Os discursos pronunciados nas cerimónias evocativas do 25 de Abril transformaram-se em tiradas enfáticas, recheadas de encómios, bem emolduradas e regadas com brindes à democracia, mais uns quantos choradinhos dos costume, a explorar os temas que já conhecemos de cor. Tornaram-se litanias onde os políticos enunciam os males que nos afligem, desde as dificuldades económicas até à exclusão social, passando pelas desigualdades e o empobrecimento em geral, como se fossem outros que não eles, que nos outros dias do ano, se entregam à tarefa de demolir o que foi edificado de lá para cá, entregando o país às garras da penúria. Melhor seria que tentassem confessar-se e redimir-se dos pecados, por não serem o que parecem e por praticarem o inverso do que andaram a prometer. Ou então, que guardassem silêncio.
quarta-feira, abril 26, 2006
As Vozes e o Silêncio
Os discursos pronunciados nas cerimónias evocativas do 25 de Abril transformaram-se em tiradas enfáticas, recheadas de encómios, bem emolduradas e regadas com brindes à democracia, mais uns quantos choradinhos dos costume, a explorar os temas que já conhecemos de cor. Tornaram-se litanias onde os políticos enunciam os males que nos afligem, desde as dificuldades económicas até à exclusão social, passando pelas desigualdades e o empobrecimento em geral, como se fossem outros que não eles, que nos outros dias do ano, se entregam à tarefa de demolir o que foi edificado de lá para cá, entregando o país às garras da penúria. Melhor seria que tentassem confessar-se e redimir-se dos pecados, por não serem o que parecem e por praticarem o inverso do que andaram a prometer. Ou então, que guardassem silêncio.
segunda-feira, abril 24, 2006
Liberdade Reconquistada
Já lá vão 32 anos, quando risquei esta ilustração para um boletim partidário. Viviam-se tempos de libertação e de ajuste de contas com o colonialismo, o autoritarismo, a repressão e a mordaça de um Estado velho, que arvorando-se em “Novo” só para alguns, converteu o país numa grande penitenciária a céu aberto para todos os outros. Hoje, quando são reabilitados despotismos e outras variantes de exploração humana, incauta ou dissimuladamente apelidados de modernidade, convém estar atento, assentar ideias e não deixar que nos comam as papas na cabeça.
sábado, abril 22, 2006
Feedback (*)
(*) Em português significa “reacção”.
Algumas pessoas discordaram das ideias e considerações que vinculei no meu artigo “Mercenários”, dizendo-me que se a intenção era ensaiar um cenário de ficção científica, ainda vá lá, mas que se a finalidade era outra, estava a exagerar e a alimentar as teorias conspirativas que andam à solta por aí. Pois bem, seja ficção ou conspiração, o que é um facto é que o nosso presidente da República, Aníbal Cavaco Silva, durante uma visita às tropas portuguesas estacionadas na Bósnia, no seu papel de comandante-chefe, e metido dentro de um dolman camuflado, sempre económico em palavras e ideias fracturantes, disparou no dia 20 de Abril de 2006, com todas as letras e para quem o quis ouvir, que “o envio de tropas portuguesas para o estrangeiro, longe de ser um encargo para o país, era sobretudo um investimento”. Arrisco-me a fazer uma pergunta, sabendo antecipadamente que ele não vai responder: Investimento em quê, porquê e para quê? O tempo encarregar-se-á de tirar as dúvidas.
quinta-feira, abril 20, 2006
Mercenários
É habitual argumentar-se que os pequenos estados não possuem recursos suficientes para manterem umas forças armadas baseadas no serviço militar obrigatório, no entanto, esse argumento não passa de um ardil, já que esses recursos acabam sempre por aparecer, para financiarem forças armadas assentes no profissionalismo, por sinal bem mais dispendiosas que as outras, mas na opinião de alguns sábios, com grandes e notórias vantagens. Os mercenários não precisam de possuir sentimentos patrióticos para se sentirem motivados (o dinheiro é um óptimo substituto), não têm comportamentos de tropa fandanga, oferecem garantias de lealdade ao patrão, desde que aquele traga os pagamentos em dia, limitam-se a cumprir ordens e não costumam questionar se vão entrar numa guerra boa ou má. Na verdade, o que se passa é que o poder, a partir dos anos 70 do século passado, passou a desconfiar dos militares milicianos e considera desaconselhável que qualquer pessoa comum tenha acesso facilitado às armas. Os cidadãos foram feitos para trabalhar, tratar da família, ir ao futebol e pagar impostos, e não para andarem a brincar aos soldados, com a agravante de por obra de algum descontentamento generalizado, lhes poder passar pela cabeça a ideia de congeminar e levar a cabo alguma revolução. Considerados impensáveis nos novos tempos, porque as pessoas vão perdendo o hábito de reclamar, o Movimento dos Capitães e a Revolução do 25 de Abril de 1974 em Portugal, foram impulsos nascidos no seio da tropa à moda antiga, e justamente apropriados pelo povo. Aquela aliança entre o povo e os militares, foi coisa que não deixou muitas saudades em certos sectores, vigorando ainda hoje uma acérrima hostilidade para com aquela transitória coligação, e os políticos, aconselhados por quem não quer voltar a perder poder e privilégios, e interessados em manter boas e estreitas relações com os donos do dinheiro, acharam por bem não voltar a correr riscos, mudando o estatuto da tropa.
Assim, o programa apresenta-se claro. Para novos tipos de guerra, exige-se um novo tipo de combatentes. Como não é para já a solução dos soldados robotizados, primeiro profissionalizam-se as forças armadas, depois passa-se à fase de internacionalização, com o país “A” a poder passar a contratar os serviços das forças armadas do país “B”, para tratar de uma questiúncula qualquer no país “C”, e finalmente, porque estamos mergulhados em economias de mercado, e em tempos de globalização a soberania deixou de ter sentido, passando também a ser objecto de negócio, avança-se para a privatização das forças armadas, tal como já se privatizou a saúde, a educação e outros sectores públicos.
Provavelmente, mais coisa menos coisa, será assim que as coisas vão acontecer.
quarta-feira, abril 19, 2006
Coincidências e Maquinações
As pessoas que pronunciaram ou escreveram as frases que se transcrevem a seguir, sabiam o que diziam, uns porque foram ou são gente muito íntima do poder, outros porque estão bem informados e conhecem os mecanismos e labirintos desse mesmo poder. Por isso, se é verdade que nem tudo o que acontece nos meandros da política pode ser classificado como conspiração, também é certo que são poucos os factos que podem ser considerados meras coincidências. Quando um ministro nos vem falar ao coração, dizendo que há que aceitar uma medida impopular, reconhecendo-a como dolorosa, porém necessária para se alcançar um hipotético benefício futuro, o mais certo é estar a tentar obter o nosso consentimento, para algo de que não iremos colher qualquer proveito, além de que o verdadeiro beneficiário irá ser outro que não nós.
Quando uma empresa declara falência e lança no desemprego os muitos que lá trabalham, é quase certo que antes disso, alguém andou a preparar o terreno, apropriando-se de teres e haveres, para depois bater em retirada no momento certo. Quando um país entra em guerra, é certo que vem aí uma grande calamidade para muita gente, mas em contrapartida vai ser um grande maná para os poucos do costume. Ora bem! Está na altura de deixar para trás a idade da inocência, da ingenuidade e do desconhecimento. E também o pendor para a resignação. Ouçamos o que têm para dizer os meus convidados!
O homem prudente deve seguir sempre as vias traçadas pelos grandes personagens.
Toda acção é orientada em termos do fim que se procura atingir.
Todos compreendem como é digno de encómios um príncipe quando cumpre a sua palavra e vive com integridade e não com astúcia. No entanto, a experiência de nossos dias mostra haverem realizado grandes coisas os príncipes que, pouco caso fazendo da palavra dada e sabendo com astúcia iludir os homens, acabaram triunfando dos que tinham por norma de proceder a lealdade.
Saiba-se que existem dois modos de combater: um com as leis, outro com a força. O primeiro é próprio do homem, o segundo dos animais. Não sendo, porém, muitas vezes suficiente o primeiro, convém recorrer ao segundo. Por conseguinte, a um príncipe é mister saber comportar-se como homem e como animal (...)
Tendo, portanto, necessidade de proceder como animal, deve um príncipe adoptar a índole ao mesmo tempo do leão e da raposa; porque o leão não sabe fugir das armadilhas e a raposa não sabe defender-se dos lobos. Assim, cumpre ser raposa para conhecer as armadilhas e leão para amedrontar os lobos. Quem se contenta de ser leão demonstra não conhecer o assunto.
Um príncipe sábio não pode, pois, nem deve manter-se fiel às suas promessas quando, extinta a causa que o levou a fazê-las, o cumprimento delas traz-lhe prejuízo Este preceito não seria bom se os homens fossem todos bons. Como, porém, são maus e, por isso mesmo, faltariam à palavra que acaso nos dessem, nada impede venhamos nós a faltar também à nossa (...)
Quando não há possibilidade de alterar o curso das acções dos homens e, sobretudo, dos príncipes, procura-se distinguir sempre o fim a que eles tendem.
Busque, pois, um príncipe triunfar das dificuldades e manter o Estado que os meios para isso nunca deixarão de ser julgados honrosos, e todos os aplaudirão. Na verdade, o vulgo sempre se deixa seduzir pelas aparências e pelos resultados.
Nicolau Maquiavel – Estadista e escritor florentino do século XVI. Extractos da sua obra “O Príncipe”, considerado um tratado de ciência política.
Uma verdade insignificante pode ser eclipsada por uma falsidade emocionante.
Aldous Huxley – Escritor inglês, autor do romance Brave New World, publicado em 1932.
Em política nada acontece por acaso. Cada vez que um acontecimento surge, podemos estar seguros que foi preparado por alguém para ser levado a cabo dessa maneira.
Franklin Delano Roosevelt - Presidente dos Estados Unidos da América entre 1933 e 1945.
A humanidade está dividida em três grupos: Há um pequeno grupo de pessoas que concebe e produz acontecimentos, depois um grupo um pouco maior que assegura a execução e observa os resultados, e finalmente um grupo largamente maioritário que ignora o que na realidade está a acontecer.
Nicholas Murray Butler - Presidente da Pilgrim Society, membro da Carnegie, membro do CFR (Council on Foreign Relations).
Iremos ter um governo mundial, quer queiramos ou não. A única questão que falta saber é se será imposto ou consentido.
Paul Warburg - Financeiro e membro do CFR (Council on Foreign Relations).
O povo francês desconhece, mas a verdade é que estamos em guerra com os E.U.A.. É uma guerra permanente, económica, uma guerra sem mortos. Efectivamente, os americanos são muito duros e vorazes, sendo sua intenção dominar o mundo, sem nada partilhar com os outros.
François Mitterrand - Político francês, num comentário feito no fim de uma entrevista, pouco antes de falecer, citado pelo Courrier International de Abril de 2000
Quase sem nos apercebermos, estamos a viver, nos países ocidentais, de há dez anos para cá, uma mudança radical de regime político, com o advento de um novo tipo de poder, baseado nas redes económicas e financeiras. Por isso, há razões de sobra para não nos considerarmos, de todo, a viver em democracia.
A ditadura sem ditador não aspira a tomar o poder, mas sim a exercer o poder sobre aqueles que o detêm.
Viviane Forrester - Autora de várias novelas e ensaios, é crítica literária do jornal Le Monde e membro da organização Femina.
terça-feira, abril 18, 2006
Olho Mágico
A ENSIGN Selfix 16-20 que as fotos documentam, é um dos vários modelos das câmaras fotográficas de fole, que apareceram no mercado, entre 1936 e 1961. Este tipo de câmaras, começaram inicialmente a ser produzidas pela Ensign Ltd de Londres, empresa que em 1951 adoptou a denominação Ross Ensign Ltd., tendo acabado por se extinguir em 1961.
Este modelo ENSIGN Selfix 16-20 surgiu no mercado em princípios da década de 1950. É uma câmara de rolo 120, com 16 exposições em formato de 6 x 4,5 centímetros, vocacionada para amadores, logo detentora de características modestas, muito embora apresente uma esmerada construção e óptimos acabamentos cromados. O fole retráctil aloja-se num corpo metálico, que se abre na totalidade, pela parte traseira, para carregamento e remoção do rolo. Possui uma pequena janela para controlar o avanço da película, o qual é accionado manualmente, através de um rotor metálico no topo do corpo, ao lado do visor. O conjunto óptico Épsilon está equipado com uma lente Ensar Anastigmat de 75 milímetros, que permite a utilização de aberturas de diafragma entre 4.5 e 22. Aceita fotografar um objecto entre a distância de 1,5 metros e o infinito, e o disparador requer que seja previamente armado. Tem velocidades de obturador de 1/1, 1/2, 1/5, 1/10, 1/25, 1/50, 1/100, 1/300 avos de segundo, além de exposição contínua e disparador automático. Na tampa do corpo exibe dois botões, sendo um deles o disparador e o outro o desbloqueador da tampa do fole. Possui dois alvéolos para tripé, um na base do corpo e outro na tampa do fole, respectivamente para exposições em formato retrato e paisagem. Possui ainda na tampa do fole um pequeno suporte retráctil, destinado a manter a câmara erecta sobre uma superfície plana. Tem as dimensões de 90 x 120 x 110 (aberta) e 42 x 120 x 110 (fechada) milímetros, e pesa 548 gramas.
