sexta-feira, março 28, 2014

Portugal, a Grande Lavandaria

Não hesite!
Nós precisamos dos seus "investimentos",
E você precisa das nossas "facilidades".
Decida-se já hoje!
Peça um VISTO GOLD.
Venha até cá lavar o seu dinheiro.
Nós oferecemos o detergente.
É simples, é barato e dá MILHÕES.

domingo, março 23, 2014

Relatividade


(da Série Contos (In)Completos

Parte I

NAQUELE fim de tarde de Agosto, quando voltou do trabalho o Mário não arrumou o carro na garagem, não visitou a caixa do correio como era seu hábito, e quando entrou em casa beijou Francisca maquinalmente, sem a ver. Talvez fosse daquele calor sufocante ou do emprego precário que ameaçava levá-lo para o desemprego, mas o certo é que estava imensamente cansado, as pálpebras pesavam toneladas, as pernas estavam à beira de se tornarem insensíveis e quase não conseguia carregar a sua pasta com trabalho para casa.

Foi olhar-se no espelho e não se reconheceu. Sentia o cérebro vazio, o corpo e a alma tão distantes, como se lhe não pertencessem. Não jantou. Foi para o quarto e acendeu o pequeno candeeiro da cómoda. Deitou-se. Semicerrou os olhos e ficou a ver apenas aquela luminosidade frouxa que lhe amordaçava os sentidos. A escuridão conquistou-o definitivamente e o abismo do sonho, como uma goela escancarada começou a tomar conta dele. Depois deixou de se sentir.

As imagens voltaram, mas eram como se ele tivesse deixado de existir na sua forma sólida, ficando apenas ligado àquela dimensão irreal por um frágil filamento sem substância. Foi então que partilhou o calor de uma fogueira com os Templários do Santo Sepulcro, jogou xadrez com Tamerlão e assistiu a colossais batalhas cósmicas ao lado de Flash Gordon. Passeou com Helena junto das muralhas de Tróia, ensinou Pinóquio a mentir com mais subtileza e foi recebido com pompa na tenda de Sandokan. Assistiu à queda de Constantinopla, escutou deliciado alguns contos de Sherazade, chapinhou com Tom Sawyer e Huckleberry Finn nos sapais do Mississipi e andou na borga com os Três Mosqueteiros. Procurou em vão Sindbad pelos quatro cantos do mundo, escapou por pouco à matança de Chicago, cruzou-se discretamente com Romeu e Julieta, galopou com Marco Polo pela interminável Rota da Seda e conversou pela noite dentro com Júlio Verne.

Navegou com Leif Erickson pelo árctico rumo ao Novo mundo, esbarrou com Gulliver no reino de Lilliput, visitou a ciclópica Atlântida antes do grande dilúvio e singrou o mar Egeu para ir despertar os fogos de Olímpia. Construiu máquinas de guerra concebidas pelo mestre Leonardo, reviu o rei Artur junto às muralhas de Tule, discutiu à luz da candeia com Dickens, bebeu água nas nascentes do Ganges com Alexandre da Macedónia, namoriscou Alice no País das Maravilhas e adormeceu sob um ulmeiro à vista de Shangrila. Viu passar Napoleão a caminho de Santa Helena, perseguiu Moby Dick no baleeiro do capitão Ahab, entrou de roldão no Palácio de Inverno e assistiu de longe à morte inglória da bela Pompeia. Andou com Tim-Tim pelos trilhos do Tibet, viu ser construída a Grande Muralha da China, escutou Buda, acompanhou Jesus e mais tarde o Profeta, foi companheiro de Ulisses e cavalgou planícies sem fim, com os guerreiros da nação Sioux. Foi peregrino em Meca e Santiago de Compostela, voou com Peter Pan sobre os telhados de Londres, assistiu aos eclipses intermináveis das luas de Júpiter, colheu laranjas nos jardins suspensos de Babilónia e deixou-se perder nas minas de Salomão.

