Bastaram poucos dias para que a morte viesse cobrar a sua factura, levando consigo Álvaro Cunhal o polítíco, Vasco Gonçalves o general, Eugénio de Andrade o poeta, e Emídio o Guerreiro.
Concorde-se ou não, Portugal continua a empobrecer, extinguindo-se mais um punhado das suas referências.
Muito se tem escrito nos últimos dias sobre Álvaro Cunhal. Os meios de comunicação, antecipando-se ao inevitável desfecho, já há muito que vinham preparando os seus cadernos biográficos, que agora vieram alternar com os muitos depoimentos de amigos, companheiros de jornada e adversários políticos, todos eles, na hora da consumação da última lei da vida, nuns casos amaciando as arestas vivas, noutros ensaiando largos elogios, de uma existência que foi uma missão, e que se confunde com o trajecto do PCP no seio da sociedade portuguesa, nos últimos cinquenta anos.
Afinal quem foi Álvaro Cunhal?
Disseram que apesar do seu alto grau de coerência, quase uma obsessão, era um político tácticamente flexível, que procurava consensos, disso sendo testemunhas quem com ele partilhou os conselhos de ministros dos governos provisórios que integrou, logo após o 25 de Abril.
Disseram que ao ocultar-se e dissolver-se no colectivo estava a esculpir, intencional e laboriosamente, uma imagem enigmática, quase um mito.
Disseram que as supostas paredes de vidro do seu partido comunista, que dirigiu com incontestada autoridade, afinal, à imagem e semelhança do próprio Cunhal, continuaram tão opacas como chumbo.
Disseram que era indiferente às pressões da realidade, estando mais interessado em ser o agente de transformação dessa mesma realidade.
Disseram que não era um visionário, mas transpirava confiança no género humano, acreditando piamente na ideia de que há certas convicções que podem mover montanhas, senão mesmo alterar o curso da própria História.
Disseram que era intransigente entre os seus correligionários, implacável mesmo com os dissidentes, mas tácticamente contemporizador na arena do combate político, sendo senhor de uma grande capacidade de sedução.
Disseram que, apesar de ter tido uma vida temperada pela dureza das masmorras e do isolamento das solitárias, da clandestinidade e do exílio forçado, pelo meio pairou sempre o homem sensível, o artista plástico, o escritor, o ensaísta e tradutor, um grande intelectual, detentor de uma vasta e multifacetada cultura.
Disseram que em Novembro de 1975, no auge do processo revolucionário, mandou que os comunistas retrocedessem, evitando assim que o país mergulhasse numa guerra civil.
Disseram que parou no tempo, porque não quis ou foi incapaz de assimilar as mudanças da última década do século XX.
Disseram que o silêncio que impôs a si próprio aconteceu quando também emudeceram os amanhãs que cantam.
Disseram que o seu próprio testamento é uma preciosidade, pois punha as condições que seriam o pretexto para um grande e derradeiro movimento de massas, que culminaria na pira funerária onde se lhe perderia o rasto, o monumento por excelência dos grandes heróis. De facto, foi um herói “quase perfeito”, não houvesse sido perdedor de muitas batalhas, e vencedor de outras tantas, recusando-se obstinadamente a considerar a guerra perdida.
Dos muitos opúsculos que li sobre Cunhal, nestes últimos dias, destaco o que escreveram dois cronistas do nosso meio. A Clara Ferreira Alves, ao afirmar que “temos sempre que perdoar os pecados a quem traduziu o Rei Lear (de William Shakespeare) para português enquanto tentava salvar o mundo, mesmo querendo aprisioná-lo”. Já o Daniel Oliveira reconheceu em Cunhal um génio político, eminentemente táctico, que sabia quando podia e devia avançar, e que não vacilava ao recuar, quando a isso o obrigavam as condições objectivas do combate político. A derrota final que foi a implosão do “socialismo real”, que era o seu oxigénio e a sua bússula, e que o levou a afastar-se da ribalta, foi apenas o epílogo de muitas e grandes vitórias, de que é beneficiário e devedor o povo português. Quanto à mediocridade que o rodeou e lhe sobreviveu, é uma herança que ele não soube ou quis acautelar, e que contradiz a sua genialidade e superioridade moral.
Pacheco Pereira anda há anos a historiar o movimento comunista e a traçar a sua biografia (não autorizada), constatando que no século XX português, não houve ninguém como ele, até onde a vista possa alcançar.
Entretanto, a Sibéria passou à história, ao passo que Guantánamo se tornou uma realidade. As oligarquias põem e dispõem, o império auto-decretou-se, exportando a guerra, instalando a sua lei e o seu imenso poder descricionário e tentacular. Assiste-se à cínica erosão dos direitos humanos, com a deslocalização dos interrogatórios sob tortura, para países “amigos” e pouco recomendáveis, fornecedores desse tipo de serviços, uma espécie de“outsourcing” para recolher informações, sem que os mandantes manchem as mãos. Em tempos foi a pressão do comunismo e a atracção que exercia sobre grandes parcelas da humanidade, que obrigou o capital a fazer cedências à social-democracia. Hoje, sem concorrência de monta, o capitalismo tomou o freio nos dentes, a globalização encheu o planeta e banalizou a miséria e a exploração, proletarizando toda a Humanidade, aviltando a democracia e levando ao extremo o estádio supremo do capitalismo.
Porém, Álvaro Cunhal acreditava que isto não vai ficar assim.
Entre as muitas e sérias apreensões que nos cercam, faço votos para que não se tenha enganado.
Pertenceu a uma linhagem que, nem sempre tendo razão, fazia da política uma actividade despojada, digna e superior, ao serviço da sociedade, exercida com serenidade, abnegação, frontalidade, determinação e seriedade intelectual.
Apesar dos sinais negativos e das sombras que se multiplicam, não quero acreditar que a sua estirpe esteja em vias de extinção.
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