A seguir a um velho caixote Kodak da década de 1930, cuja tampa empenada deixava passar luz suficiente para inutilizar todas as fotografias, acelerando assim a sua passagem à reforma, esta foi a segunda câmara que o meu pai possuiu, comprada em Lisboa, em segunda mão, em meados dos anos 50. Um artista correeiro manufacturou-lhe um estojo em cabedal, sob especificações e modelo em cartolina concebido pelo meu pai. Andou pelas sete partidas do mundo, e na década de 1980 foi dada como perdida numa troca de bagagens, numa agitada viagem ao Cazaquistão, mas acabou por regressar à posse do dono, tanto a câmara como o respectivo rolo meio impressionado. Há perto de 15 anos que fez o último “click”.
Este modelo ENSIGN Selfix 16-20 surgiu no mercado em princípios da década de 1950. É uma câmara de rolo 120, com 16 exposições em formato de 6 x 4,5 centímetros, vocacionada para amadores, logo detentora de características modestas, muito embora apresente uma esmerada construção e óptimos acabamentos cromados. O fole retráctil aloja-se num corpo metálico, que se abre na totalidade, pela parte traseira, para carregamento e remoção do rolo. Possui uma pequena janela para controlar o avanço da película, o qual é accionado manualmente, através de um rotor metálico no topo do corpo, ao lado do visor. O conjunto óptico Épsilon está equipado com uma lente Ensar Anastigmat de 75 milímetros, que permite a utilização de aberturas de diafragma entre 4.5 e 22. Aceita fotografar um objecto entre a distância de 1,5 metros e o infinito, e o disparador requer que seja previamente armado. Tem velocidades de obturador de 1/1, 1/2, 1/5, 1/10, 1/25, 1/50, 1/100, 1/300 avos de segundo, além de exposição contínua e disparador automático. Na tampa do corpo exibe dois botões, sendo um deles o disparador e o outro o desbloqueador da tampa do fole. Possui dois alvéolos para tripé, um na base do corpo e outro na tampa do fole, respectivamente para exposições em formato retrato e paisagem. Possui ainda na tampa do fole um pequeno suporte retráctil, destinado a manter a câmara erecta sobre uma superfície plana. Tem as dimensões de 90 x 120 x 110 (aberta) e 42 x 120 x 110 (fechada) milímetros, e pesa 548 gramas.
A seguir a um velho caixote Kodak da década de 1930, cuja tampa empenada deixava passar luz suficiente para inutilizar todas as fotografias, acelerando assim a sua passagem à reforma, esta foi a segunda câmara que o meu pai possuiu, comprada em Lisboa, em segunda mão, em meados dos anos 50. Um artista correeiro manufacturou-lhe um estojo em cabedal, sob especificações e modelo em cartolina concebido pelo meu pai. Andou pelas sete partidas do mundo, e na década de 1980 foi dada como perdida numa troca de bagagens, numa agitada viagem ao Cazaquistão, mas acabou por regressar à posse do dono, tanto a câmara como o respectivo rolo meio impressionado. Há perto de 15 anos que fez o último “click”.
Missal de Bolso
Este “Livro da Missa e da Confissão, com os Officios dos Domingos e Principaes Festas do Anno”, não é propriamente uma miniatura, mas ainda assim mede uns escassos 120x90x30 milímetros, o que o inclui na classe dos livros de bolso. Tem uma encadernação rígida em marfim, dois fechos do mesmo material, e a capa está ornamentada com uma cruz finamente esmaltada. Tem 635 páginas impressas em papel bíblia, com ilustrações alusivas à função, e três iluminuras. Chegou até mim, no meio de outras bagatelas, por via das heranças de devotos antepassados. Está datado de 1857, o mesmo ano em que irrompeu em Lisboa uma epidemia de febre-amarela, tendo morrido mais de 5.000 pessoas, entre perto de 17.000 contaminadas, e em que são instauradas as primeiras Sopas Económicas. Foi composto e impresso na antiga Casa Morizot, Laplace, Sanchez e Cª, Editores, 3, Rua Séguier, em Paris, sendo “uma edição feita sobre a do Prior d’Abrantes”, e foi “revista, emendada e augmentada por um Lente em Theologia, tendo sido approvada por (José) S.E.R. o Arcebispo primaz de Braga”. Já lá vão 149 anos.
sábado, abril 15, 2006
Admirável Mundo Novo (*)
(*) No original, Brave New World foi um romance publicado em 1932, da autoria do escritor inglês Aldous Huxley, onde se prenunciava uma sociedade biológica e psiquicamente manipulada, e onde os resistentes eram classificados como anomalias, destinados a viverem e serem exibidos em “reservas históricas”. O empréstimo que faço daquele título, serve apenas para legendar algumas situações preocupantes com que temos sido brindados nos últimos dias.
Como se já não bastasse a condenação do uso do preservativo, da interrupção voluntária da gravidez, do divórcio, da homossexualidade, da teologia da libertação, da leitura de José Saramago ou do “Código de Da Vinci” de Dan Brown, também agora um excesso de leitura de jornais, navegação na Internet e consumo de programas de televisão, em alternativa à leitura da Bíblia, constituem pecados de reporte obrigatório no acto da confissão. Eis, portanto, os mais recentes pecados enunciados pelo Vaticano, empenhado numa nova cruzada pontifícia, desta vez contra a sociedade do conhecimento e da informação. Não é por acaso que o cardeal Joseph Ratzinger, actual Papa Bento XVI, foi durante muitos anos o prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, herdeira directa dos obscurantistas Tribunais do Santo Ofício, o braço justiceiro da ignóbil Inquisição, a tal que até confundia ataques de epilepsia com possessão demoníaca. Agora, instalado no trono de S.Pedro, está empenhado em fazer cumprir, com rigor e determinação, a sua missão evangelizadora e rectificadora, para benefício do admirável mundo novo que se anuncia, reacendendo nos espíritos, os medos e a santa ignorância dos tempos medievais.
O senhor Van Zeller, o honorável e deplorável presidente da CIP (Confederação da Indústria Portuguesa), diz-se um homem “moderno”, adepto das “novas realidades”, da “competitividade”, inimigo do “proteccionismo parasitário e paralisante” do Estado e do modelo obsoleto, caduco e cadavérico das sociedades que tinham o primado do social. Quanto à “utopia do trabalho estável”, uma velharia do passado, é coisa a que se torna urgente fazer o funeral. Animado destes princípios, não subscreveu as novas regras de atribuição do subsídio de desemprego, e fez questão de afirmar que os cursos de formação da Segurança Social apenas servem para os desempregados, em vez de andarem a catar/arranjar trabalho, terem um pretexto para saírem de casa de manhã, e só voltarem à noite. Fala assim, talvez com saudades do que acontecia há anos atrás (pode-se recuar 40 anos ou mais), quando outros desempregados saíam de casa de manhã e nunca mais voltavam. Acções de formação, requalificação profissional e aquisição de novas competências, são expressões ausentes do seu vocabulário. Este senhor é o mensageiro de um admirável mundo prenhe de “modernidade”, empenhado em recuperar as doutrinas que elegeram o desemprego como uma força de trabalho de reserva, indispensável à satisfação das necessidades do capitalismo guloso e todo-poderoso.
Neste país em que os trabalhadores são sistematicamente acusados de serem os principais protagonistas da endémica crise económica, porque seriam absentistas, pouco produtivos e demasiado reivindicativos, deixando ilesos os patrões incumpridores, pouco dinâmicos e eficazes, com baixa iniciativa e visão empresarial, a bandalheira nacional fez questão de chegar à Assembleia da República. Indiferentes ao facto de os exemplos virem de cima, acabando os seus actos por se reflectirem nos comportamentos da sociedade, no dia 12 de Abril, da totalidade de 230 deputados, não estiveram presentes 120, provocando falta de “quórum” e inviabilizando os trabalhos parlamentares. No entanto, antes de se ausentarem para umas férias da Páscoa alargadas, muitos dos faltosos fizeram questão de assinar o livro de presenças, qual patética manobra de ocultação, para garantirem o vencimento e a reforma. O admirável mundo novo tem destas coisas: para uns há bons vencimentos, mordomias, horário mais que flexível, e uma reforma dourada ao fim de alguns anos, sem abrir a boca nem mexer uma palha, bastando levantar o braço de vez em quando, dando a ideia que estão a fazer coisas importantes para os outros, quando de facto estão a cuidar de si próprios; para outros, sejam eles gente com saber e experiência adquirida a pulso, que vai caindo nas malhas do desemprego, sejam outros que passam meia vida a respigar migalhas nos trilhos da sobrevivência, apenas a referência de que são números para alimentar as estatísticas e outras manobras evasivas, bodes expiatórios para todo o serviço, senão mesmo o papel de eternos maus do filme.
Marcar com o ferrete do anti-social, senão mesmo com a marginalização, alguns comportamentos menos ortodoxos, foi comum noutras épocas, prática que a lenta conquista e progressão dos direitos humanos acabou por banir. Não há muito tempo, ainda vigoravam disposições, que consideravam legítimo retirar às mulheres a sua pensão de viuvez, caso se suspeitasse que viviam em mancebia ou exibiam porte escandaloso. O bom senso e a humanização encarregaram-se de separar as águas, passando a reconhecer que a quebra de um dever não corta o acesso ao usufruto do direito. Ninguém pode ser privado dos seus meios de subsistência, por ter uma conduta ou comportamento socialmente reprovável, tal como alguém que tenha cometido um crime, não pode ser privado do direito de se defender.
Entretanto, a justiça portuguesa achou por bem dar um ar da sua graça, ao voltar a inscrever em alguns dos seus acórdãos, a retoma de ideias defendidas em tempos passados, e que entretanto, por força da evolução das sociedades, tinham passado à história. Entre elas conta-se o reconhecimento da legitimidade de usar (brandos) castigos corporais sobre crianças deficientes (imagine-se os que se poderão aplicar às crianças normais), que os abusos sexuais são mais graves entre homossexuais que entre heterossexuais, que o homicídio de um cônjuge poderá ser objecto de uma sentença atenuada, caso a vítima tivesse comportamento adúltero, ou que a morte de um filho, tem mais significado, valor e impacto no agregado familiar, do que se ocorrer com uma filha. Que admirável mundo novo é este, que volta a recuperar os conceitos mais retrógrados e anti-pedagógicos, que tinham na chibata e no cavalo-marinho, os instrumentos por excelência da disciplina, da educação e instrução? Que admirável mundo novo é este que julga actos reprováveis, não pelos actos em si, mas na base de preconceitos? Que admirável mundo novo é este que, em função do sexo, estabelece preços diferentes para a vida humana, uma coisa que era suposto não ter preço?
A fronteira que separa a sociedade desejável da indesejável, é bem mais ténue do que se imagina. Tem muito a ver com o instinto de sobrevivência, a capacidade que o ser humano tem para se adaptar a novos preceitos e constrangimentos, aceitando-os como bons, sem aferir nem questionar o seu significado, ignorando que são sinais negativos que vão sitiando as sociedades e cerceando os direitos humanos. Não percebe que está a ser narcotizado com ideias simples na forma, mas perversas no conteúdo, que pretensamente querem fazer crer que se está a progredir, quando na realidade se está a regredir.
domingo, abril 09, 2006
Curtas Metragens
Enquanto foi presidente da república, Jorge Sampaio tinha por costume manifestar-se, umas vezes emocionado, outras vezes preocupado, quando alguma coisa corria mal nas vielas do país ou nos becos da governação. Nos últimos dias, já regressado à sua condição de vulgar cidadão, perante a ocorrência de novos acontecimentos, neste caso o repatriamento de portugueses, emigrantes ilegais no Canadá, subiu um ponto na escala apreciativa, e declarou-se perturbado, estado que é suficiente para tirar o sono a qualquer um. Conclusão: dentro do Palácio de Belém o país é uma coisa, e cá fora é outra.