Tinha acabado de abandonar o oráculo do templo de Delfos e preparava-se para desvendar os mistérios da Grande Pirâmide quando sentiu que um leve e intemporal sopro de vento tropical o arrastara de novo para as fronteiras do real. Mesmo ébrio de gozo e aventura, voltara a encontrar o caminho do seu corpo. Sentiu que o sonho se volatizava, que iria voltar para o lado de cá, quando um inesperado e irresistível extraterrestre estendeu a sua mão esquálida e o convidou para entrar na sua nave, plena de cintilações, mistérios e segredos, como um imenso casulo de cristal. Deixou-se afogar naquela torrente de luz e percebeu que o estranho visitante lhe propunha uma grande e derradeira aventura, lá para a longínqua fronteira do universo, à beira da constelação do Cisne, onde os humanos são uma espécie muito rara. Não exibiu a sua visceral prudência e timidez. Não negociou nada, nem sequer o regresso. Pura e simplesmente, aceitou o desafio e partiu.

Eram onze e meia da noite quando a Francisca terminou a lida doméstica, e depois de uma curta passagem pelos programas da televisão, entrou no quarto para ir dormir. A chegada da noite ainda não refrescara aquela atmosfera pesada de Agosto. A luz fraca e esborratada do candeeiro da cómoda atraíra uma borboleta que voluteava impertinente, desenhando fugazes e imprecisas sombras chinesas nas paredes do quarto. Nem quis acreditar quando viu que o seu Mário já lá não estava. Foi até ao corredor e chamou pelo Mário, mas o Mário não respondeu. Dele apenas restavam um leve calor deixado naquele lado da cama e o vago vestígio de que a sua almofada estivera ocupada.


Parte II

A SUA VIAGEM durou onze dias, com curtas e escassas paragens. Extasiado, levaram-no até ao outro lado do universo, como se fosse uma coisa já ali, ao virar da esquina. Inacreditável! Viu explosões de estrelas supernovas, colisão de galáxias e contornou os vórtices devoradores de buracos negros. Arregalou os olhos perante biliões e biliões de inusitados objectos celestes, dançou nos braços espiralados das nebulosas, espreitou de longe planetas desertos e outros habitados, acercou-se de colossais mundos jupiterianos, cruzou-se com Vega, Cassiopeia e Alfa do Centauro, corpúsculos filamentosos, gases, poeiras e destroços de estrelas moribundas, viajou lado a lado com cometas e asteróides e ouviu como ruído de fundo, algumas vozes a articularem línguas estranhas. Sequioso e esfomeado, onze dias depois voltou à Terra, materializou-se nas coordenadas de onde partira, e não reconheceu nada.

Estava deitado no chão, alagado em suor, já não existia a sua cama, nem o seu quarto, nem o seu apartamento do décimo andar, nem o prédio onde habitara, e quando chamou pela Francisca, nem o mais subtil eco do seu chamamento se ouviu. Levantou-se e olhou à sua volta. Tudo lhe era estranho. Fora largado naquilo que parecia ser uma espécie de museu de antiguidades, recheado de mastodônticas locomotivas a vapor, tenders e carruagens centenárias restauradas, manequins fardados de fogueiros, agulheiros, revisores e chefes de estação, e moveu-se pasmado por entre aquelas relíquias reluzentes de outros tempos. Chamou de novo por Francisca e nada, de Francisca nem um suspiro, nem um ai. Atónito, espreitou por um dos janelões e lá fora reconheceu o antigo edifício da Câmara Municipal, o seu jardim fronteiro agora mais cuidado, que tantas vezes atravessara, nas suas idas e vindas de casa para o trabalho, e vice-versa, com aquele pitoresco coreto, recheado de arabescos, onde uma vez por outra tocavam as bandas lá do bairro. Encostou a testa à vidraça, fechou os olhos, reviu passagens da sua viagem galáctica, e pensou de si para si:
- Parece que voltei, mas não voltei, estou exausto e perdido!
Se queria enfrentar o exterior, não era descalço, com uma camiseta e uns calções mínimos que o podia fazer. Despiu e descalçou um manequim de bagageiro, e lá se ataviou o melhor possível. Depois, pelo sim, pelo não, voltou a consultar o calendário do seu relógio. Não há dúvida, tinham passado apenas onze dias, porém, tempo bastante para que tudo ficasse fora do tempo, mas não do lugar.

