao mosteiro para falar com o Superior. Esqueceu-se de dizer à mulher, Joana Mendes, para se manter calada, e por isso, não era corrido meio-dia e já todo o povoado sabia da encomenda. O povo, não fez nada por menos, e à falta de haver quem mais frágil houvesse, onde descarregar as desgraças e misérias que se vinham acumulando, passou a palavra e ejaculou a acusação fatal. A porca da judia acamou-se com a fradalhada, e lá vem a caminho mais um filho do Demo!

Da conversa travada entre Paio Mendes e Monsenhor Damião, pouco ou nada se sabe, excepto que Aurice ia levar mais umas chibatadas e os frades iam ser interrogados por Monsenhor. Mas uma coisa era certa: daquele episódio, nem a neta de judeus, nem os frades da Adoração, se iam safar da forma habitual. Se havia uma pecadora, era preciso encontrar um pecador, e pelas contas de Monsenhor Damião, havia um candidato que se acomodava à pretensão: frei Bernardo, um sonso e solitário de modos doces, que não falhava uma novena, que não partia um prato, mas que ficava congestionado de luxúria quando se cruzava com a Aurice, e isso não passava despercebido a ninguém. Monsenhor iria fazer o que era preciso, isto é, interrogar todos, e sobretudo o depravado.


- Monsenhor, estive com essa rapariga na minha cela, recitei-lhe uns salmos mas não pecámos! E Bernardo jurou ser verdade o que dizia, apertando contra o peito as sagradas escrituras.

- Frei Bernardo, vós dizeis que não pecaste, mas frei Antão, frei Tadeu, frei Jorge e os outros irmãos desta ala do mosteiro garantem que ouviram, mesmo abafados pelas grossas paredes das celas, fortes risadas e repetidos gemidos de prazer.

- Mas monsenhor, se ela própria diz que era visita de todas as celas…

- Mas meu filho, é a tua palavra contra a palavra de muitos. Se o caso não tivesse escapado ao recato desta casa de Deus, indo cair no meio do povoado, sempre se podia compor, mas sendo assim, mandam as regras que se chame o Santo Ofício, com os seus interrogatórios e tormentos, para apurar a verdade…

- Monsenhor, a ser assim, é meu desejo que me escutais em confissão.

- Se é isso que desejais, espero por vós na capela, depois das orações, pela hora nona…


Naquele tempo, uma ameaça com a intervenção do Santo Ofício era o diabo. Casos de heresias, práticas judaizantes, bruxarias e feitiçarias, a envolverem paramentos e toalhas de altar, à mistura com fornicação entre judeus e cristãos, implicavam, habitualmente, a vinda do Santo Ofício, com os seus torniquetes e inquirições, para apreciar e julgar o desvio, e se necessário proceder à respectiva purificação, que podia acabar na fogueira. Ora, se a tolerância recorresse a outros meios mais consensuais - mais tarde conhecidos por acordos de cavalheiros - onde nenhuma honra ficasse ferida e a vida continuasse em suposta normalidade, tudo isso eram soluções que até a Deus agradavam, pois farto estava ele de julgar e castigar, tanta era a maldade à solta, e tantos os dissabores que a Humanidade lhe provocava.

Assim, embora fosse pouco habitual um freire abandonar a vida monástica, foi o que aconteceu com frei Bernardo, depois daquela prolongada confissão ao superior da Ordem. O que confessou, no segredo da confissão ficou. Dois dias depois, ao entardecer, abriram-se as portas do mosteiro de Romalde para ver partir Bernardo, já sem o hábito nem as sandálias da Ordem. Voltava para enfrentar o mundo de onde viera, como se fosse um penitente, abraçado a um saco com nacos de broa, descalço e com uns andrajos, recuperados do bafiento depósito do mosteiro, em jeito de misericórdia.

Muitos meses depois, o povo começou a sussurrar, e o que se ouvia, vindo de terras mais ao sul, era uma história inacreditável, pois tortuosos são os caminhos, que a mão da providência escolhe para exibir a verdade. Contava-se que o réprobo frei Bernardo teria sido emboscado por salteadores, e que à falta de valores, não tiveram contemplações, despojando-o dos míseros andrajos que trazia vestidos e deixando-o desnudo como viera ao mundo. E o que viram – surpresa das surpresas – deixou os malandrins boquiabertos: pela frente tinham não um Bernardo, mas sim uma Bernarda, havendo quem se lembrasse de associar o facto com a tão mal explicada, quanto ocultada história da Papisa Joana, ocorrida por volta do ano 1099. Já naquela época difícil, as mulheres recorriam ao embuste, mudando de género, tal era a vontade de sobreviver e superar a sua condição.

Finalmente, lá por Romalde, também a criança de Aurice acabou por nascer, um varão, porém, de pai incógnito não ficou. Mais do que desconfiança, logo se instalou no burgo a certeza de que o pai do petiz era o próprio superior da Ordem, Monsenhor Damião, tal era a semelhança entre ambos, que ia da expressão e contornos faciais, até àquele sinal, do tamanho de uma moeda, que ambos ostentavam na maçã direita do rosto. A confirmar isso, ficara garantido, por contrato firmado entre o avô Mendes e Monsenhor Damião, que ao atingir a maioridade, o pequeno Tiago Mendes, isento de exame vocacional, seria admitido e receberia o hábito de membro da Ordem da Adoração, e depois, seria o que Deus quisesse. Quanto a Monsenhor Damião, nunca mais pôs os pés fora do mosteiro, excepto quando foi a enterrar. Sobre Aurice, sabe-se que não voltou a lavar na ribeira de Sule, e quanto à suposta Bernarda não nos chegaram mais memórias, fossem elas escritas ou orais.