Eu não acredito, mas a justiça portuguesa acreditou. A senhora Fátima Felgueiras tem um passaporte brasileiro, que funciona como uma espécie de colete salva-vidas, caso os tribunais portugueses a voltem a “injustiçar”. É quase certo que servirá para lhe abrir as portas da liberdade, de que não prescinde, para defender a sua inocência, como costuma dizer. Sabedora disso a justiça pediu a sua devolução, porém tal não é possível, para já. Diz a senhora Fátima que se esqueceu daquele valioso passaporte, no seu refúgio brasileiro, com a precipitação do seu regresso a Portugal, coisa imperdoável numa pessoa tão calculista e bem aconselhada. Apesar disso, comprometeu-se a mandá-lo vir e a entregá-lo ao tribunal. Mesmo que fosse verdade, é sabido que enquanto o passaporte vai e vem folgam as costas. A desculpa e a promessa foram aceites como boas, não tendo sido agravadas as medidas impostas à dita senhora, arguida em vinte e tal acusações, e já com um antecedente de fuga à justiça. Aguardam-se os próximos episódios.
Com as suas 333 medidas desburocratizantes, o SIMPLEX, é no mínimo, extraordinariamente COMPLEX.
A CIDADE SUPREENDENTE é um blog que nos permite realizar uma esplêndida visita guiada à cidade do Porto, recheado como está de belas e elucidativas reportagens fotográficas. Diz o seu autor (imagino que seja fotógrafo apaixonado) que “é cada vez mais difícil fotografar, há proibições a torto e a direito. Umas fazem sentido, outras são absolutamente idiotas, sobretudo quando se trata de bens públicos” … “Acho que, frequentemente, os agentes do Estado se apropriam indevidamente das coisas públicas, confundindo a guarda com a posse.”
Pois é, o grande mal desta terra talvez seja haver tantas coisas para serem partilhadas, mas prevalecer o recurso abusivo à usucapião.
Entrei ontem no blog SABER A VERDADE, gostei e aconselho uma visita demorada. Muito embora a soma aritmética das verdades nunca chegue à VERDADE, é garantido que andará lá perto.
Há uns anos atrás conheci um intelectual que pôs termo à vida quando concluiu que se estava a travar uma guerra sem quartel, entre filósofos e psicólogos, pela possessão dos espíritos humanos, e que os segundos iriam levar a melhor sobre os primeiros.
Acho que o mundo actual está cada vez mais parecido com um grande centro comercial, em que as lojas exibem para os incautos, grandes montras com as delícias do paraíso, enquanto que os armazéns escondem um arsenal dos diabos.
Dizem que o mundo mudou, e que alguns sectores das sociedades são incapazes de assimilar certas mudanças. Mas será que o mundo mudou assim tanto, e de forma tão substancial, ou não estaremos a rever o mesmo filme contado de outra forma? Em Maio de 1968 a juventude francesa trazia a revolução para a rua e reivindicava a mudança, para sair da cepa torta. Hoje, quase quarenta anos depois, a revolta da juventude volta às ruas de França, aliada a sindicatos e partidos de esquerda, exigindo a congelação da tão apregoada e novíssima mudança, que os está a fazer regressar à velha cepa torta.
“O grave do medo não é que se tenha, mas que se sucumba ante ele”. É com pensamentos como este que o juiz Baltazar Garzón continua a viver o seu quotidiano.
Quando olho para a Guernica de Pablo Picasso lembro-me sempre que a memória é fraca e só a arte perdura.
segunda-feira, março 27, 2006
Miniaturas
A miniaturização não é apenas um fenómeno dos séculos XX e XXI. Já no século XIX se produziam missais como este, datado de 1856, ano da inauguração do primeiro troço de caminho de ferro, entre Lisboa e o Carregado, e da concessão da liberdade a todos os escravos que desembarcassem em Portugal continental, Ilhas adjacentes, Índia e Macau. Tem as modestas dimensões de 68x48x16 milímetros (compare-se com os dicionários Lilliput ou com a moeda de 2 Euros), que dava para dissimular no cano das botas ou entre os punhos de renda, encerrando 255 páginas de católica e piedosa devoção. A capa é rígida e está decorada com a figura de um doutor da igreja, embutida numa filigrânica moldura oval. Está recheado de gravuras alusivas à missa e tem a protecção de um irrepreensível fecho dourado, feito de um metal indestrutível (será latão?), da mesma estirpe da moldura da capa. Com a idade de 150 anos (chegou até mim através de várias e parcas heranças), este Manual abreviadíssimo da Missa em português (e não em provecto e obscuro latim), foi compilado pelo presbítero J.-I. Roquette, editado e impresso pelos livreiros Aillaud, Monlon & Cª., com sede na Rue S.-André-des-Arts, 47, em Paris.
domingo, março 19, 2006
A França não Dorme
Não parece, mas de tempos a tempos a França acorda. Anteontem foi a França da Revolução, da tomada da Bastilha, dos Estados Gerais, do Directório e do terror. Ontem, há quase quatro décadas atrás foi a França do Maio de 68, e hoje continua a não ser uma França qualquer: é a França que ainda há pouco rejeitou a Constituição Europeia de cariz neoliberal, e agora a França dos estudantes, aliados aos sindicatos e às forças políticas de esquerda, que fazem frente a uma legislação que quer deixar a juventude que acede ao mercado de trabalho, sujeita à mais dura e despudorada precariedade.
Voltam a despovoar-se as universidades, as ruas a transbordarem de estudantes e a contestação e propagar-se do Quartier Latin aos quatro cantos do país. Diz o governo que os contestatários não passam de um punhados de esquerdistas, de holligans e de vadios. O governo diz que está a fazer isto tudo para o bem das novas gerações, a acautelar o seu futuro, portanto, tenham paciência e muito juízo, caso contrário levam…
Porém, os franceses já perceberam que isto é o capitalismo puro e duro, guloso, desavergonhado e sem freio, a reeditar a cartilha novecentista da revolução industrial, que levantava monopólios e aferrolhava fortunas colossais, à custa da constituição de imensos exércitos de reservistas desempregados. O mundo mudou, porém, mau grado as lições do passado, o capitalismo continua igual a si próprio. E o poder político vai pelo mesmo caminho, renovando e reforçando o mesmo tipo de ligações amásias e perigosas com as gentes do capital e da finança, os tais para quem o pior dos outros é sempre o melhor para eles. Para enfrentar a revolta e o descontentamento, põem-se as polícias na rua, amanhã talvez a tropa, a tal que deixou de ser instituição nacional e passou a ser voluntária, para não dizer mercenária. E mundo continua a mudar, se calhar para pior, mas nós continuamos alegremente distraídos. A França não dorme, mas nós parece que sim. Pode faltar dinheiro para tudo e mais alguma coisa, mas nada se regateia para equipar os corpos especiais das polícias de choque, bem comidos, bem pagos, bem montados, bem couraçados, bem armados e bem treinados, para reporem uma ordem, que de democrática vai tendo cada vez menos. Temos andado distraídos, embalados nos nossos brandos costumes, mas em Portugal passa-se o mesmo que pelo resto da Europa e do Mundo. Durante o Euro 2004 já tivemos uma demonstração do super-equipamento das polícias anti-motim. Não faltará muito tempo que experimentemos no lombo, o que de lá até cá, veio reforçar as “forças da ordem”. A bem da ordem e da nação.
Autoridade à Portuguesa
Francisco Van Zeller, presidente da Confederação da Indústria Portuguesa, disse com todas as letras:
- Adoro governos autoritários, não me afligem absolutamente nada.
Quem assim fala, é fácil perceber de que lado está, e não é, certamente, do lado da democracia. Quem assim fala, sabe o que quer, e sabe escolher o momento de começar a deitar as unhas de fora. Os portugueses, sobretudo os de curta memória, que se cuidem! Portanto, assentemos ideias e abramos os olhos.
Um homem autoritário, é uma coisa. Em princípio, não passa de um ditadorzeco singular, que aqui e ali, poderá ir destilando as suas exigências e criando desassossego, mas pouco mais será do que isso. Porém, um governo autoritário é algo de diferente, e por sinal bem pior, pois qualifica o órgão de governação de um país, sendo suposto que exerce o poder sobre todo o povo, e se for despótico e prepotente, é certo que arrastará consigo as mais inesperadas e inevitáveis consequências.
Samba à Portuguesa
Contrariando os pareceres dos serviços do seu ministério, o secretário de estado das comunidades, António Braga, deslocou-se ao Brasil, ele e a sua equipa, em “missão de estado”, para apaziguar um diferendo entre o consulado português e o Arouca São Paulo Clube, uma organização de emigrantes portugueses, que por sinal tinha um denso programa de festas, na semana em que o fogareiro carnavalesco estava ao rubro. O caso devia ser deveras grave, para exigir a presença de tão proeminentes personagens, mas afinal parece que também estavam previstos alguns contactos com autoridades locais, os quais primaram pela compreensível descoordenação e desencontro, atendendo às fogosas festividades em curso, confirmando que a folia não é compatível com contactos bilaterais. No ar fica mais uma dúvida: será que o governante e seus assessores foram até às terras de Vera Cruz para apagar o tal fogo que grassava na comunidade portuguesa, ou tratou-se de mais uma surtida suportada pelo erário público, destinada a espreitar, ao vivo e em directo, os delírios do Carnaval carioca? Embora sabendo que esta diligência era desaconselhada e estava condenada ao fracasso, o senhor Braga não desistiu do seu devaneio, talvez porque sendo Carnaval e estarmos em Portugal, é costume ninguém levar a mal…
quarta-feira, março 15, 2006
Adeus TRRRIM, TRRRIM …
Esta é a transcrição de uma carta que enviei à PT COMUNICAÇÕES, na sequência de mais um mau serviço aos clientes, à comunidade e ao país, sentido na pele. Será que o nervosismo (verdadeiro ou simulado, o tempo o dirá) desencadeado pela OPA, é a causa de tanta negligência e desnorte? Não, não é! A PT habituou-se, ao longo das décadas, a tratar os clientes como uma maçada que se deve despachar com duas pedras na mão, ou sacudir com desdém, quais limões que devem ser espremidos e enganados sem contemplação, sem direito a desculpas, mesmo quando têm razão.
“Exmos. Senhores:
Serve a presente para vos comunicar que, a partir do corrente mês de Março, prescindo dos vossos serviços, relativos ao fornecimento de rede fixa. Passo a especificar as minhas razões, em número de três (3), a saber:
1) De há uns meses a esta parte, e apesar de sempre ter informado que estava satisfeito com o actual prestador de serviços (XPTO), fui sistematicamente assediado e incomodado com contactos por escrito e via telefone, de pessoal da PT, no sentido de aderir aos vossos serviços e tarifas;
2) Bisando uma situação já ocorrida em 2005, no passado dia 3 de Março deixei de poder efectuar e receber chamadas pela rede fixa, muito embora o meu telefone tocasse quando alguém me pretendia contactar. Solicitei a intervenção da XPTO, a qual, após várias esforçadas diligências, me informou que o problema tinha origem na PT. Esta situação manteve-se até à tarde do dia 9 de Março (6 dias sem telefone), altura em que um funcionário da PT telefonou a informar que o problema já estava solucionado, explicando que umas obras teriam afectado a linha, justificação que dificilmente se aceita, dado que em modo de recepção o telefone tocava, muito embora não houvesse comunicação. Quando manifestei ao técnico a minha incredulidade por tal corte se ter arrastado durante 6 dias, e apenas me ter afectado a mim, o mesmo exibiu alguma admiração;
3) Nesse mesmo dia 9 de Março recebi uma Factura Nº. 99999999 da PT, relativa ao mês de Fevereiro de 2006, na qual me eram indevidamente debitados € 20,937 de comunicações, ao passo que a XPTO, para o mesmo período, me debitou, muito correctamente e como lhe competia, € 17,63 por essas mesmas comunicações.
Naturalmente, apressei-me a cancelar junto do banco respectivo a autorização de débito directo que possuía para as facturas apresentadas pela PT Comunicações, pois não tenho por hábito pagar contas em duplicado.
Para confirmação do que atrás referi, junto fotocópias de ambos os documentos citados.
Apenas uma nota final: a PT Comunicações deveria ser tão diligente a tratar os seus clientes como trata os seus accionistas.
Nesta conformidade, e como referi no primeiro parágrafo, insisto em prescindir dos vossos serviços, ficando o aparelho telefónico à vossa disposição para ser recolhido na morada abaixo, quando muito bem entenderem. Sem outro assunto, subscrevo-me.”
segunda-feira, março 06, 2006
Farsas
José Sócrates diz que aquela sua iniciativa, é o máximo que a solidariedade humana podia ter engendrado. Eu digo que não, e para o provar aí está a entrevista que o Primeiro-ministro deu, onde tentou dourar uma pílula prenhe de propaganda e nula de consequências. O subsídio complementar de pobreza na velhice, com toda a sua panóplia de documentos burocráticos que o candidato tem que apresentar, é a súmula máxima da crueldade deste estado pseudo-social. Imaginem um solitário e carente octogenário, com relações familiares conflituosas ou inexistentes, ignorado, solitário, entregue às pequenas tarefas da sobrevivência, quase incapaz de se deslocar, afectado por aquela timidez e acanhamento próprio de quem se sente marginalizado, condição que o leva a escolher a invisibilidade e o silêncio, amparado à bengala, a calcorrear repartições para requerer atestados de pobreza, a preencher formulários, a querer apensar fotocópias de declarações de impostos que nunca chegam, enfim, a tentar provar que não tem onde cair morto. Este estado socialista, como de socialista só tem o nome, faz os velhotes passarem vergonhas, obrigando-os à humilhação de exibirem o abandono a que foram votados, ou a penúria dos seus descendentes, dá uma esmolinha aos que se sujeitam a levar o calvário até ao fim, e nos restantes casos põe-se de fora, satisfeito com a sádica tarefa de levantar barreiras ao elementar direito de sobreviver com alguma dignidade, na última etapa da vida.
