Artigo integral de João Semedo, médico e
deputado do BE, publicado no jornal PÚBLICO em 30 de Agosto de 2011. Os
comentários são desnecessários.
«Aquilo que o director de um serviço não faz
no seu hospital público, põe a sua empresa privada a fazer.
A
história conta-se em poucas palavras. O Conselho de Administração da Unidade
Local de Saúde da Guarda (que integra hospital e centros de saúde do distrito) autorizou
uma empresa privada de serviços médicos de oftalmologia a realizar, nesses
centros de saúde, rastreios à visão para despiste das principais causas de
cegueira. A empresa em questão (M.A. Dias dos Santos, Lda) tem como
sóciogerente o director do serviço de oftalmologia do hospital da Guarda (M. A.
Dias dos Santos, dr).
Em
resumo, aquilo que o director de um serviço não faz no seu hospital público põe
a sua empresa privada a fazer e a administração do hospital aprova e aplaude.
Como deputado, questionei o Governo sobre esta estranha situação e o PÚBLICO
disso deu notícia. Até hoje, nem o Governo respondeu, nem a administração da
ULS disse fosse o que fosse.
Apenas
o promotor dos rastreios se queixou quer da notícia quer das minhas perguntas.
E para que não se tome por igual aquilo que é diferente, diga-se que quem se
queixou foi o director da oftalmologia e não o sócio-gerente da empresa. O que
tem a sua lógica: que razão levaria uma empresa privada a queixar-se de ser
chamada por um hospital público? Em geral, esse é o maior desejo de qualquer
privado.
De
que se queixa o director da oftalmologia? De ter tido necessidade de recorrer a
uma empresa privada para fazer um rastreio que o hospital e os centros de saúde
deviam fazer, consumindo, mais uma vez, recursos públicos para pagar a
privados? Não, disso o director não se queixa. Aliás nem podia porque, segundo
consta, a empresa MADS não cobrou nada ao hospital do director MADS. O próprio
confessa ter sido um “serviço cívico”, isto é, uma borla desinteressada,
altruísmo em estado puro: o director MADS reconheceu a necessidade, o
sócio-gerente MADS comoveu-se e o rastreio fez-se.
O
director queixa-se pelo sócio-gerente, chorando as dores deste que é o mesmo
que aquele. Porque, apesar das suas boas intenções, acusam malevolamente a
empresa de que é sócio-gerente de ser “proprietária, sócia ou de qualquer forma
associada de quaisquer ópticas existentes no país”, afirmação que desmente.
Diga-se
que aquela empresa não é nem podia ser proprietária ou sócia de lojas de óptica
porque, em Portugal, é proibida qualquer relação societária ou equivalente
entre quem faz oftalmologia e quem vende óculos e lentes. Mas, claro, não se
pode exigir que a lei impeça ou previna simples coincidências.
Primeira
coincidência: em cinco localidades – Guarda, Trancoso, Sabugal, Pinhel e
Belmonte – há cinco lojas da mesma rede de ópticas, Óptica Lince, SA, passe a
publicidade. Nessas mesmas localidades – por vezes na mesma rua – funcionam
cinco consultórios da empresa de serviços médicos de oftalmologia MADS. Segunda
coincidência: na gerência da Óptica Lince está a esposa de MADS. Sem bigamia:
para este efeito, director e sócio-gerente são a mesma pessoa.
Em
resumo: quem decide o rastreio e quem o realiza, quem prescreve os óculos e
quem os vende é tudo da mesma família. Só não vê quem não quer ver. Não é
preciso pôr óculos para ver que isto não está certo e que este cruzamento de
interesses colide com os princípios e as boas práticas dos serviços públicos de
saúde.
Este
caso é um caso mas, infelizmente, não é único. O SNS está poluído por
promiscuidades em tudo semelhantes. Degradam a qualidade dos serviços e
promovem o despesismo. Eliminá-los favoreceria a sustentabilidade financeira do
SNS e evitaria muitos dos cortes que o Governo está a fazer e que afectam a
capacidade do SNS e prejudicam os doentes.
No
SNS, contas equilibradas e qualidade assistencial são incompatíveis com o
amiguismo nas decisões e a promiscuidade com os interesses privados. O Governo
exige e promete rigor, seriedade e determinação na gestão da coisa pública.
Este caso da Guarda põe à prova a coerência deste discurso.»