Saiu do museu e começou a andar em direcção ao jardim, voltando a concluir que, não fosse o caso de ter sido tragado por um qualquer universo paralelo, ou ter esbarrado com alguma deformação do espaço-tempo, não havia razão para duvidar que o seu relógio estava a funcionar correctamente. Curiosamente não havia automóveis e a balbúrdia do trânsito fora substituída por uma pacatez quase provinciana. Havia gente na rua, gente calma à mistura com gente apressada. As roupas que traziam vestidas eram ligeiramente diferentes das suas, mas não deixavam de ser pessoas por isso. Habituado como estava a que as diferenças fossem apenas aparentes, cruzou-se com um homem de meia-idade, pigarreou para aclarar a voz, e perguntou:
- Por favor, sabe dizer-me que dia é hoje?
- É Quarta, respondeu o homem, medindo-o curioso de alto a baixo.
- Não, não é isso, o que quero saber é em que ano e mês é que estamos, insistiu o Mário.
- Bem, hoje é 22 de Agosto de 2108. Está satisfeito? perguntou o outro, com uma ligeira expressão irónica a bailar-lhe no rosto, quase divertido por ver que ainda há gente que não sabe a quantas anda.
O Mário amparou-se a um banco do jardim e quase desfaleceu. Mais sério, o outro olhou-o de esguelha e perguntou:
- Sente-se mal, veja lá, precisa de alguma coisa?
O Mário fechou os olhos, passou a mão pelo queixo com barba de onze dias, balbuciou uma negativa, e começou a fazer contas de cabeça. 2108 menos 2015 dá uma pechincha de 93 anos, e a conclusão foi fácil de tirar. Salvo algum pormenor que lhe estava a escapar, já não valia de nada voltar a chamar pela Francisca.

Nota do autor – A Parte I foi escrita em Março de 1996, e publicada com o título “Viagem Fantástica”. A Parte II foi escrita em Março de 2014. Entre elas há uma ninharia de 18 anos autênticos, comparados com os 93 da ficção global.

sábado, março 22, 2014

Registo Para Memória Futura (97)

«O JORNAL DA MADEIRA, detido pelo Governo Regional do arquipélago, publicou esta manhã as conclusões do Conselho Regional do PSD/Madeira antes mesmo de esta reunião ter terminado.»

in DIÁRIO DE NOTÍCIAS on-line de 22 de Março de 2014

Meu comentário: Deliciosamente jardinesco!

terça-feira, março 18, 2014

Horizonte Nublado

António José Seguro esteve reunido com Pedro Passos Coelho, a pedido deste, para serem encontrados pontos de convergência nas políticas orçamentais, senão mesmo um possível acordo, no quadro da saída de Portugal do programa de ajustamento. No fim do encontro, com parcas declarações, Seguro limitou-se a dizer que o encontro não foi fácil, que há divergências insanáveis, entre o PS e o Governo, sobretudo quanto à estratégia para equilibrar as contas públicas, ficando-se o "contributo" do PS pela votação favorável do Tratado Orçamental e a luz verde à inscrição da regra de ouro na Lei de Enquadramento Orçamental. Portanto, desengane-se, quem esperava mais daquele lanche ajantarado.

E a oposição do PS continua a ficar-se por aqui. É fácil de perceber que vai ficar a ganhar fôlego e a aguardar serenamente que se desenrolem as eleições europeias de 2014, como teste ao estado e à paciência do eleitorado, e essas sim, as legislativas de 2015, para voltarmos, sem rupturas de maior, ao carrocel da fastidiosa alternância. Até lá, a par de arrumar a sua própria casa, vai deixando ao Governo PSD/CDS-PP, tempo e margem de manobra suficientes para, acobertado pela austeridade destinada a amansar os “mercados, mais a dependência externa e o endividamento galopante, continuar a implementar o seu programa ideológico neoliberal, baseado no sistemático esvaziamento do Estado Social, através do emagrecimento e extinção das funções sociais, o desmantelamento desenfreado do sector empresarial do Estado, através de alienações e privatizações em cascata, e a continuação do empobrecimento generalizado do povo português. Pelos vistos, se não for o povo, ninguém mais os consegue travar.