Em vez de providenciar que as regras básicas do código da estrada e do comportamento cívico comecem nos bancos do ensino primário, em vez de exigir excelência e rigor nos exames de condução, em vez de pôr em acção mecanismos adequados para pôr um ponto final no comércio escandaloso da venda ao desbarato de licenças de condução, o governo quer impor o uso de limitadores de velocidade, nos veículos conduzidos por pessoas com carta há menos de dois anos. O governo, mais uma vez, na sua ânsia, ignorância e incompetência, quando não sabe, engendra, convencido que inventou a roda. Começa por não saber o que é um limitador de velocidade (não é um parafuso a travar o curso do acelerador), e não faz ideia de como e quem irá providenciar a fiscalização de tais dispositivos. Sem os tradicionais recursos policiais para cobrir adequadamente o espaço rodoviário do país, tudo isto tem a pretensão de travar a carnificina nas estradas portuguesas, que está provado, não é, tendencialmente, um problema dos traçados das vias, nem que se solucione com a limitação das aptidões dos veículos, mas sim com a moderação e civilidade de quem os conduz.
Por outro lado, Ricardo Almeida, deputado do PSD, é useiro e vezeiro em ultrapassar os limites de velocidade por esse país fora, qual lusitano Speedy Gonzalez, sem que nunca tenha pago uma única multa. Diz ele que tais excessos se devem ao facto de ser um político que gosta de cumprir horários. Todos somos portugueses, mas há uns que são portugueses pontuais, enquanto que outros são portugueses atrasados. Este argumento tem deixado sensibilizado até às lágrimas, quem lhe vai perdoando as acrobacias rodoviárias, provavelmente apoiado noutros precedentes, ocorridos com figuras do poder judicial, que deram como justificação para o facto de serem interceptados a velocidades proibitivas, razões e compromissos do foro jurídico, mas que afinal não passavam do anseio de chegar a tempo e horas a uma boa patuscada.
O ministro Jaime Silva, confrontado com perguntas sobre as precauções que devemos tomar com a gripe aviária, apesar de ter enunciado certas cautelas, fazendo alguma pedagogia sobre o assunto, acabou por estragar a intervenção, rematando com a confissão de que não dispensa o seu franguito assado, iguaria que aprecia. Se o vírus morre à temperatura de 70 graus, ficamos sem saber o que é mais seguro, se frango assado como o ministro gosta (na versão a carvão a temperatura do pitéu não chega aos tais 70 graus), galinha de fricassé ou canja de miúdos. Preocupado em desdramatizar o problema, mas esquecido da prudência que o caso exige, acabou por fazer uma triste figura, fazendo lembrar um outro ministro, apanhado a comer mioleira, com grande sofreguidão, na época em que a BSE começava a grassar em Portugal, e que disse não haver nada que o desviasse de deleitar-se com tal manjar.
Para avançar com a OPA sobre a Portugal Telecom, Belmiro de Azevedo vai utilizar os serviços de uma subsidiária holandesa, tirando partido das isenções de impostos que aquele país oferece nestas operações financeiras, pondo assim os seus interesses à frente do aconchego que tal maquia traria às finanças públicas de Portugal. Deste modo, vão deixar de entrar nos cofres do Estado português qualquer coisa como 57,5 milhões de euros relativos a imposto de selo, mais o pagamento de imposto sobre mais-valias e dividendos, bem como a retenção na fonte de juros bancários. Isto é capitalismo, puro e duro, sem olhar a quem.
Lembro-me de o patrão da Sonae ter dito, certa vez, que para enfrentar o Estado ávido de impostos, independentemente do dinheiro, dos assessores e advogados, e da perseverança que era preciso mobilizar, era preciso ter-se coluna vertebral. Porém, agora neste caso, em particular, vai também ser preciso assumir-se um nadinha menos patriota, economicamente falando, claro está.
O presidente Sampaio tem andado a despedir-se da função que ocupou durante uma década. Acabou a distribuir condecorações, entre muitas outras, por tudo o que apareceu, pelo menos uma vez, nos jornais, nas televisões, nos palcos e nas passerelles da moda. Passe a comparação, seguiu o exemplo do Papa João Paulo II, que se sentiu na obrigação de beatificar e santificar, todos os pretendentes que constavam dos processos pendentes, pelos corredores do Vaticano. Na última sessão fez questão de agraciar alguns jornalistas, gesto que apreciei sobremaneira, porque são eles que nos transmitem informação, conhecimento e não só. Só não percebi porque os apelidou, sem mais nem menos, de Pais da Pátria, porque, para mim, Pais da Pátria, continuam a ser os nossos egrégios avós, como aquele brutamontes do D. Afonso Henriques, o ínclito D. João I, o imortal Luís de Camões, os ousados conjurados de 1640, e um tão modesto quanto grande patriota de nome Salgueiro Maia.
sábado, março 04, 2006
O Nove de Março
Todo emproado, de fatinho novo, gravata berrante e cabelo empastado, a tresandar a autarca com ligações à construção civil e ao futebol regional, entra afoito na empresa de aluguer de automóveis, distribui sorrisos e cumprimentos, e dispara em voz alta para a funcionária:
- Oh menina, isto é urgente! Estou interessado em alugar uma limãosine, com motorista, para ir à tomada de posse do meu presidente.
- Peço desculpa mas limousines já não temos, foram todas requisitadas, articula a empregada, num sussurro.
- Oh menina, mas eu sou um dos 2000 felizes contemplados com direito a assistir à cerimónia…
- Pois, tenho muita pena, mas como lhe disse, não há limousines, logo não o posso ajudar…
- Ora, não está nada perdido! Cá por mim até prefiro que seja uma larangine, e na pior das hipóteses, serve uma tangerine.
quinta-feira, fevereiro 16, 2006
Cóleras e Sorrisos
Tenham sido ou não uma provocação, destinadas a testar a capacidade de resposta dos muçulmanos, as famigeradas caricaturas dinamarquesas (na minha opinião, com um tema venenoso e de mau gosto), acabaram por trazer um benefício: voltar a pôr na ordem do dia, um problema que sempre se tem mantido em aberto. Quais são os limites da liberdade? O que é isso da liberdade com responsabilidade? Qual a fronteira entre liberdade plena e tépida condescendência? Será proibido proibir? Uma coisa é certa: quando os usos e abusos da liberdade se movimentam no plano cívico, mais pontapé, menos pontapé, mais queixa, menos queixa, o problema resolve-se. Porém, quando as religiões entram em cena, quando os púlpitos e as mesquitas se transformam em locais de desassossego, o caldo fica entornado.
Por caminhos ínvios andam as religiões, quando entronizadas de poder, visam impor os seus códigos de conduta, preceitos e regras, sabendo que a humanidade, tanto física como espiritualmente, se alicerça na diversidade. Mal vão também os políticos ditos laicos, que se dizem grandes e zelosos campeões das liberdades de expressão, quando assustados com a violência desencadeada, verberam contra os excessos de liberdade e a “irresponsabilidade” dos artistas do humor. Eu que sou agnóstico, costumo condescender e temperar estas situações com um pensamento: Se Deus, ao dar liberdade ao homem, permitiu que ele cultivasse a crítica, a comédia e a licenciosidade, é porque não estava muito interessado em que o homem respeitasse, sem vacilar, a sua intocabilidade e honorabilidade, dando razão a Albert Camus, quando disse que talvez sejamos mesmo livres e responsáveis, o que faz com que Deus não seja todo-poderoso. Apesar de tudo, é o que se sabe: os homens entenderam tornar-se, nuns casos, mais papistas que o Papa, noutros, mais puros que o próprio Profeta. Salman Ruschdie sofreu uma “fatwa” (decreto corânico) em 1989, que o condenava à morte, lançada pelos hayatolas iranianos, por ter escrito e publicado os seus VERSÍCULOS SATÂNICOS, tendo vivido largos anos na clandestinidade. Quanto ao Prémio Nobel José Saramago, foi anatemizado pelo Vaticano e vetado como candidato a um prémio literário, por um certo Lúcio Lara, subsecretário de estado da cultura português, quando escreveu e publicou o seu EVANGELO SEGUNDO JESUS CRISTO. Já o filme EU VOS SAÚDO, MARIA de Jean-Luc Godard, esteve impedido de ser exibido, ao passo que A ÚLTIMA TENTAÇÃO DE CRISTO de Martin Scorcese, enfrentou reacções hostis de múltiplos quadrantes, sobretudo católicos, prolongando-se até há muito pouco tempo, em alguns países, a proibição da sua exibição. Foi preciso surgir em 2002 uma adaptação cinematográfica d’O CRIME DO PADRE AMARO, romance de Eça de Queirós, editado pela primeira vez em 1875, e que explorava as consequências do celibato sacerdotal, para que os espíritos ficassem ao rubro. Antes mesmo do início das filmagens no México, já lavrava muita polémica, onde vários grupos de inspiração católica, tentaram por todos os meios impedir a sua realização. E isto é só para falarmos de alguns casos recentes, deixando de lado as mordaças impostas pelas mesas censórias e os autos de fé da Santa Inquisição, ou as colossais fogueiras alimentadas, na época do Califado, com os papiros, ditos heréticos e blasfemos, guardados na biblioteca de Alexandria.
A questão central destas confrontações não é uma luta entre culturas e civilizações, mas sim um braço de ferro entre o laicismo e o fundamentalismo religioso, entre a realidade e a superstição, entre a tolerância e a intransigência, entre uso da liberdade de expressão, fundamento das democracias, e algumas listas (umas mais extensas que outras) de restrições ao seu exercício. Embora eu respeite todas as religiões, e entenda que no contexto histórico, todas elas são responsáveis por diferentes modelos civilizacionais, também reconheço que, tanto podem amplificar como embotar os sentidos e a clarividência dos povos, tornando-se factor de perturbação e dando origem a situações bem pouco concordantes com a sua missão. Ao longo dos tempos, os provocadores, seja a que quadrante pertençam, sabem como usar qualquer pretexto, no caso o religioso, para ressuscitarem medos e preconceitos. Porém, as pessoas, seja a que quadrante pertençam, também são suficientemente inteligentes e sagazes, para saberem distinguir o essencial do acessório, desprezando e ignorando as provocações brandidas por agitadores, sejam eles supostos agressores ou pretensos ofendidos, deixando que elas se extingam como fogos fátuos. Sobre o planeta haverá sempre uns mais sisudos, e outros mais liberais, e nem todos os estômagos aceitam digerir as mesmas comidas. Dou um exemplo: ainda há dias a VISÃO publicou uma caricatura do Rui, onde a bandeira portuguesa aparecia confundida com o logótipo do Windows da Microsoft, parodiando os acordos que Sócrates estabeleceu com Bill Gates. Haverá quem veja nisto apenas uma colagem e um gracejo bem conseguidos, assim como haverá também quem veja no desenho, uma insuportável afronta ao mais carismático dos símbolos nacionais. O objectivo da caricatura é exactamente esse. Há que desfigurar a realidade, carregando-a de contrastes e cores fortes, em suma, há que ser mordaz, provocar o choque, pisar o risco, espicaçar os espíritos, subverter as normas e os cânones, para que a crítica e o anedótico atinjam o alvo e surtam efeito.
Cristo e o Vaticano, o Profeta e o Islão, Moisés e a Sinagoga, ou os ensinamentos do venerável Buda, isto para só falar das principais religiões, podem ficar descansados! Não serão caricaturas, afinal expressões do efémero burlesco, venham de que lado vierem, que calarão as fés e as convicções religiosas. Todas as pirotecnias que visam incendiar os espíritos e os sentidos, podem ser acirradas e instrumentalizadas, mas como todas as cóleras, se as remetermos para o seu verdadeiro lugar, apagar-se-ão por falta de combustível, e no fim, poucos vestígios sobrarão.
