Esta é uma história resumida das andanças de Miguel Antão de Figueiroa, filho de Diogo Antão de Figueiroa, neto de Luís Antão de Figueiroa, bisneto de Álvaro Antão de Figueiroa e trisneto de Pero Antão de Figueiroa.
O apetite pela aventura, pirataria e actividades marginais, corria abundantemente nas veias dos Figueiroa. A saga daquela família tinha começado a desenhar-se há quase 200 anos atrás, por volta de 1535, com o trisavô Pero Antão, quando este andara por Ceilão e pelas costas malabares, arrecadando fortuna. Rezam as crónicas que teria mesmo confraternizado com o aventureiro Fernão Mendes Pinto, nas suas peregrinações, e só não foi cativo numa das muitas pelejas com piratas malaios, porque se lançou às águas e andou à deriva, durante três dias, rodeado de tubarões e amparado a uma pipa vazia, até ser recolhido por pescadores chineses.
Quanto ao bisavô Álvaro Antão, avesso a aventuras, a outras latitudes, aos ares marítimos e aos balanços das ondas, ficara-se pelo amanho das suas propriedades, por alturas de Monforte, ocupado em caçadas ao javali, pelas florestas do feudo, e a fazer filhos ao mulherio das redondezas. Entre a mais de meia centena de rebentos que deixou espalhados pelas redondezas, apenas reconheceu um deles como legítimo, nada mais, nada menos, do que aquele cuja mãe era a abadessa do convento das freiras reclusas, e a quem deu o nome de Luís, por respeito a um rei dos franceses que andou nas cruzadas. O velho garanhão, apagou-se numa tarde de verão, já perto dos setenta anos, quando vinha de regresso a casa, por caminhos tortuosos, a debicar amoras silvestres, depois de ter ido meter o dente na filha de um camponês que amanhava uma das suas propriedades.
Aquele avô Luis Antão, fruto dos amores ilícitos traficados na cela da abadessa, veio depois a distinguir-se no cerco de Diu, fizera vida de marajá, mas acabara mal, contrariando as ordens do vice-rei de não traficar com os mercadores árabes do mar Vermelho, que demandavam depois as rotas das caravanas, perturbando com isso o monopólio do comércio português.
Depois de muitas surtidas e escapadelas entre o estreito de Ormuz e o mar de Omã, e de lhe terem passado pelas mãos muitas toneladas de canela, nós moscada, cravinho, pimenta, gengibre, e incontáveis sacos de ouro e pedrarias, acabou recambiado para a mãe-pátria, com uma mão à frente e outra atrás, deserdado pela ganância, não sem que o tenham chicoteado na parada do fortim de Cochim, à frente de toda guarnição. Já cá em Lisboa, andou como aguadeiro e à serventia de pedreiros, nas obras do palácio real. Mais tarde amanhou-se com uma peixeira da ribeira, que lhe gerou um Figueiroa, e que foi baptizado de Diogo.
Diogo Antão, futuro pai de Miguel Antão, filho de peixeira e pedreiro, também ele se deixou inebriar pelos odores e sabores das índias, mas isso aconteceu quando o poderio e o frenesim português já tinham entrado em declínio e as fortunas já não se conseguiam fazer da noite para o dia. Havia que mourejar com afinco, se era intenção trazer algumas moedas para amparar a velhice, ou então ficar definitivamente por lá, entre brâmanes, santões, faquires e encantadores de serpentes. Embarcou, ficou por lá, mas entregou-se a actividades marginais, traficando com a escória dos mercadores mouros e associado com os piratas filipinos que cruzavam os mares da China, espalhando o terror e saqueando juncos e aldeias. Foi já depois dos quarenta anos que finalmente se decidiu a constituir família, casando com uma viúva goesa, que temente dos editais da inquisição, se viera acolher aos pés da Santa Madre Igreja, recebendo no baptismo o nome de Mariana, a que depois acrescentou o apelido dos Figueiroa.