domingo, março 09, 2014

As Boas Intenções


As ditaduras e estados policiais, pela sua própria natureza sequestradora e castradora, convivem mal com a privacidade dos cidadãos, e as democracias, tanto as musculadas como as mais liberais, a pretexto do combate aos terrorismos e outros supostos males dos tempos actuais, têm vindo a convencer-nos que é legítimo abdicarmos de "alguma" liberdade e privacidade, para bem da nossa própria segurança. Para que baixemos os braços e não ofereçamos resistência, não se cansam de repetir vezes sem conta, que se não consentirmos na tal perda de liberdade e intrusão na privacidade, podemos vir a ser as vítimas dos próximos 11 de Setembro. E como se isso não bastasse, e acompanhando o "boom" da internet e das redes sociais, até nós vamos colaborando nessa tarefa, que ainda há uns anos atrás era olhada de soslaio e com reservas, que é a facilidade com que nos "desnudamos", à frente de meio mundo, esquecendo que de boas intenções está o inferno cheio. Na verdade, as empresas que alojam sites e redes sociais (Microsoft, Google, Facebook, Twitter, etc) não se têm coibido de fornecer todos os dados que lhes são exigidos pelos governos, sem se sentirem na mínima obrigação de proteger ou informar desse facto os utilizadores, o que nos leva a considerar que se sentem confortáveis na sua pele de diligentes informadores.

Podemos sempre dizer que não temos nada a esconder, que a nossa vida é transparente, que nada tememos, porque nada devemos, que somos inofensivos, mas há uma coisa que se chamam princípios, e sejam lá quais forem os argumentos invocados (mesmo na lógica do antes prevenir que remediar, ou do mal necessário), é garantido que ninguém gosta de saber que a sua conta bancária anda a ser bisbilhotada, que alguém o anda a espreitar pelo buraco da fechadura, a seguir os seus passos através do olho indiscreto da videovigilância, seguindo o rasto do telemóvel, o uso das caixas multibanco e portagens electrónicas, a coscuvilhar os seus e-mails, a escutar as suas conversas, por muito inocentes ou descomprometidas que sejam, pois o direito à privacidade é um dos sagrados direitos humanos, e não basta os entendidos virem dizer que a globalização, a democratização e a partilha universal dos meios de comunicação também têm os seus inconvenientes e perversas consequências.

É bom não esquecer que os métodos das polícias de hoje, agora apoiadas por uma extensa panóplia de sofisticados recursos tecnológicos, continuam a ser os mesmos das OKRANAs, STASIs, KGBs, SAVAKs, CIAs, DINAs, GESTAPOs, PIDEs/DGSs e outras que tais. A vigilância apertada de todos os nossos movimentos, simpatias, leituras, gostos e preferências, as escutas, o recurso a informadores, recrutados voluntariamente ou sob chantagem, são as ferramentas, o oxigénio e a matéria-prima das suas actividades. Embora maquilhadas com a cores da democracia, são um mundo à parte, operam por conta própria, fora dos limites, não são controladas nem escrutinadas, fazem o que lhes mandam fazer, actuando à margem das leis e segundo as conveniências e interesses de quem manda. Para além do Echelon, Prism e Tempora, complexos sistemas de espionagem global, entrelaçados e geridos pelos EUA e UK, também os há mais domésticos, isto é, cada país terá o seu, com níveis de abrangência e sofisticação variáveis. Em resumo: acabou-se a privacidade, caímos na rede, estamos metidos numa grande caldeirada, somos todos potenciais suspeitos, não há para onde fugir. E as "passwords" que nos dizem para mantermos rigorosamente a recato, está provado que não são invioláveis, pois qualquer "hacker" de meia-tigela sabe como contornar o problema, e passear alegremente dentro do nosso computador pessoal. Esta actividade é punida por lei, mas são um filão onde os governos vão recrutar os seus futuros especialistas e espiões.

Uma coisa é as nações espiarem-se reciprocamente, actividade que é da esfera dos seus jogos de influência, interesses e vantagens competitivas, e outra coisa o andarem a espiar e esgravatar a vida privada dos seus próprios cidadãos, como se de potenciais inimigos se tratassem, mesmo que sejam incapazes de fazer mal a uma mosca. Julian Assange, fundador e principal porta-voz do WikiLeaks, e Edward Snowden, ex-técnico de informática da agência norte-americana de espionagem NSA, não fizeram mais do que entreabrir o cofre dos segredos surripiados, analisados, classificados e armazenados pelos estados, à espera de quem deles faça uso, percebendo-se a razão da fúria das grandes potências (e não só) que caiu sobre eles. Se antes havia desconfianças sobre o abjecto comportamento dos governos, agora passou a haver certezas absolutas. E os grandes mandatários do poder mundial não perdoam que alguém lhes tenha posto o jogo a descoberto, havendo mesmo quem tenha sugerido que ambos os delatores deviam ser liquidados por um qualquer esquadrão da morte, na primeira oportunidade. Sobre a odisseia de Edward Snowden, aguardo com alguma expectativa o livro de Luke Harding, que sobre o tema será publicado neste mês de Março.