Com a criatividade temporariamente inquinada, gostei de ver que os dramas e turbulências provocados pelas caricaturas, tivessem sido superados com a realização de um torneio de desenhos humorísticos (embora, na minha opinião, novamente orientados para um tema de mau gosto), desta feita desencadeado pelo lado muçulmano, para ver quem possui maior grau de acidez e acutilância. Direi mais: tudo devia ter começado por aí, com as ofensas a dirimirem-se com canetas, pincéis e tinta-da-china, e não com o habitual folclore das bandeiras queimadas e das embaixadas vandalizadas, mais um punhado de políticos a acotovelarem-se e a colarem-se aos acontecimentos, tentando facturar prestígio e visibilidade. Agora, das duas uma: ou os alvos atingidos vão reclamar ruidosamente, ou todos vão ficar calados como homenzinhos mal comportados. A frio, e quando há culpas mútuas no cartório, o silêncio não é de ouro, mas de chumbo.
quinta-feira, fevereiro 09, 2006
GRANDE e simples
Lisboa, Praça de Londres. Estátua de Guerra Junqueiro, grande poeta português (1850-1923), que nos deixou poemas de crítica social e clerical como A MORTE DE D. JOÃO, A VELHICE DO PADRE ETERNO, MUSA EM FÉRIAS, FINIS PATRIAE, A INGLATERRA, CANÇÃO DO ÓDIO, e outros de lirismo singelo como OS SIMPLES, ORAÇÃO AO PÃO e ORAÇÃO À LUZ.
Três Repúblicas
A instauração do regime republicano em Portugal está quase a fazer um século de vida, tendo sido marcado por três períodos, cada um deles com a sua identidade própria. É certo que o mundo evolui, as condições da sociedade de há cem anos não são as mesmas de hoje, a História não se repete, porém, a propensão para tropeçar em erros do mesmo tipo, continua a ser uma constante da natureza humana, sobretudo quando se fica indiferente ao capital de experiência acumulada. Por isso, convém recordar a advertência formulada por George Santayana, quando afirmou que se não tirarmos algumas lições do passado, corremos o risco de voltar a repeti-lo. Hoje, quase 32 anos depois da restauração da democracia com a Revolução do 25 de Abril, e quando há tantas vozes a apregoarem que o regime entrou em crise, seria útil, antes de propor a terapêutica, elaborar um diagnóstico, radiografando o nosso processo histórico, em busca das causas profundas para o nosso actual estado de desalento.
Bem vistas as coisas, sempre fomos melhores gastadores que investidores. Após o grande crescimento provocado pelos descobrimentos, iniciados no século XV com a dinastia de Avis, a riqueza gerada pelo comércio com as Índias e o Brasil, em que a coroa era o grande beneficiário e administrador, não teve uma aplicação notória, porque faltava gente preparada para gerir e multiplicar a riqueza. Demos novos mundos ao mundo, mas quem disso se aproveitou foram os outros, até que, pouco a pouco, e pelas mais variadas razões, acabámos em Álcacer-Quibir e anexados por Castela, abraçados a um “sebastianismo” redutor.
Sessenta anos depois, e apesar de restaurada a independência em1640, iniciou-se com Portugal um longo e lento processo de declínio, que se veio estendendo até aos dias de hoje. No reinado de D.João V, o ouro que vinha do Brasil foi usado para satisfazer a megalomania e a ostentação real, como a construção do convento de Mafra e a transformação do país numa espécie de palco de uma grande ópera sacra, em que a Igreja era o actor principal. As prioridades da realeza tinham muito a ver com os seus hábitos e desejos sumptuários, e nada a ver com a valorização e beneficiação do país. Excepção deste estado de coisas foi o reinado de D.José e do seu todo-poderoso ministro Sebastião José de Carvalho e Melo (Marquês de Pombal), cultor do despotismo esclarecido, que a par do reforço do poder régio, com a perseguição das vozes e poderes dissonantes, além de reconstruir a Lisboa mártir do terramoto de1755, se abalançou a modernizar o país, equipando-o com indústrias, das quais muitas foram sobrevivendo até aos nossos dias. Porém, eram também muitos os “estrangeirados”, como D.Luís da Cunha, Luís António Verney e outros, que viviam longe do provincianismo lusitano, das arremetidas da Inquisição e do cheiro a carne queimada dos autos-de-fé. Portugal era um deserto onde não havia políticos, nem economistas, nem educação, e os poucos homens de letras, sábios e cientistas que havia, apenas tinham oportunidade de trabalhar em relativa tranquilidade, obtendo estímulos e reconhecimento nos exílios forçados, longe do país, aliás, condição que continua a verificar-se nos dias de hoje, embora com outras motivações. Nos últimos 500 anos da sua história editorial, Portugal sofreu 420 anos de censura, iniciada com as reais mesas censórias e os autos-de-fé da Santa Inquisição, e a acabar nas rasuras do lápis azul dos Serviços de Censura do Estado Novo e nas apreensões da polícia política, concluindo-se que a publicação de livros em Portugal foi uma actividade cultural levada a cabo com uma taxa de repressão de 84 por cento. Isso explica porque é que os movimentos e as novas ideias que eclodiram além fronteiras, ou chegavam demasiado tarde, ou nunca chegavam, porque é que predominava o analfabetismo e se glorificava a ignorância e a pobreza de espírito, com as vidas ocupadas exclusivamente com a sobrevivência. Isso acaba por explicar também porque temos, na actualidade, 1 milhão de analfabetos, o que correspondente a 9% da população do país, isto sem contar com o analfabetismo funcional e a iliteracia, agravando-se o precoce abandono escolar, causa primeira da baixa qualificação da população e de um atraso congénito. Progressivamente, ia-se desinvestindo nas pessoas, deixando grassar a ignorância, a desqualificação, a boçalidade. Num país eminentemente agrícola, os portugueses limitavam-se a serem pagadores de impostos, arrebanhados aos campos, para as obras que entretanto se iam fazendo, ou para as toscas e indisciplinadas fileiras do exército, quando era preciso travar alguma guerra. Quanto aos outros, que por uma razão ou outra, ficavam fora deste esquema, que se amanhassem.
A primeira República, organizada à volta de um regime eminentemente parlamentar, durou perto de 16 anos e iniciou-se com a implantação da república no dia 5 de Outubro de 1910. Era uma época em que a monarquia, com o regicídio ainda fresco na memória de todos, tinha atingido o ponto mais alto do descrédito, tornando-se incapaz de gerir crises, encontrar soluções e consensos. Naquele dia, a instauração da república esteve a um passo de não se concretizar, por demasiado improviso e falta de coordenação. Quando os revoltosos republicanos, descrentes do sucesso, já debandavam às mãos cheias das barricadas da Rotunda, convictos que a sua aventura havia fracassado, porque o exército se demarcara do golpe e o seu comandante se suicidou, o impensável aconteceu: a família real, com as malas já feitas, decidiu, pelo sim, pelo não, abandonar Portugal, rumo ao exílio em Inglaterra. O poder não caiu na rua. A queda da monarquia acabou por ser uma das mudanças de regime mais pacíficas e indolores que se conhecem, chegando a instauração do novo regime a ser divulgado, nos locais mais recônditos do país, através do telégrafo. Entre incrédulo e atabalhoado, o impreparado aparelho republicano acabou por ocupar o vácuo criado, mas a ambição de poder era desmedida, de tal modo que, num curto espaço de tempo, o antigo grande Partido Republicado acabou por se pulverizar numa miríade de novos partidos, alguns deles bem insignificantes e quase nada representativos.
Desta primeira experiência republicana, em que o país de viu liberto de uma monarquia moribunda e ineficaz, ficou-nos um período algo turbulento, de ânimos exaltados, fruto de um novo regime que experimentava, pela primeira vez, o pleno usufruto do poder, muito embora os seus principais protagonistas já houvessem passado pelas instituições da monarquia constitucional. O aspecto mais marcante deste primeiro período republicano foi o extremo anti clericalismo, que culminou na expulsão das ordens religiosas e a nacionalização dos bens da igreja.
A monarquia havia negligenciado o estado educacional e cultural do país, em benefício de iniciativas de cariz material, como sejam a implantação da rede de caminhos-de-ferro e alguns troços de estradas. A monarquia preocupava-se com as coisas, ao passo que a república, pelo contrário, interessava-se pelas pessoas, criando o Ministério da Educação Pública, promovendo a instalação de centros de ensino e fazendo da disseminação da educação básica uma grande causa.
O excessivo peso institucional do Congresso na vida política do país, e uma permanente anarquia parlamentar, que fazia e desfazia governos entre surtidas monárquicas, arruaças bombistas, tiroteio, assassinatos e revoluções palacianas, foi a característica mais marcante da vida política da primeira república. Portugal era, entre os principais países da Europa, recordista em instabilidade parlamentar, presidencial e governamental, levando a que começasse a grassar o abstencionismo junto do eleitorado, não como censura ou rejeição do jovem regime propriamente dito, mas sim fruto de promessas incumpridas, múltiplas traições e desilusões protagonizadas pelos políticos, que facilmente esqueciam ser a governação a sua principal função. Aqueles consumiam todas as suas energias nas guerrilhas entre partidos adversários, e também nas lutas internas e interesses mesquinhos dos seus próprios partidos, e não a encontrarem soluções para as muitas carências do país e da população. Em dezasseis anos de regime republicano houve sete eleições para o Parlamento, oito para a Presidência da República e quarenta e cinco ministérios, com estes últimos a terem uma duração média de escassos quatro meses. O Parlamento, órgão que interferia em todos os detalhes da vida governativa, se por um lado constituía um poderoso travão às ambições e um filtro da corrupção política, mantendo a governação sob permanente controlo, por outro, apresentava-se como um permanente foco de instabilidade, fazendo cair ministérios, quantas vezes por questões menores e insignificantes.
O país acabou ainda por se envolver na fase final da Primeira Grande Guerra, por força dos compromissos que a aliança com a Inglaterra impunha, bem como a salvaguarda da integridade do seu império colonial, por um lado ameaçado pelos alemães, e por outro, sujeito a uma eventual partilha, caso a derrota dos alemães se concretizasse. Esta intervenção foi levada a cabo por um corpo expedicionário de 50.000 homens, indisciplinados e mal preparados, que foram despejados nos campos de batalha da Flandres em 1917. Lançados no braseiro e enfrentando as divisões alemãs, esta intervenção acabou por se traduzir em 6.000 prisioneiros, 7.000 mortos, inúmeros estropiados e gaseados, e deixando os cofres públicos vazios. De crise em crise e com ditaduras de permeio, o regime sobreviveu mais oito anos, até que sobreveio o golpe militar de 28 de Maio de 1926, capitaneado pelo general Gomes da Costa, que redundou, durante os dois primeiros anos, numa ditadura militar, resvalando depois para a ditadura do Estado Novo.
A segunda República, foi um período marcado pela ditadura de Oliveira Salazar, um professor de finanças, que se arvorou em salvador da pátria e edificou um regime que baptizou de Estado Novo. Grassou durante 48 longos anos, e caracterizou-se por uma inquestionável estabilidade governativa, própria dos governos autoritários. Teve 3 Presidentes da República (Óscar Carmona, Craveiro Lopes e Américo Thomás) e 2 governos, o primeiro, o mais longo de todos, conduzido com mão de ferro pelo todo-poderoso Prof. Salazar, e o último, pelo Prof. Marcello Caetano, que fora em tempos delfim do ditador, e que assumiu as funções, quando o primeiro, física e mentalmente incapacitado por um acidente, foi retirado de funções. Tal estabilidade governativa foi feita à custa do cerceamento das liberdades fundamentais e da instauração de um regime que se arrogava ser, para consumo externo, uma “democracia orgânica”, mas que na realidade não passava de um simulacro caricatural do sistema democrático. Cá dentro grassava um estado policial e repressivo, onde o essencial era saber ler, escrever, contar, rezar e trabalhar sem questionar. Ter acesso a mais altos voos era um privilégio a que muito poucos tinham acesso, sobretudo depois de manifestarem, por obras e pensamentos, a sua inquestionável fidelidade ao regime.
Os actuais adeptos do longo consulado salazarista esforçam-se por apagar tudo o que diga respeito ao estado policial-fascista que foi erigido, adaptado do modelo orgânico e institucional de Mussolini e da máquina repressiva do III Reich alemão. Preferem enaltecer outras iniciativas do regime, tais como sublinhar o meritório esforço que o ditador despendeu a equilibrar as contas públicas (o tal défice todo-poderoso) e a promover a acumulação de reservas de ouro, para arrancar o país à extrema pobreza e ao atraso em que a 1ª. República o deixara, objectivo que não concretizou, mascarando-o com uma paz e a segurança feita à custa da limitação das liberdades. Na verdade, o povo pouco mais ganhou que a segurança das prisões e a paz dos cemitérios. Por outro lado, teríamos ficado a dever-lhe também a manutenção do país ao abrigo de todas as consequências geradas pela Segunda Guerra Mundial, não sem que antes disso, em 1936, haja apoiado descaradamente o pronunciamento e a guerra civil espanhola, desencadeada pelo futuro ditador Franco. A vizinhança da novel República Espanhola era coisa que não lhe interessava, já que esta poderia tornar-se uma potencial exportadora para Portugal das "perigosas" ideias e práticas políticas que o Estado Novo estava tão empenhado em erradicar. Na altura da Segunda Guerra Mundial, momento alto em que as democracias se confrontaram com os fascismos, optou por escudar-se numa conspícua e bizarra neutralidade, porque ao envolver-se no conflito, estaria a comprometer os seus desígnios. Salazar era astuto, tinha um projecto pessoal de poder e sabia que só o poderia levar à prática com sucesso, se isolasse o país, disciplinando e silenciando as suas vozes e pensamento. Não queria partilhar esse projecto com ninguém, nem tão pouco tolerava que alguém nele se viesse intrometer. Desde o primeiro momento que pisara os corredores do poder, Salazar sabia o que queria, e para onde ia. O objectivo era submeter o povo à autoridade secular e religiosa, com padrões mínimos de instrução, sem ambições, reduzido à condição de força de trabalho humilde, domesticada e quase-forçada, arredado das ideias e opiniões contrárias ao regime, por uma impiedosa e castradora censura dos meios de comunicação social, permanentemente vigiado e reprimido pela polícia política, que se encarregava de distribuir os adversários políticos do regime, pela colónia penal do Tarrafal, e as prisões do Aljube, Caxias e Peniche.