Do enlace nasceu o nosso Miguel Antão de Figueiroa, que desde cedo se manifestou uma nulidade na aprendizagem da doutrina, das letras e dos números, apesar dos castigos e chibatadas que os missionários lhe aplicavam. Já rapazola, preferia andar pelos tugúrios portuários, misturando-se com a marinhagem e os mercadores, até que numa primeira oportunidade, deixou a casa paterna e fez-se à vida, embarcando numa carraca que ia para Cantão.
Por lá andou, saltitando de junco em junco, até que foi parar à equipagem do mestre Bartolo, um veneziano maneta e meio cego, já bastante entrado nos anos, carregado de maleitas e sem família, com quem fez uma amizade interesseira, na mira de lhe herdar teres e haveres. E assim aconteceu. Três anos depois finou-se o veneziano, depois de ter redigido testamento a favor de Miguel Antão, deixando-lhe a barcaça, a tripulação, as arcas, baús e todas as traficâncias e trafulhices em que andavam envolvidos. Entretanto, Miguel Antão já tinha aprendido que um homem, desde que se entregue a actividades marginais e pecaminosas, está-lhe vedado ter hábitos sedentários, deve mudar de pouso com regularidade, sob pena de ser denunciado, montarem-lhe emboscadas e deitarem-lhe a unha, com as previsíveis consequências. Foi assim que vinte anos depois de ter cruzado, em todas as direcções, os mares setentrionais, da terra dos somalis até ao Bornéu, resolveu mudar-se para as bandas do atlântico, e passar a frequentar o litoral dos brasis.
Miguel Antão saía ao pai e ao avô, quanto ao apetite pelos bens materiais. Sempre que podia, não virava a cara a uma boa oportunidade que tornasse mais pesadas e bem recheadas as arcas que trazia aferrolhadas no porão do seu pequeno galeão “Santa Ana”, que havia arrematado há dois anos atrás, numa praça do Maranhão. Mas também ostentava uma costela do bisavô de Monforte, pois ficava embevecido e a salivar com qualquer baloiçar de quadris, e deixava-se seduzir facilmente pelo primeiro par de olhos, fossem eles pretos, castanhos, verdes ou azuis, que se pousassem nele. Já tinha tido várias mulheres, ao todo umas quatro, que sempre o tinham acompanhado nas suas deambulações pelas quatro partidas do mundo. Uma morrera de malária, outra de saudades de terra, outra deitara-a pela borda fora e a última trocara-a por meia dúzia de barris de pólvora. Hoje com quase setenta anos, arrastava atrás de si uma jovem mulher de 24 anos, que dava pelo nome de Carolina Pires, e que as línguas viperinas diziam ser filha de um comerciante andaluz e de uma nobre portuguesa caída em desgraça, cuja família fora apoiante da corte filipina.
Mas a mudança de ares e de mulher só lhe trouxera ralações. Fosse pelo ciúme que desponta e engrossa com a idade, fosse a virilidade que começara a murchar, os amores já não lhe corriam de feição. Apesar das suas ordens de ninguém lhe dirigir a palavra, se acercar ou pisar o risco, entre ele e a sua Carolina Pires tinha-se intrometido o novo piloto do “Santa Ana”, um tal Álvaro Trovoada, homem de trinta e poucos anos, curtido por muitos sóis e borrascas, que já andara pela Costa da Mina a acorrentar escravos pretos, depois de ter cumprido serviço nas guarnições de Malaca, e que Miguel Antão tivera necessidade de contratar em Porto Alegre, porque o velho Jacobo, meio judeu, meio mouro e meio maluco, havia perecido numa zaragata de taberna, com uma mão cheia de facadas.
Carolina e Álvaro foi amor à primeira vista. Viram-se de perto, pela primeira vez, quando Dona Carolina teve que ir a terra, fazer uma compras de tecidos, recem-chegados de Lisboa, e apalavrar os serviços de uma costureira mulata. Depois disso, o sol até parecia outro, embaciado pelo esplendor da bela dama. O Trovoada andava sempre à espreita, de olhos arregalados, fixos na porta que dava acesso ao castelo da popa, onde a sua Carolina estava recolhida. Não despegavam os olhos um do outro, durante os escassos momentos em que dona Carolina vinha até à coberta, despejar o balde de fezes e urinas, ou então, em curtíssimas passeatas, inalar o ar dos trópicos, carregado de outros aromas, antecâmara para conspícuos e desvairados sonhos. Fitavam-se com insistência e demoradamente, por entre os panos das velas, as chapadas de vento, o cordame tenso e o olhar faiscante e ciumento do velho Miguel Antão, que andava sempre por perto, uma vezes a sibilar como uma serpente, outras a rosnar como um cão de guarda. Fora esses momentos, Dona Carolina passava o tempo entre uns intermináveis bordados, leituras piedosas de missais, e um ou outro panfleto com a descrição da vida de santos.