Texto de F.Torres. Agosto de 2012
Ilustração: Montagem fotográfica de F.Torres

sábado, julho 28, 2012

Estória Breve - As Duas Padeiras


CORRIA o ano de 1385, mais exactamente a tarde do dia 14 de Agosto, e para os lados de Aljubarrota, aprestavam-se para se enfrentarem, as hostes do Condestável e de dom João I, o mestre de Avis, e o exército de Juan I, rei de Castela, cujas hostes, em número e fidalguia apoiante, suplantavam largamente o exército português e as ajudas inglesas. Por aquelas bandas, entre povoados e charnecas inabitadas, viviam, não uma mas duas padeiras, a saber, uma de nome Brites de Almeida, mulher rija e trabalhadeira, e outra mais discreta, surda, mas toda ela farta de carnes e músculo, porém minguada de formosura, de sua graça Lianor Domingues, casada com um insignificante jornaleiro, de nome Álvaro Domingues.

Ao saber da notícia de que estava eminente o embate, Álvaro não pensou duas vezes, e foi rápido a decidir. Sem espada nem lança, silencioso e sem dizer onde ia, apanhou uma forquilha e meteu pés ao caminho para se ir juntar às tropas invasoras, cujos estandartes e pendões, desde manhã cedo, lá ao longe, já tinham assomado nos outeiros. Fê-lo como o haviam feito um punhado de fidalgos das redondezas, imaginando que a sorte das armas penderia, infalivelmente, para Castela, e que com isso colheria algum benefício ou honraria. Na sua ignorância, seguiu o exemplo de quem ele pensava ser mais entendido em matéria de interesses e oportunidades.

A caminho do fim da tarde, depois de algumas manobras preparatórias, e ainda sob um sol escaldante, chocaram-se os dois exércitos, com uma violência desmesurada. O fragor da batalha, feito de ordens, gritos, entrechocar das armas e das couraças, troar das bombardas, assobios de flechas e virotões, e o relinchar de cavalos feridos, calou a passarada e fez estremecer a bucólica e lânguida paz das hortas e pomares, ao redor do campo de São Jorge. Com o chegar da noite eram vencedores os invadidos e estavam derrotados os invasores. O povo em brasa saiu aos campos, armado de foices, forquilhas, varapaus e em tremenda gritaria, vasculhava os caminhos, atalhos e celeiros, em busca de castelhanos transviados, chacinando-os sem piedade. Outros, aventuravam-se no campo de batalha, ainda morno, volteando corpos e saqueando tudo o que de valor encontravam, indiferentes aos corpos enganchados e trespassados nas paliçadas aguçadas, outros tombados e massacrados nos fossos e covas de lobo. Amontoados de corpos entupiam os ribeiros, cujas águas corriam vermelhas de sangue, e pelos campos em redor, galopavam à toa cavalos sem cavaleiro, aterrorizados peões castelhanos e aragoneses, lanceiros italianos e besteiros franceses, feridos e esfarrapados, acossados e em fuga desordenada.

Sete dos fugitivos foram esconder-se no forno da Brites de Almeida, que com a sua pá de ferro, logo ali os aliviou de outros tormentos. Mais para norte, a meia légua, num lugarejo cujo nome se perdeu, coube a tarefa a Lianor Domingues, que com a sua machada de rachar lenha para o forno, já mesmo ao cair da noite, tratou da saúde de outros quatro castelhanos extraviados, que se coziam com as sombras, e mais um outro, que berrava a plenos pulmões, suplicando misericórdia, mas em vão. Na penumbra, embalada pela sua surdez e no calor do ajuste de contas, o gume da machada, movida com destreza e com um ruído seco, abriu a cabeça do tratante ao meio, até aos ombros, como se fosse um melão maduro.

Esse quinto, o tal mais um, veio-se a saber mais tarde, era nem mais nem menos que o foragido, humilhado e arrependido, Álvaro Domingues, de regresso ao doce lar e aos braços portentosos da sua Lianor, que nunca lhe conhecera a voz. Depois de ter provado o pão que diabo amassou, regressava sem ter sido reconhecido, pior do que tinha saído, de calções rotos, ensopado de feridas, sem honra nem forquilha. Dias depois foi rezada uma missa por ele e outros traidores, mas ficaram dúvidas que tivessem sido aceites no paraíso.

Semanas mais tarde, depois de assentar a poeira daquela refrega e voltarem a chilrear os pássaros e a arrebitarem os arbustos espezinhados dos campos de Aljubarrota, inconsolável e roída de remorsos, Lianor juntou os poucos haveres e acabou - dizem as alcoviteiras - por partir para algures, deixando à parceira de ofício, a tal Brites de Almeida, o prestígio, o protagonismo e a responsabilidade da lenda.

Texto de F.Torres - Julho de 2012
Ilustração de Hal Foster