A riqueza que entretanto ia sendo acumulada pouco ou nada tinha a ver com um tecido económico dinâmico, gerador de riqueza e de trabalho. As grandes fortunas iam-se fazendo à custa da exploração desmedida que o mossuliniano Estatuto Nacional do Trabalho permitia, ao mesmo tempo que o país ia vivendo de uma pseudo-indústria de turismo, do investimento estrangeiro e dos monopólios que estavam nas mãos de meia dúzia de famílias. Em vez de abrir o país ao desenvolvimento e progresso, deixou que o país se fosse exaurindo na exportação de mão-de-obra, através das sucessivas vagas de emigração, vindo depois a encherem-se os cofres do estado com as remessas dessa mesma emigração, num simulacro de prosperidade. As grandes conquista, descobertas, escolas e ideias que irrompiam pelo mundo fora, apenas nos afloravam, quase como meras curiosidades, dissimuladas por entre alguma informação filtrada que ia chegando até nós, importada de forma clandestina. Eleições era uma matéria rigorosamente controlada pelo aparelho repressivo e policial, não deixando que as mensagens oposicionistas chegassem aos destinatários, nem que as urnas fornecessem surpresas. Já em 1948 havia ocorrido um primeiro sobressalto com a candidatura oposicionista de Norton de Matos, mas foi nas eleições presidenciais de 1958, quando se apresentou como candidato da oposição o general Humberto Delgado, um “desertor” das fileiras do Estado Novo, que o regime tremeu. Foi tal o susto (Delgado teria ganho as eleições, caso a sua candidatura não houvesse sofrido toda a espécie de obstruções e os resultados não tivessem sido manipulados) que de imediato o regime procedeu a uma alteração constitucional, acabando com o sufrágio universal do presidente, e deixando a sua eleição/nomeação entregue à assembleia nacional, totalmente dominada pelo regime, travestida das funções de cinzento colégio eleitoral, para o cumprir as futuras investiduras. Quanto a Delgado, que apesar de exilado se mantinha activo, logo incómodo para o regime, viria a ser assassinado pela polícia política, em 1965, junto à fronteira de Espanha.
Depois disto, imerso numa imensa mediocridade e combatido por largos sectores da sociedade, fosse às claras ou na clandestinidade, o regime ia entrando em decadência. Sendo quase certo que o regime dificilmente sobreviveria ao seu mentor, a guerra colonial que irrompeu em 1961, fruto da mesquinhez e do isolacionismo salazarista, que teimava em ignorar os novos tempos que emergiram após a Segunda Guerra Mundial, e que traziam a marca da promoção e emancipação dos povos, acabou por ser o derradeiro balão de oxigénio que manteve vivo o regime, apenas adiando o colapso que já se vinha anunciando.
Acabaram por ser os militares, endurecidos por essa guerra colonial interminável, que se estendia por três frentes, e cuja vitória militar se tornava cada vez mais improvável, que se rebelaram e desceram à rua em 25 de Abril, apeando o regime, e manifestando a intenção de devolverem, ao país e à república, a sua matriz republicana e democrática. Em boa verdade, quando o regime caiu em 25 de Abril de 1974, para além da exaustão resultante de 48 anos de autoritarismo e de 13 anos de guerra, que consumia homens e recursos, o país ainda era, tal como fim da primeira república, e no dealbar do Estado Novo, em 1926, para além de um anacronismo político, a nação mais pobre e atrasada da Europa.
A terceira República, engloba o período que se estende, desde a revolução do 25 de Abril de 1974, até à actualidade. Desmembrou o estado totalitário, e na fase mais aguda de um conturbado processo revolucionários, procedeu ao desmembramento dos monopólios, a um arrojado programa de nacionalizações e reforma agrária. Levou a cabo a descolonização, acabando por fazer regredir o espaço territorial português para as fronteiras anteriores aos descobrimentos, foi gerador de uma nova Constituição, que reorganizou o país à volta de um regime democrático de matriz semi-presidencial, estruturado à volta de meia dúzia de partidos políticos, que passaram a cobrir, com razoável eficácia, o espectro sociológico do país. Até à data, teve 5 Presidentes da República (o sexto vai tomar posse dentro de dias), 6 Governos Provisórios e 16 Governos Constitucionais. Definitivamente encerrado o processo relativo ao seu passado colonial, com a adesão de Portugal à União Europeia, em 1986, o país passou a deslocar os seus centros de interesse para uma Europa que, sendo já uma potência económica, sem ser ainda uma unidade política, tem vindo a colher novas adesões, que também vão multiplicando as contradições e dificuldades.
Enumerar aqui todos os governos que até hoje se sucederam na ribalta política, seria fastidioso, além de que, dada a sua proximidade temporal, ainda persistem muitas memórias deles. Grosso modo, diremos apenas que todos eles, quase sem nenhuma excepção, enveredaram por promover vagas sucessivas de privatizações, restituindo os mais importantes sectores económicos e financeiros ao grande capital, reduzindo ao mínimo o sector empresarial do estado, mesmo em áreas consideradas estratégicas.
Por outro lado, entre 1985 e 1995, os muitos milhões de euros que entraram no país, vindos da União Europeia, esvaíram-se sabe-se lá para onde, e acabaram por não criar os alicerces duradouros e virados para a criação de riqueza produtiva, ficando muito longe de promover a qualificação dos portugueses, que continua a decair. Tal como o ouro do Brasil referido na introdução, os milhões europeus esvaíram-se em obras de estadão e pouco ou nada contribuíram para a criação de oportunidades, o revigoramento do tecido económico e a consequente elevação das condições de vida do país, ao passo que a agricultura e as pescas, longe de se modernizarem, acabaram desmanteladas e quase reduzidas a actividades de subsistência. Onde foram desaguar aqueles caudalosos rios de dinheiro? Quem deles beneficiou?
Deixaram-nos muitos milhares de quilómetros de auto-estradas, muitos viadutos, muitos “elefantes brancos” e uma indústria de betão que entra logo em crise assim que abranda a sofreguidão edificadora do estado, ao passo que a reorientação dos recursos e das competências ficaram-se pelas boas intenções.
A modernização e o desenvolvimento do país são, na actualidade, mais uma aparência que uma realidade, mantendo-se o país, apesar das quotidianas injecções de subsídios comunitários, um exemplo de descoordenação, ausência de rigor e sistemática falha de objectivos, o que conduz a que Portugal permaneça como um dos elos mais fracos da cadeia europeia, ocupando insistentemente os últimos lugares do “ranking” europeu.
O próprio Estado e a Administração Pública só aparentemente se modernizaram, sendo muitos os processos ainda tradicionais, que datam do século XIX, dos primórdios da república e do extenso consulado salazarista.
Do mais anónimo cidadão, até ao mais notável empresário, todos exigem ser beneficiários do subsidiarismo crónico que se instalou no país, o qual funciona como um sistema compensatório alternativo, face à ausência de projectos estruturantes, à ineficácia do aparelho administrativo e à mesquinhez e incompetência dos actores políticos. Com a alternância do poder, instalou-se a disseminação de clientelismos, secretas promiscuidades entre o poder político e os agentes económicos, o que potencia a difusão de favorecimentos e a instalação de uma generalizada corrupção, que alastra os todos os sectores da sociedade. Os programas de governo acabaram por tornar-se réplicas de outros anteriores, com ligeiras alterações de interesse e circunstância, onde está ausente qualquer vestígio de inovação e imaginação, sendo rara e minimamente cumpridos, quando não acontece serem cumpridos às avessas.
O guterrismo pensava que conseguia governar o país sem mexer uma palha, e que os problemas se resolveriam por si. O barrosismo pensava que conseguia governar o país virando tudo do avesso. Quanto ao santanismo, até há poucos meses, ainda pensava que conseguia governar como se tudo não passasse de um espectáculo de circo, com distribuição de caramelos pelo meio. Curiosamente, o socialista José Sócrates, apoiado numa maioria absoluta e na cartilha da “dama de ferro”, acaba por levar à prática as políticas que o barrosismo e o santanismo, ou não tiveram tempo, ou nunca se afoitaram a aplicar.
Portugal sempre foi uma identidade bem demarcada no contexto ibérico, porém, neste momento, dada a sua irrelevância económica, começa a assistir-se à perda de voz activa nas instâncias europeias, à deserção e transferência de muitos centros de decisão para Espanha, o que a breve prazo levará à diluição da nossa importância política, passando a ostentarmos, em termos de importância, o estatuto de região. Não é o regime democrático, como alguns sebastianistas pretendem, que é responsável pelo estado deplorável em que nos encontramos, mais sim quem tendo nas mãos as alavancas do poder, sob a capa e em nome dessa mesma democracia, gesto a gesto, passo a passo, empurraram o país para a presente situação. Hoje, tal como em 1926, aquando dos primeiros passos de Salazar pelos corredores do poder, é a questão do crónico défice orçamental que mobiliza, agora de forma contraditória, atabalhoada e imprecisa, alguns arremedos de gestão dos dinheiros públicos. Hoje, com o tempo mais que esgotado, torna-se necessário efectuar um salto qualitativo, já que, para além de alguns simulacros de modernização, panaceias e mezinhas avulsas, que descambaram em outras tantas experiências fracassadas, fomos incapazes de conceber e introduzir, no momento próprio, projectos de crescimento, coerente e sustentado, que fossem considerados e unanimemente aceites como desígnios e causas nacionais.
Será isto uma terceira República que reedita os vícios da primeira, ou apenas mais um lanço descendente, feito de compromissos secretamente lavrados, em tempos de cega globalização, entre mercenários da coisa pública e do apátrida sector capitalista, para que o país se apague?
Bem vistas as coisas, sempre fomos melhores gastadores que investidores. Após o grande crescimento provocado pelos descobrimentos, iniciados no século XV com a dinastia de Avis, a riqueza gerada pelo comércio com as Índias e o Brasil, em que a coroa era o grande beneficiário e administrador, não teve uma aplicação notória, porque faltava gente preparada para gerir e multiplicar a riqueza. Demos novos mundos ao mundo, mas quem disso se aproveitou foram os outros, até que, pouco a pouco, e pelas mais variadas razões, acabámos em Álcacer-Quibir e anexados por Castela, abraçados a um “sebastianismo” redutor.