Mas a Miguel Antão, se era verdade que os amores não lhe corriam de feição, já as suas escuras negociatas iam de mal a pior. Em tempos, fizera muitas surtidas pela calada, fornecendo material, mantimentos e ferramentas ao garimpo, sendo pago com ouro e diamantes que escapavam aos fiscais de impostos, os quais tinham por missão garantir a cobrança do “quinto” devido à coroa portuguesa. Mas os tempos agora eram outros, os fiscais da fazenda real redobraram a vigilância, o seu número duplicara e as leis tinham endurecido, ao ponto do tráfico ser punido com a morte.
Miguel Antão desconfiou então que o mundo estava a mudar, os bons velhos tempos tinham acabado, e que era altura de mudar de pouso e de ofício. Iria arriscar um último servicinho já ajustado com os garimpeiros, e depois, se o corpo tivesse energia e alento para seguir em frente, iria entregar-se ao emergente comércio de escravos, que vinha alimentando de força motriz os engenhos do açúcar.
Mas o tal último serviço correu mal. Ele desconhecia que já andavam no seu encalço, e foi apanhado com a boca na botija pela tropa jagunça, quando ia fazer a troca de ouro por ferramentas, e a mão pesadíssima do capitão da capitania fez-se sentir, sem necessidade de fazer passar o Miguel Antão pela bicheza da enxovia ou os trâmites do tribunal. Foi ali mesmo, ao nascer do dia, naquele ano de 1719, que a sentença foi oralmente traçada. Foi ali mesmo, sem tempo para pestanejar ou mastigar um Pai Nosso, entre as enxárcias e o voo da passarada irrequieta, que o velho Miguel Antão foi deixado a espernear no mastaréu durante meio minuto, até que ficou ali dependurado, cabeça à banda, língua azulada de fora, a oscilar ligeiramente, ao sabor do sopro quente e húmido da brisa, à espera que alguém o arriasse para umas rápidas exéquias. Interrompeu-se ali aquela linha directa dos Figueiroa, mas não a tentação do ilícito e a vesga interpretação das escrituras, segundo as conveniências da época. Haveriam de nascer muitas mais fortunas, feitas à custa de pirataria e escravatura, e muitas mais seriam engolidas pelas ondas do mar e da cupidez humana, muito depois de um tal padre Vieira se ter engalfinhado com os corruptos e poderosos do império, e quase ninguém ter percebido porque razão pregava aos peixes e se pôs contra os negreiros, a favor dos escravos. Mas isso é outra história, que não vem agora para o caso.
Encomendada a alma e descido à terra o corpo ensopado do último Figueiroa, foi a vez de Álvaro Trovoada falar então, pela primeira vez, com uma ruborizada Carolina Pires, tendo ficado combinado que ele tomaria conta de todos os haveres e da situação, passando a comandar o galeão. Ficar por ali não era do agrado de ninguém. Assim, iriam contratar outro piloto e renovar a tripulação que o medo dispersara, mandar raspar o casco, encher as juntas de estopa, remendar as velas, carregar água e mantimentos, e atravessar o atlântico até à Costa da Mina, para avaliar se o tal comércio de escravos era compensador e tinha pernas para andar.
Tempos depois, já no mar alto, e até alturas de Cabo Verde, onde aportou à ilha de Santiago para fazer aguada, Álvaro Trovoada começou a alternar as suas novas obrigações no convés e coberta, com assíduas e demoradas visitas à cabina de Dona Carolina Pires, onde partilhando o apertado beliche, ia degustando a doce, tenra e inconsolável viúva.