sábado, março 08, 2014

Humberto e o Cometa


Foi em Setembro de 1946, quando ainda não tinham assentado as poeiras de Hiroshisma e Nagasaki, que o cometa "Eustache" fez a sua aparição no sistema solar. Descoberto pelo astrónomo amador Anatole Eustache, durante seis semanas o firmamento foi riscado pela sua cauda, e as noites cintilaram com a exuberância da sua cabeleira. Nesse período nasceram centenas de milhares, talvez milhões de crianças, mas nenhuma viria a ser tão famosa quanto o Humberto Alves, filho de um escriturário do Grémio dos Armadores da Pesca do Bacalhau e de uma modista, que viviam ali para os lados do Beato. Debruçando-se sobre aquele novo objecto astronómico, e calculando com o rigor possível a sua órbita, os cientistas concluíram que ele iria surgir nos céus com uma periodicidade de sete anos.

Cedo o pequeno Humberto, de olhos penetrantes e cabelo com caracóis negros, começou a dar mostras de ser muito dotado. Quatro anos depois já lia e escrevia com grande desenvoltura, e quando o "Eustache" voltou a encontrar-se com a Terra em 1953, o jovem fez a sua primeira grande demonstração de criatividade, esculpindo no concurso das construções na areia, uma "Cidade dos Deuses", que deixou perplexos todos aqueles que contemplaram aquela espécie de fusão do Grande Cannyon com Angkor Vat, o Palácio dos Doges, os jardins de Versailles e a catedral de Colónia. Era uma construção tão insólita, destinada a ter uma vida tão efémera, que antes que as primeiras chuvas de Outono terraplanassem aquela "cidadela", transformando-a numa paisagem dunar, foi fotografada e comentada por repórteres de todo o mundo, chegando mesmo a ter direito a uma exuberante e celebrada edição especial da National Geographic.

Nos sete anos seguintes o pequeno Humberto dedicou-se à música. Quando o "Eustache" efectuou a sua nova aparição já o menino-prodígio tinha terminado a sua sinfonia para piano e orquestra "Androceus", que deixou meio mundo embasbacado, depois de uma primeira audição arrancada a ferros, pois ninguém acreditava que fora aquele gaiato, que nunca passara pelo conservatório, o seu compositor. Ser interpretada pela Orquestra Sinfónica de Berlim e editada em disco pela Deutsch Grammophon foi o passo que se seguiu. Se não deu entrevistas, também é verdade que nunca mais compôs música, instalando-se o mistério de como conseguira suplantar Mozart, embora o Humberto se recusasse a ser tratado como um génio precoce. Limitava-se a invadir os terrenos que outros repisavam durante uma vida, fazia uma demonstração do seu talento, e saía tão depressa como tinha entrado, quase em simultâneo com as aparições do errante "Eustache".

Nos sete anos seguintes virou-se para a escrita. Em 1967, ano em que o cometa vagabundo voltou a riscar a abóbada celeste, já o Humberto tinha ultimado o seu romance "Os Valdos". A a primeira reacção dos editores foi de desconfiança e incredulidade, pois a obra podia não passar de uma fraude. Mas não senhor! Afinal as trezentas páginas eram genuínas, uma espécie de mergulho em apneia, na história de uma invulgar família portuguesa. Tornou-se rápidamente num grande êxito editorial, traduzido em dezasseis línguas, publicado no mundo inteiro e com uma tiragem astronómica de duzentos e cinquenta milhões de cópias, em edições que esgotavam num abrir e fechar de olhos, ofuscando Balsac, Dostoievski e Heminguay. Se alguém esperava que o Humberto tivesse encontrado o caminho, iniciando uma carreira de escritor, frustrado ficou. A epopeia de "Os Valdos" foi o seu primeiro e único exercício literário.