Sessenta anos depois, e apesar de restaurada a independência em1640, iniciou-se com Portugal um longo e lento processo de declínio, que se veio estendendo até aos dias de hoje. No reinado de D.João V, o ouro que vinha do Brasil foi usado para satisfazer a megalomania e a ostentação real, como a construção do convento de Mafra e a transformação do país numa espécie de palco de uma grande ópera sacra, em que a Igreja era o actor principal. As prioridades da realeza tinham muito a ver com os seus hábitos e desejos sumptuários, e nada a ver com a valorização e beneficiação do país. Excepção deste estado de coisas foi o reinado de D.José e do seu todo-poderoso ministro Sebastião José de Carvalho e Melo (Marquês de Pombal), cultor do despotismo esclarecido, que a par do reforço do poder régio, com a perseguição das vozes e poderes dissonantes, além de reconstruir a Lisboa mártir do terramoto de1755, se abalançou a modernizar o país, equipando-o com indústrias, das quais muitas foram sobrevivendo até aos nossos dias. Porém, eram também muitos os “estrangeirados”, como D.Luís da Cunha, Luís António Verney e outros, que viviam longe do provincianismo lusitano, das arremetidas da Inquisição e do cheiro a carne queimada dos autos-de-fé. Portugal era um deserto onde não havia políticos, nem economistas, nem educação, e os poucos homens de letras, sábios e cientistas que havia, apenas tinham oportunidade de trabalhar em relativa tranquilidade, obtendo estímulos e reconhecimento nos exílios forçados, longe do país, aliás, condição que continua a verificar-se nos dias de hoje, embora com outras motivações. Nos últimos 500 anos da sua história editorial, Portugal sofreu 420 anos de censura, iniciada com as reais mesas censórias e os autos-de-fé da Santa Inquisição, e a acabar nas rasuras do lápis azul dos Serviços de Censura do Estado Novo e nas apreensões da polícia política, concluindo-se que a publicação de livros em Portugal foi uma actividade cultural levada a cabo com uma taxa de repressão de 84 por cento. Isso explica porque é que os movimentos e as novas ideias que eclodiram além fronteiras, ou chegavam demasiado tarde, ou nunca chegavam, porque é que predominava o analfabetismo e se glorificava a ignorância e a pobreza de espírito, com as vidas ocupadas exclusivamente com a sobrevivência. Isso acaba por explicar também porque temos, na actualidade, 1 milhão de analfabetos, o que correspondente a 9% da população do país, isto sem contar com o analfabetismo funcional e a iliteracia, agravando-se o precoce abandono escolar, causa primeira da baixa qualificação da população e de um atraso congénito. Progressivamente, ia-se desinvestindo nas pessoas, deixando grassar a ignorância, a desqualificação, a boçalidade. Num país eminentemente agrícola, os portugueses limitavam-se a serem pagadores de impostos, arrebanhados aos campos, para as obras que entretanto se iam fazendo, ou para as toscas e indisciplinadas fileiras do exército, quando era preciso travar alguma guerra. Quanto aos outros, que por uma razão ou outra, ficavam fora deste esquema, que se amanhassem.
A primeira República, organizada à volta de um regime eminentemente parlamentar, durou perto de 16 anos e iniciou-se com a implantação da república no dia 5 de Outubro de 1910. Era uma época em que a monarquia, com o regicídio ainda fresco na memória de todos, tinha atingido o ponto mais alto do descrédito, tornando-se incapaz de gerir crises, encontrar soluções e consensos. Naquele dia, a instauração da república esteve a um passo de não se concretizar, por demasiado improviso e falta de coordenação. Quando os revoltosos republicanos, descrentes do sucesso, já debandavam às mãos cheias das barricadas da Rotunda, convictos que a sua aventura havia fracassado, porque o exército se demarcara do golpe e o seu comandante se suicidou, o impensável aconteceu: a família real, com as malas já feitas, decidiu, pelo sim, pelo não, abandonar Portugal, rumo ao exílio em Inglaterra. O poder não caiu na rua. A queda da monarquia acabou por ser uma das mudanças de regime mais pacíficas e indolores que se conhecem, chegando a instauração do novo regime a ser divulgado, nos locais mais recônditos do país, através do telégrafo. Entre incrédulo e atabalhoado, o impreparado aparelho republicano acabou por ocupar o vácuo criado, mas a ambição de poder era desmedida, de tal modo que, num curto espaço de tempo, o antigo grande Partido Republicado acabou por se pulverizar numa miríade de novos partidos, alguns deles bem insignificantes e quase nada representativos.
Desta primeira experiência republicana, em que o país de viu liberto de uma monarquia moribunda e ineficaz, ficou-nos um período algo turbulento, de ânimos exaltados, fruto de um novo regime que experimentava, pela primeira vez, o pleno usufruto do poder, muito embora os seus principais protagonistas já houvessem passado pelas instituições da monarquia constitucional. O aspecto mais marcante deste primeiro período republicano foi o extremo anti clericalismo, que culminou na expulsão das ordens religiosas e a nacionalização dos bens da igreja.
A monarquia havia negligenciado o estado educacional e cultural do país, em benefício de iniciativas de cariz material, como sejam a implantação da rede de caminhos-de-ferro e alguns troços de estradas. A monarquia preocupava-se com as coisas, ao passo que a república, pelo contrário, interessava-se pelas pessoas, criando o Ministério da Educação Pública, promovendo a instalação de centros de ensino e fazendo da disseminação da educação básica uma grande causa.
O excessivo peso institucional do Congresso na vida política do país, e uma permanente anarquia parlamentar, que fazia e desfazia governos entre surtidas monárquicas, arruaças bombistas, tiroteio, assassinatos e revoluções palacianas, foi a característica mais marcante da vida política da primeira república. Portugal era, entre os principais países da Europa, recordista em instabilidade parlamentar, presidencial e governamental, levando a que começasse a grassar o abstencionismo junto do eleitorado, não como censura ou rejeição do jovem regime propriamente dito, mas sim fruto de promessas incumpridas, múltiplas traições e desilusões protagonizadas pelos políticos, que facilmente esqueciam ser a governação a sua principal função. Aqueles consumiam todas as suas energias nas guerrilhas entre partidos adversários, e também nas lutas internas e interesses mesquinhos dos seus próprios partidos, e não a encontrarem soluções para as muitas carências do país e da população. Em dezasseis anos de regime republicano houve sete eleições para o Parlamento, oito para a Presidência da República e quarenta e cinco ministérios, com estes últimos a terem uma duração média de escassos quatro meses. O Parlamento, órgão que interferia em todos os detalhes da vida governativa, se por um lado constituía um poderoso travão às ambições e um filtro da corrupção política, mantendo a governação sob permanente controlo, por outro, apresentava-se como um permanente foco de instabilidade, fazendo cair ministérios, quantas vezes por questões menores e insignificantes.
O país acabou ainda por se envolver na fase final da Primeira Grande Guerra, por força dos compromissos que a aliança com a Inglaterra impunha, bem como a salvaguarda da integridade do seu império colonial, por um lado ameaçado pelos alemães, e por outro, sujeito a uma eventual partilha, caso a derrota dos alemães se concretizasse. Esta intervenção foi levada a cabo por um corpo expedicionário de 50.000 homens, indisciplinados e mal preparados, que foram despejados nos campos de batalha da Flandres em 1917. Lançados no braseiro e enfrentando as divisões alemãs, esta intervenção acabou por se traduzir em 6.000 prisioneiros, 7.000 mortos, inúmeros estropiados e gaseados, e deixando os cofres públicos vazios. De crise em crise e com ditaduras de permeio, o regime sobreviveu mais oito anos, até que sobreveio o golpe militar de 28 de Maio de 1926, capitaneado pelo general Gomes da Costa, que redundou, durante os dois primeiros anos, numa ditadura militar, resvalando depois para a ditadura do Estado Novo.
A segunda República, foi um período marcado pela ditadura de Oliveira Salazar, um professor de finanças, que se arvorou em salvador da pátria e edificou um regime que baptizou de Estado Novo. Grassou durante 48 longos anos, e caracterizou-se por uma inquestionável estabilidade governativa, própria dos governos autoritários. Teve 3 Presidentes da República (Óscar Carmona, Craveiro Lopes e Américo Thomás) e 2 governos, o primeiro, o mais longo de todos, conduzido com mão de ferro pelo todo-poderoso Prof. Salazar, e o último, pelo Prof. Marcello Caetano, que fora em tempos delfim do ditador, e que assumiu as funções, quando o primeiro, física e mentalmente incapacitado por um acidente, foi retirado de funções. Tal estabilidade governativa foi feita à custa do cerceamento das liberdades fundamentais e da instauração de um regime que se arrogava ser, para consumo externo, uma “democracia orgânica”, mas que na realidade não passava de um simulacro caricatural do sistema democrático. Cá dentro grassava um estado policial e repressivo, onde o essencial era saber ler, escrever, contar, rezar e trabalhar sem questionar. Ter acesso a mais altos voos era um privilégio a que muito poucos tinham acesso, sobretudo depois de manifestarem, por obras e pensamentos, a sua inquestionável fidelidade ao regime.
Os actuais adeptos do longo consulado salazarista esforçam-se por apagar tudo o que diga respeito ao estado policial-fascista que foi erigido, adaptado do modelo orgânico e institucional de Mussolini e da máquina repressiva do III Reich alemão. Preferem enaltecer outras iniciativas do regime, tais como sublinhar o meritório esforço que o ditador despendeu a equilibrar as contas públicas (o tal défice todo-poderoso) e a promover a acumulação de reservas de ouro, para arrancar o país à extrema pobreza e ao atraso em que a 1ª. República o deixara, objectivo que não concretizou, mascarando-o com uma paz e a segurança feita à custa da limitação das liberdades. Na verdade, o povo pouco mais ganhou que a segurança das prisões e a paz dos cemitérios. Por outro lado, teríamos ficado a dever-lhe também a manutenção do país ao abrigo de todas as consequências geradas pela Segunda Guerra Mundial, não sem que antes disso, em 1936, haja apoiado descaradamente o pronunciamento e a guerra civil espanhola, desencadeada pelo futuro ditador Franco. A vizinhança da novel República Espanhola era coisa que não lhe interessava, já que esta poderia tornar-se uma potencial exportadora para Portugal das "perigosas" ideias e práticas políticas que o Estado Novo estava tão empenhado em erradicar. Na altura da Segunda Guerra Mundial, momento alto em que as democracias se confrontaram com os fascismos, optou por escudar-se numa conspícua e bizarra neutralidade, porque ao envolver-se no conflito, estaria a comprometer os seus desígnios. Salazar era astuto, tinha um projecto pessoal de poder e sabia que só o poderia levar à prática com sucesso, se isolasse o país, disciplinando e silenciando as suas vozes e pensamento. Não queria partilhar esse projecto com ninguém, nem tão pouco tolerava que alguém nele se viesse intrometer. Desde o primeiro momento que pisara os corredores do poder, Salazar sabia o que queria, e para onde ia. O objectivo era submeter o povo à autoridade secular e religiosa, com padrões mínimos de instrução, sem ambições, reduzido à condição de força de trabalho humilde, domesticada e quase-forçada, arredado das ideias e opiniões contrárias ao regime, por uma impiedosa e castradora censura dos meios de comunicação social, permanentemente vigiado e reprimido pela polícia política, que se encarregava de distribuir os adversários políticos do regime, pela colónia penal do Tarrafal, e as prisões do Aljube, Caxias e Peniche.
A riqueza que entretanto ia sendo acumulada pouco ou nada tinha a ver com um tecido económico dinâmico, gerador de riqueza e de trabalho. As grandes fortunas iam-se fazendo à custa da exploração desmedida que o mossuliniano Estatuto Nacional do Trabalho permitia, ao mesmo tempo que o país ia vivendo de uma pseudo-indústria de turismo, do investimento estrangeiro e dos monopólios que estavam nas mãos de meia dúzia de famílias. Em vez de abrir o país ao desenvolvimento e progresso, deixou que o país se fosse exaurindo na exportação de mão-de-obra, através das sucessivas vagas de emigração, vindo depois a encherem-se os cofres do estado com as remessas dessa mesma emigração, num simulacro de prosperidade. As grandes conquista, descobertas, escolas e ideias que irrompiam pelo mundo fora, apenas nos afloravam, quase como meras curiosidades, dissimuladas por entre alguma informação filtrada que ia chegando até nós, importada de forma clandestina. Eleições era uma matéria rigorosamente controlada pelo aparelho repressivo e policial, não deixando que as mensagens oposicionistas chegassem aos destinatários, nem que as urnas fornecessem surpresas. Já em 1948 havia ocorrido um primeiro sobressalto com a candidatura oposicionista de Norton de Matos, mas foi nas eleições presidenciais de 1958, quando se apresentou como candidato da oposição o general Humberto Delgado, um “desertor” das fileiras do Estado Novo, que o regime tremeu. Foi tal o susto (Delgado teria ganho as eleições, caso a sua candidatura não houvesse sofrido toda a espécie de obstruções e os resultados não tivessem sido manipulados) que de imediato o regime procedeu a uma alteração constitucional, acabando com o sufrágio universal do presidente, e deixando a sua eleição/nomeação entregue à assembleia nacional, totalmente dominada pelo regime, travestida das funções de cinzento colégio eleitoral, para o cumprir as futuras investiduras. Quanto a Delgado, que apesar de exilado se mantinha activo, logo incómodo para o regime, viria a ser assassinado pela polícia política, em 1965, junto à fronteira de Espanha.
Depois disto, imerso numa imensa mediocridade e combatido por largos sectores da sociedade, fosse às claras ou na clandestinidade, o regime ia entrando em decadência. Sendo quase certo que o regime dificilmente sobreviveria ao seu mentor, a guerra colonial que irrompeu em 1961, fruto da mesquinhez e do isolacionismo salazarista, que teimava em ignorar os novos tempos que emergiram após a Segunda Guerra Mundial, e que traziam a marca da promoção e emancipação dos povos, acabou por ser o derradeiro balão de oxigénio que manteve vivo o regime, apenas adiando o colapso que já se vinha anunciando.
