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“Duzentas mil pessoas a protestar na rua parece não ter incomodado, por aí além, o eng. José Sócrates. Ele o disse, com enfadonha soberba. Mário Soares, velho sábio, advertiu o Governo de que o impressionante número de descontentes, a juntar àqueles que se presume, é de molde a suscitar apreensões. Se não muda de rumo, acentuou Soares, percebe-se, latente, grande agitação social, de resultados imprevisíveis. Sócrates está-se marimbando.
Queira-se ou não, o pulsar da rua é um indício muito mais tremendo do que o ruído que provoca. E quando Sócrates, com aquele infeliz argumento procedente do antigamente da vida, regouga que por detrás da mole humana estão o PCP e o Bloco de Esquerda, aí, então, o desatino atinge a aleivosia. Sócrates faz-nos de tolos.
É evidente que nem o PCP, nem o Bloco de Esquerda dispõem de tanto estrénuo militante, e que a poderosa manifestação agregou muita gente de todos os partidos. Repito: de todos os partidos. E sei do que falo.
A maioria de que este Governo dispõe, para dispor, a seu bel-prazer, dos nossos destinos colectivos, torna a arrogância uma crispação totalitária. Repito: totalitária. Aquela gente não ouve ninguém, sobretudo não ouve a voz da razão e do bom-senso. Basta escutar o ministro Santos Silva ou o apenas concebível Vitalino Canas para nos apercebermos da extensão de um comportamento indesculpável.
A rua sempre foi um sinal de alerta e uma demonstração de cívica coragem. Estou à vontade: participei, no tempo do fascismo, em quase todos protestos de rua. Não falhei um 5 de Outubro, um Primeiro de Maio ou qualquer outra data a que nos mandavam estar presente. Sabíamos muito bem o que nos estava reservado. Mas sabíamos, também, que estar era, já em si, o bastante. Estou cheio de histórias de que fui modesto protagonista ou espectador irado. Confesso, hoje, que, ao relembrar certos episódios me surpreendo pelo desassombro e pela ingenuidade.
O Rossio era o local da concentração. O boca-a-boca funcionava, assim como a imprensa clandestina. Sempre critiquei a escolha do sítio. A polícia política e a outra fechava as saídas e era um vê se te avias a pancadaria que levávamos. Levávamos e dávamos: a partir de certa altura alguns de nós, contrariando as recomendações, levaram consigo tubos de borracha, e defendíamos conforme podíamos. Podíamos pouco, ante o aluvião de agentes à paisana e a brutalidade da repressão. Salientava-se, neste caso o capitão Maltez, cuja selvajaria era conhecida.
Num desses anos, estava com o Fernando Lopes-Graça e outros amigos, à entrada da Rua do Carmo. A multidão gritava: "Abaixo o fascismo!" ou "Morte à PIDE!", e o desagrado durou poucos minutos. Eis que surge o capitão Maltez de má memória e, de cassetête em punho agride quem à sua frente aparecesse. O homem parecia cego de ódio e de raiva. Agrediu Lopes-Graça uma vez; da segunda, coloquei-me à frente dele, tentei cobri-lo com o meu corpo (eu era um homem muito mais corpulento do que sou hoje, e mesmo agora…) e levei com as bastonadas destinadas ao meu velho amigo. Depois, sempre tapando o Graça, e quase o transportando, corri pela rua do Carmo, sempre com o Maltez a dar-me. As escadas estavam fechadas, o Graça tinha levado com uma bastonada na cabeça e partido os óculos, corria-lhe um fio de sangue pelo rosto, até que consegui que alguém me abrisse uma porta.
Quero dizer com isto que vale sempre a pena estar onde é preciso estar. E que a rua, por muito que os detentores do poder digam o contrário, causa amolgadelas e dá resultado, mais tarde ou mais cedo. A rua não é, somente, uma demonstração de indignação sindical, política e cívica - é, sobretudo, um argumento moral, contra a inexistência de moral dos governantes.
Os duzentos mil que desceram à rua sabiam muitíssimo bem o que os unia, o que os une. É a recusa da rendição ante o desaforo de uma política que sova os mais desfavorecidos e enche de prebendas e de favores os mais favorecidos. Não há nenhuma explicação (pelo menos daquelas que nos foram dadas e foram dadas atabalhoadamente) para os milhões de milhões distribuídos pela banca, num prémio sem remissa àqueles que cometeram fraudes, que prevaricaram, que roubaram, que enriqueceram às nossas custas.
Olhamos para o panorama geral e parece que uma onda de corrupção, de iniquidades, de falta de palavra, de carência de ética, de valores e de padrões invadiu a esfera do capitalismo. "O capitalismo contém, em si mesmo, os embriões de tudo o que é mau e de tudo o que é bom" disse Keynes. O pior é que, até agora, só o mau se tem revelado. E de que maneira!
Torna-se cada vez mais evidente que o Executivo Sócrates não possui nem força, nem capacidade e, acaso, nem competência para, ao menos amenizar a crise em que nos mergulharam. Os duzentos mil protestatários significaram uma pesada advertência. E, como no tempo do fascismo, o peso das multidões acaba por querer dizer alguma coisa. Infelizmente, parece que José Sócrates está cada vez mais afastado da realidade.”