O jovem era um caso sério, um mistério dificilmente explicável, tão versátil como um Leonardo dos tempos modernos, e tão esquivo e solitário como um mudo de nascença. Arrumou a máquina de escrever e virou-se para as tintas e os pincéis, ao mesmo tempo que o país entrava em convulsão com a Revolução dos Cravos. Esperou pela oportunidade, e um belo dia, quando o cabeludo "Eustache" voltava a cintilar nos confins do sistema Solar, arrastando exuberante a sua cauda de partículas, montou os andaimes junto daquela imensa parede de vinte e um metros de comprimento e cinco de altura, e começou a esboçar o colossal mural "Lusátria". A pintura levou meses a ser concluída, muito depois do cometa já ter iniciado o seu caminho de regresso às vizinhanças do Sol. Era um espanto, uma jóia de cortar a respiração. Fizeram-se documentários e excursões para apreciar o progresso do trabalho, e quando Humberto terminou o painel, se Almada e Siqueiros ainda por cá andassem, teriam ficado sem fala ou soçobrado de inveja.

Passaram sete anos e as agendas de jornalistas e entendidos, estavam atentas ao mínimo movimento, pois Humberto emergia sempre, com mais uma manifestação de cortar a respiração, quando se avizinhava uma nova aparição do cometa. Mas em vão. Nem o "Eustache" irrompeu das profundezas do universo, nem Humberto saiu para a praça pública. Começaram pesquisas desenfreadas para descobrir o paradeiro do grande e jovem artista, mas nada se soube. O Humberto tinha desaparecido de circulação, mergulhado no mais sombrio e silencioso dos anonimatos, ao passo que os telescópios continuavam a varrer a abóbada celeste, em busca de algum ténue vestígio do inspirador cometa, ou da razão porque tinha deixado de marcar encontro com a Terra. Alguns meses passados, os astrónomos acabaram por admitir que talvez uma variação na sua alongada órbita, tivesse levado a que se aproximasse em demasia do Sol, acontecendo a sua desintegração. Quanto ao Humberto, virados e revirados os quatro cantos do planeta, até hoje ninguém conseguiu dar com ele, mais uma vez se provando que quem não acredita que os astros influenciam a vida das pessoas, não pode estar mais errado.

Da série "Contos Quase Instantâneos"

domingo, março 02, 2014

A Geometria Variável dos Princípios

«Não temos razões para duvidar» [da palavra da Guiné Equatorial]

Declaração do ministro dos Negócios Estrangeiros Rui Machete, na entrevista concedida ao jornal PÚBLICO, sobre a aceitação da adesão da Guiné Equatorial como membro da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP), que se está a realizar sem a garantia de que haverá alteração do ordenamento jurídico daquele país, enquadrando-o como país respeitador da Democracia e dos Direitos Humanos. Lembremos que a Guiné Equatorial é governada desde 1979 por um regime corrupto e ditatorial, presidido por Teodoro Obiang Nguema Mbasogo, que promove a perseguição e prisão indiscriminada de adversários políticos, usando e abusando da pena de morte e de execuções sumárias. Este pedido de adesão à CPLP é interpretado como uma tentativa do regime da Guiné Equatorial romper o seu persistente isolamento internacional.

Meu comentário: Por este andar, ainda um dia verei a República Democrática Popular da Coreia (do Norte) pedir a sua adesão à CPLP, e a coisa compor-se.

sábado, março 01, 2014

Registo Para Memória Futura (96)

«Todos aqueles que produziram os seus descontos e que têm hoje direito às suas reformas ou às suas pensões, deverão mantê-las no futuro, sob pena de o Estado se apropriar daquilo que não é seu.»

Pedro Passos Coelho em 19 de Abril de 2011, durante a campanha eleitoral para as Eleições Legislativas

«A nova Contribuição Extraordinária de Solidariedade (CES), que foi reconfigurada no Orçamento Rectificativo de 2014, passa a abranger 165.497 novos pensionistas, que estavam isentos do seu pagamento, de acordo com a Unidade Técnica de Apoio Orçamental (UTAO). (...) Os números, que foram fornecidos à UTAO pelo Ministério das Finanças, indicam que dos 505.816 pensionistas abrangidos pela medida, 198.635 pertencem ao regime geral de Segurança Social (mais 85.635 do que com a formulação inicial da CES para 2014) e 307.181 pensionistas (mais 79.862 do que anteriormente) pertencem à Caixa Geral de Aposentações (CGA). (...)»

Excerto da notícia do jornal PÚBLICO de 1 de Março de 2014