Acabaram por ser os militares, endurecidos por essa guerra colonial interminável, que se estendia por três frentes, e cuja vitória militar se tornava cada vez mais improvável, que se rebelaram e desceram à rua em 25 de Abril, apeando o regime, e manifestando a intenção de devolverem, ao país e à república, a sua matriz republicana e democrática. Em boa verdade, quando o regime caiu em 25 de Abril de 1974, para além da exaustão resultante de 48 anos de autoritarismo e de 13 anos de guerra, que consumia homens e recursos, o país ainda era, tal como fim da primeira república, e no dealbar do Estado Novo, em 1926, para além de um anacronismo político, a nação mais pobre e atrasada da Europa.
A terceira República, engloba o período que se estende, desde a revolução do 25 de Abril de 1974, até à actualidade. Desmembrou o estado totalitário, e na fase mais aguda de um conturbado processo revolucionários, procedeu ao desmembramento dos monopólios, a um arrojado programa de nacionalizações e reforma agrária. Levou a cabo a descolonização, acabando por fazer regredir o espaço territorial português para as fronteiras anteriores aos descobrimentos, foi gerador de uma nova Constituição, que reorganizou o país à volta de um regime democrático de matriz semi-presidencial, estruturado à volta de meia dúzia de partidos políticos, que passaram a cobrir, com razoável eficácia, o espectro sociológico do país. Até à data, teve 5 Presidentes da República (o sexto vai tomar posse dentro de dias), 6 Governos Provisórios e 16 Governos Constitucionais. Definitivamente encerrado o processo relativo ao seu passado colonial, com a adesão de Portugal à União Europeia, em 1986, o país passou a deslocar os seus centros de interesse para uma Europa que, sendo já uma potência económica, sem ser ainda uma unidade política, tem vindo a colher novas adesões, que também vão multiplicando as contradições e dificuldades.
Enumerar aqui todos os governos que até hoje se sucederam na ribalta política, seria fastidioso, além de que, dada a sua proximidade temporal, ainda persistem muitas memórias deles. Grosso modo, diremos apenas que todos eles, quase sem nenhuma excepção, enveredaram por promover vagas sucessivas de privatizações, restituindo os mais importantes sectores económicos e financeiros ao grande capital, reduzindo ao mínimo o sector empresarial do estado, mesmo em áreas consideradas estratégicas.
Por outro lado, entre 1985 e 1995, os muitos milhões de euros que entraram no país, vindos da União Europeia, esvaíram-se sabe-se lá para onde, e acabaram por não criar os alicerces duradouros e virados para a criação de riqueza produtiva, ficando muito longe de promover a qualificação dos portugueses, que continua a decair. Tal como o ouro do Brasil referido na introdução, os milhões europeus esvaíram-se em obras de estadão e pouco ou nada contribuíram para a criação de oportunidades, o revigoramento do tecido económico e a consequente elevação das condições de vida do país, ao passo que a agricultura e as pescas, longe de se modernizarem, acabaram desmanteladas e quase reduzidas a actividades de subsistência. Onde foram desaguar aqueles caudalosos rios de dinheiro? Quem deles beneficiou?
Deixaram-nos muitos milhares de quilómetros de auto-estradas, muitos viadutos, muitos “elefantes brancos” e uma indústria de betão que entra logo em crise assim que abranda a sofreguidão edificadora do estado, ao passo que a reorientação dos recursos e das competências ficaram-se pelas boas intenções.
A modernização e o desenvolvimento do país são, na actualidade, mais uma aparência que uma realidade, mantendo-se o país, apesar das quotidianas injecções de subsídios comunitários, um exemplo de descoordenação, ausência de rigor e sistemática falha de objectivos, o que conduz a que Portugal permaneça como um dos elos mais fracos da cadeia europeia, ocupando insistentemente os últimos lugares do “ranking” europeu.
O próprio Estado e a Administração Pública só aparentemente se modernizaram, sendo muitos os processos ainda tradicionais, que datam do século XIX, dos primórdios da república e do extenso consulado salazarista.
Do mais anónimo cidadão, até ao mais notável empresário, todos exigem ser beneficiários do subsidiarismo crónico que se instalou no país, o qual funciona como um sistema compensatório alternativo, face à ausência de projectos estruturantes, à ineficácia do aparelho administrativo e à mesquinhez e incompetência dos actores políticos. Com a alternância do poder, instalou-se a disseminação de clientelismos, secretas promiscuidades entre o poder político e os agentes económicos, o que potencia a difusão de favorecimentos e a instalação de uma generalizada corrupção, que alastra os todos os sectores da sociedade. Os programas de governo acabaram por tornar-se réplicas de outros anteriores, com ligeiras alterações de interesse e circunstância, onde está ausente qualquer vestígio de inovação e imaginação, sendo rara e minimamente cumpridos, quando não acontece serem cumpridos às avessas.
O guterrismo pensava que conseguia governar o país sem mexer uma palha, e que os problemas se resolveriam por si. O barrosismo pensava que conseguia governar o país virando tudo do avesso. Quanto ao santanismo, até há poucos meses, ainda pensava que conseguia governar como se tudo não passasse de um espectáculo de circo, com distribuição de caramelos pelo meio. Curiosamente, o socialista José Sócrates, apoiado numa maioria absoluta e na cartilha da “dama de ferro”, acaba por levar à prática as políticas que o barrosismo e o santanismo, ou não tiveram tempo, ou nunca se afoitaram a aplicar.
Portugal sempre foi uma identidade bem demarcada no contexto ibérico, porém, neste momento, dada a sua irrelevância económica, começa a assistir-se à perda de voz activa nas instâncias europeias, à deserção e transferência de muitos centros de decisão para Espanha, o que a breve prazo levará à diluição da nossa importância política, passando a ostentarmos, em termos de importância, o estatuto de região. Não é o regime democrático, como alguns sebastianistas pretendem, que é responsável pelo estado deplorável em que nos encontramos, mais sim quem tendo nas mãos as alavancas do poder, sob a capa e em nome dessa mesma democracia, gesto a gesto, passo a passo, empurraram o país para a presente situação. Hoje, tal como em 1926, aquando dos primeiros passos de Salazar pelos corredores do poder, é a questão do crónico défice orçamental que mobiliza, agora de forma contraditória, atabalhoada e imprecisa, alguns arremedos de gestão dos dinheiros públicos. Hoje, com o tempo mais que esgotado, torna-se necessário efectuar um salto qualitativo, já que, para além de alguns simulacros de modernização, panaceias e mezinhas avulsas, que descambaram em outras tantas experiências fracassadas, fomos incapazes de conceber e introduzir, no momento próprio, projectos de crescimento, coerente e sustentado, que fossem considerados e unanimemente aceites como desígnios e causas nacionais.
Será isto uma terceira República que reedita os vícios da primeira, ou apenas mais um lanço descendente, feito de compromissos secretamente lavrados, em tempos de cega globalização, entre mercenários da coisa pública e do apátrida sector capitalista, para que o país se apague?
Notas Soltas
A Sonae lançou uma OPA (Operação Pública de Aquisição) hostil sobre a Portugal Telecom, mostrando que o empresário Belmiro de Azevedo continua empenhado em manter o crescimento do seu império económico. Se for bem sucedido na sua operação, o Estado (que por agora não interfere, mas lá no íntimo até talvez agradeça) perde o controle de uma grande empresa do sector empresarial do estado, mas encaixa uns quantos milhões para ver se equilibra o orçamento, ou esbanjar como é seu costume, sendo que a operação, se for concretizada, pouco ou nada acrescentará ao desenvolvimento económico de que o país carece. Indiferente aos problemas do país, e enquanto os grandes tubarões se divertem a jogar ao Monopólio, o governo deixa que empresas estratégicas sejam vendidas a retalho e a pataco, para que alguns poucos fiquem cada vez mais ricos, e todos os outros cada vez mais pobres.
Ainda não está tudo dito nem visto, mas o facto de Belmiro de Azevedo, ostentando dotes de áugure, ter afirmado, há uns meses atrás, que Cavaco Silva iria ser um excelente Presidente da República, para ombrear com o excelente Primeiro-Ministro que Sócrates já era, dá bem uma ideia do que pensam os grandes empresários, sobre as agradáveis perspectivas de uma coabitação abençoada pelo espírito santo do bloco central, que tanto pode dar em união de facto como em casamento de conveniência. Com a actual OPA da Sonae sobre a Portugal Telecom em curso, começa a ficar explicada a afabilidade e deferência com que o governo encara a operação. Naturalmente, amor com amor se paga.
No país em que um qualquer Valentim (com mais direito de antena que qualquer outro português) se permite humilhar e ameaçar um agente da PSP em plena via pública, em que uma Fátima fugida à justiça regressa à terrinha para ganhar as eleições, para logo a seguir a justiça fazer recuar o processo para a estaca zero, para já não falar em Apitos Dourados, Freeports, Facturas Falsas, Aeroporto de Macau, corrupção nos Impostos e na Direcção Geral de Viação, Universidades Modernas, Casas Pias, Furacões, Portucales, Eurominas, e mais um interminável cortejo de arrastamentos, prescrições e respectivos arquivamentos, chamar a isto imunidade ou impunidade não faz grande diferença. Assim sendo, talvez a expressão mais adequada seja o de estarmos a viver numa sociedade corrompida até ao tutano.
Até Abril, em obras que avançam a passo acelerado, e contrariando a tão apregoada falta de verbas, vão ser gastos mais uns quantos milhões de euros para levantar em Évora um Centro de Estágio para a Selecção Nacional de Futebol, com vista ao campeonato do mundo que se disputa este ano. Depois dos dez (10) estádios de futebol, que ostentámos garbosamente durante o campeonato da Europa de 2004, e que actualmente nos estão a dar imenso jeito, temos agora mais uma obra que prima por contrariar a nossa pelintrice, ser eminentemente necessária e inadiável, enquanto escolas, tribunais, hospitais e outras estruturas de utilidade pública, umas são exíguas, outras metem água, ao passo que outras correm o risco de derrocada. (*)
Tive o meu primeiro sobressalto que quase tocou a raiva, quando assisti, nos idos de 60 do século passado, ao filme de Trufault, que se intitulava FARENHEIT 451, baseado no romance de ficção científica de Ray Bradbury, esse mesmo, onde as brigadas de bombeiros tinham a diabólica missão de atear o fogo a bibliotecas inteiras, reeditando os autos de fé do III Reich, e onde os poucos resistentes, optavam, cada um, por decorar uma obra da sua preferência, para mais tarde a declamar de memória, salvando-a assim de um trágico e fatal esquecimento. À época, lembro-me de ter ficado revoltado, porque todos os tostões que amealhava eram para resgatar livros em segunda mão aos alfarrabistas de rua (como aquele concorrido pátio ao lado do cinema Éden), e não concebia que o fruto da criatividade do espírito humano, adquirido com tanto sacrifício, e tratado com tanto cuidado e desvelo, pudesse ser inspiradora de perseguições e combustível para alimentar fogueiras.
Agora, a propósito das reacções desencadeadas pela publicação de algumas caricaturas, começo a acreditar que estamos a viver tempos complexos e perigosos. Ai das civilizações e da paz, quando as religiões se introduzem nas relações entre os povos, e vice-versa! Ai das artes e das culturas, quando a intolerância e as inquisições voltam a querer ditar regras, impedindo que os seres humanos cultivem a comédia e o grotesco, contando histórias licenciosas e exercitando o riso.
Na América as coisas passam-se assim: um empregado foi despedido porque, fora das horas de serviço, foi visto a consumir uma marca de cerveja, concorrente da marca para que trabalhava. O patrão diz que quem faz as regras é ele, e quem não gostar, paciência...
Nos EUA não há legislação que proteja quem trabalha, contra prepotências deste tipo, que roçam o mais retinto fascismo.
Folheei aquela revista e a páginas tantas, estava lá a casa que foi de Karen Blixen, a dinamarquesa que nos primórdios do século passado, cheia de coragem e com aquelas saias imensas a roçar os tornozelos, andou pelo Quénia a lutar contra as mentalidades, fórmulas e intransigências do espírito colonizador. Continuo a não saber se aquele morro sobranceiro ao vale dominado pelas montanhas Ngong, onde os leões, ao fim da tarde, se vinham deitar, como se viessem venerar o local que recebera os restos mortais de Finch Hatton, o homem que não queria pertencer a ninguém, nem a lado nenhum, é verdadeiro, ou se não passa de um produto da ficção que Sidney Pollack, genialmente, materializou para o cinema, baseado no livro que Karen nos deixou. Assim, voltei a rever o filme “Out of Africa” (África Minha), com a sua história simples, nostálgica, recheada de humanidade, imagens fortes e emoções, quando o mundo e muitas convenções estavam em vias de sofrer mais um safanão.
Falando ainda sobre cinema, cada filme de Andrei Tarkovsky, o cineasta que nos deixou “Andrey Rubliov”, “Solaris” e “Stalker”, é um mergulho em apneia, nas profundezas dos seres humanos e das suas relações com o universo.
(*) Publicado no EXPRESSO de 2006-02-11 com o título “Futebóis”.
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