Artigo de Armando Baptista-Bastos, publicado no Jornal de Negócios de 2009-3-22
“Duzentas mil pessoas a protestar na rua parece não ter incomodado, por aí além, o eng. José Sócrates. Ele o disse, com enfadonha soberba. Mário Soares, velho sábio, advertiu o Governo de que o impressionante número de descontentes, a juntar àqueles que se presume, é de molde a suscitar apreensões. Se não muda de rumo, acentuou Soares, percebe-se, latente, grande agitação social, de resultados imprevisíveis. Sócrates está-se marimbando.
Queira-se ou não, o pulsar da rua é um indício muito mais tremendo do que o ruído que provoca. E quando Sócrates, com aquele infeliz argumento procedente do antigamente da vida, regouga que por detrás da mole humana estão o PCP e o Bloco de Esquerda, aí, então, o desatino atinge a aleivosia. Sócrates faz-nos de tolos.
É evidente que nem o PCP, nem o Bloco de Esquerda dispõem de tanto estrénuo militante, e que a poderosa manifestação agregou muita gente de todos os partidos. Repito: de todos os partidos. E sei do que falo.
A maioria de que este Governo dispõe, para dispor, a seu bel-prazer, dos nossos destinos colectivos, torna a arrogância uma crispação totalitária. Repito: totalitária. Aquela gente não ouve ninguém, sobretudo não ouve a voz da razão e do bom-senso. Basta escutar o ministro Santos Silva ou o apenas concebível Vitalino Canas para nos apercebermos da extensão de um comportamento indesculpável.
A rua sempre foi um sinal de alerta e uma demonstração de cívica coragem. Estou à vontade: participei, no tempo do fascismo, em quase todos protestos de rua. Não falhei um 5 de Outubro, um Primeiro de Maio ou qualquer outra data a que nos mandavam estar presente. Sabíamos muito bem o que nos estava reservado. Mas sabíamos, também, que estar era, já em si, o bastante. Estou cheio de histórias de que fui modesto protagonista ou espectador irado. Confesso, hoje, que, ao relembrar certos episódios me surpreendo pelo desassombro e pela ingenuidade.
O Rossio era o local da concentração. O boca-a-boca funcionava, assim como a imprensa clandestina. Sempre critiquei a escolha do sítio. A polícia política e a outra fechava as saídas e era um vê se te avias a pancadaria que levávamos. Levávamos e dávamos: a partir de certa altura alguns de nós, contrariando as recomendações, levaram consigo tubos de borracha, e defendíamos conforme podíamos. Podíamos pouco, ante o aluvião de agentes à paisana e a brutalidade da repressão. Salientava-se, neste caso o capitão Maltez, cuja selvajaria era conhecida.
Num desses anos, estava com o Fernando Lopes-Graça e outros amigos, à entrada da Rua do Carmo. A multidão gritava: "Abaixo o fascismo!" ou "Morte à PIDE!", e o desagrado durou poucos minutos. Eis que surge o capitão Maltez de má memória e, de cassetête em punho agride quem à sua frente aparecesse. O homem parecia cego de ódio e de raiva. Agrediu Lopes-Graça uma vez; da segunda, coloquei-me à frente dele, tentei cobri-lo com o meu corpo (eu era um homem muito mais corpulento do que sou hoje, e mesmo agora…) e levei com as bastonadas destinadas ao meu velho amigo. Depois, sempre tapando o Graça, e quase o transportando, corri pela rua do Carmo, sempre com o Maltez a dar-me. As escadas estavam fechadas, o Graça tinha levado com uma bastonada na cabeça e partido os óculos, corria-lhe um fio de sangue pelo rosto, até que consegui que alguém me abrisse uma porta.
Quero dizer com isto que vale sempre a pena estar onde é preciso estar. E que a rua, por muito que os detentores do poder digam o contrário, causa amolgadelas e dá resultado, mais tarde ou mais cedo. A rua não é, somente, uma demonstração de indignação sindical, política e cívica - é, sobretudo, um argumento moral, contra a inexistência de moral dos governantes.
Os duzentos mil que desceram à rua sabiam muitíssimo bem o que os unia, o que os une. É a recusa da rendição ante o desaforo de uma política que sova os mais desfavorecidos e enche de prebendas e de favores os mais favorecidos. Não há nenhuma explicação (pelo menos daquelas que nos foram dadas e foram dadas atabalhoadamente) para os milhões de milhões distribuídos pela banca, num prémio sem remissa àqueles que cometeram fraudes, que prevaricaram, que roubaram, que enriqueceram às nossas custas.
Olhamos para o panorama geral e parece que uma onda de corrupção, de iniquidades, de falta de palavra, de carência de ética, de valores e de padrões invadiu a esfera do capitalismo. "O capitalismo contém, em si mesmo, os embriões de tudo o que é mau e de tudo o que é bom" disse Keynes. O pior é que, até agora, só o mau se tem revelado. E de que maneira!
Torna-se cada vez mais evidente que o Executivo Sócrates não possui nem força, nem capacidade e, acaso, nem competência para, ao menos amenizar a crise em que nos mergulharam. Os duzentos mil protestatários significaram uma pesada advertência. E, como no tempo do fascismo, o peso das multidões acaba por querer dizer alguma coisa. Infelizmente, parece que José Sócrates está cada vez mais afastado da realidade.”
Artigo de Armando Baptista-Bastos, publicado no Jornal de Negócios de 2009-3-22