FEITA A LEITURA de “Caim”, e conforme prometido há um post atrás, e também porque não gosto de adiar seja o que for, aqui seguem as minhas primeiras, e talvez definitivas, impressões.
Todas as religiões têm sido, desde o principio dos tempos, grandes fontes de inspiração privilegiada para todas as artes, desde a literatura até à arquitectura, e para um escritor tão fecundo como o é Saramago, as Sagradas Escrituras não fogem à regra, constituindo um alfobre de eleição, onde o escritor vai colher temas que depois desenvolve à sua maneira, quase sempre de forma polémica e não apologética.
Caim é uma figura trágica. Foi um Saramago muito conversador, em muitos momentos divertido, e noutros irreverente e ironicamente ácido, que a repescou para dar corpo à sua obra, onde narra episódios bíblicos, como se fossem acontecimentos passados à nossa beira, no tempo presente, olhados e avaliados segundo os preceitos contemporâneos.
A história de Caim e Abel é conhecida. Os dois irmãos, como era hábito no princípio dos tempos, faziam as suas oferendas a Deus, Abel com vitelos, pois era pastor, ao passo que Caim recorria aos produtos da terra, pois era agricultor. Deus, do seu pedestal celestial, avaliou as prendas que lhe ofertavam, apreciou mais a carne que os vegetais, e decidiu louvar Abel em prejuízo de Caim. Este sentindo-se rejeitado, resolveu o problema de uma penada: acabou com a concorrência matando o irmão. O seu crime foi sancionado pelo pai do céu com uma marca na sua face, e uma condenação a preceito: errar pelo mundo a espiar o seu pecado, exibindo a marca com que a divindade o marcara, e assistir ao desenrolar de todas as ignomínias que pautaram a proto-história da humanidade, sob a batuta e o olhar despeitado do criador e juiz supremo.
Saramago toma nas mãos aquela condenação, e a errância de Caim acaba por tomar a forma de uma espécie de viagem no tempo, em que aquele visita aleatoriamente alguns acontecimentos do Antigo Testamento, qual deles o mais violento e controverso, como sejam o episódio da Torre de Babel, quando a primordial língua universal foi pulverizada em tantos idiomas, tantos quantos os necessários para confundir os espíritos e o humano entendimento, o sacrifício de Isaac pelo patriarca Abraão, Sodoma e Gomorra, as muralhas de Jericó, a adoração do bezerro de ouro junto ao monte Sinai, a queda em desgraça de Job e os trabalhos de Noé. É certo que Saramago, nestas andanças de cá para lá, ao longo do Livro, não poupa Deus, e nem sequer dá dele uma imagem minimamente abonatória, pois não há vestígios da proverbial misericórdia divina, mas apenas livre arbítrio, poder absoluto, vingança e gratuita violência divina.
É certo que Caim gozou de uma espécie de liberdade condicional, com a obrigatoriedade de apresentação regular a quem o marcou com o ferrete da ignomínia, mas isso, à luz das Escrituras, parece ter sido uma forma do Criador se indulgenciar, antes de concluir que cometeu erros crassos nas manipulações que operou no laboratório da criação, e que a raça humana, afinal, não foi criada à sua imagem e semelhança, antes pelo contrário. Como alguém em tempos alvitrou, não devemos contar demasiado com Deus, mas talvez Deus conte connosco. Ou então, como o afirma Saramago, “a história dos homens é a história dos seus desentendimentos com deus, nem ele nos entende a nós, nem nós o entendemos a ele”.
No meio de tudo isto, tanto os teólogos como alguns críticos, acabam a dizer que a Bíblia NÃO é para ser lida de forma literal, mas mudando de critério, acham que as obras de Saramago SIM, isto é, não as consideram obras literárias, na verdadeira acepção da palavra, e como tal, passíveis de vários sentidos e múltiplas interpretações. Por isso, cada vez que Saramago dá mais um livro à luz, é certo que aí virá mais uma enxurrada de críticas e polémicas sem fim, adornadas, de tempos a tempos, com o tradicional catolicismo patrioteiro de alguns basbaques e querubins, mais rústicos e atrevidos.
Neste tempo em que as relações entre deuses, anjos, demónios, confrarias e sociedades secretas, andam a monopolizar uma larga fatia da produção literária que enche as estantes e vitrinas, para o leitor mais desprevenido, a abordagem de Caim não é fácil, como aliás a maioria das obras de Saramago, mas depois de encontrado o passo certo e a cadência da narrativa, a obra abre-se de par em par, e espanta-nos pela sua originalidade e fluidez.
Digam o que disserem, facto incontroverso é que o autodidacta Saramago, mesmo com a sua falta de diplomas académicos, continua a ser um mestre, e cada obra que sai das suas mãos, é cada vez mais uma obra que prima pela singularidade e inovação.
Todas as religiões têm sido, desde o principio dos tempos, grandes fontes de inspiração privilegiada para todas as artes, desde a literatura até à arquitectura, e para um escritor tão fecundo como o é Saramago, as Sagradas Escrituras não fogem à regra, constituindo um alfobre de eleição, onde o escritor vai colher temas que depois desenvolve à sua maneira, quase sempre de forma polémica e não apologética.
Caim é uma figura trágica. Foi um Saramago muito conversador, em muitos momentos divertido, e noutros irreverente e ironicamente ácido, que a repescou para dar corpo à sua obra, onde narra episódios bíblicos, como se fossem acontecimentos passados à nossa beira, no tempo presente, olhados e avaliados segundo os preceitos contemporâneos.
A história de Caim e Abel é conhecida. Os dois irmãos, como era hábito no princípio dos tempos, faziam as suas oferendas a Deus, Abel com vitelos, pois era pastor, ao passo que Caim recorria aos produtos da terra, pois era agricultor. Deus, do seu pedestal celestial, avaliou as prendas que lhe ofertavam, apreciou mais a carne que os vegetais, e decidiu louvar Abel em prejuízo de Caim. Este sentindo-se rejeitado, resolveu o problema de uma penada: acabou com a concorrência matando o irmão. O seu crime foi sancionado pelo pai do céu com uma marca na sua face, e uma condenação a preceito: errar pelo mundo a espiar o seu pecado, exibindo a marca com que a divindade o marcara, e assistir ao desenrolar de todas as ignomínias que pautaram a proto-história da humanidade, sob a batuta e o olhar despeitado do criador e juiz supremo.
Saramago toma nas mãos aquela condenação, e a errância de Caim acaba por tomar a forma de uma espécie de viagem no tempo, em que aquele visita aleatoriamente alguns acontecimentos do Antigo Testamento, qual deles o mais violento e controverso, como sejam o episódio da Torre de Babel, quando a primordial língua universal foi pulverizada em tantos idiomas, tantos quantos os necessários para confundir os espíritos e o humano entendimento, o sacrifício de Isaac pelo patriarca Abraão, Sodoma e Gomorra, as muralhas de Jericó, a adoração do bezerro de ouro junto ao monte Sinai, a queda em desgraça de Job e os trabalhos de Noé. É certo que Saramago, nestas andanças de cá para lá, ao longo do Livro, não poupa Deus, e nem sequer dá dele uma imagem minimamente abonatória, pois não há vestígios da proverbial misericórdia divina, mas apenas livre arbítrio, poder absoluto, vingança e gratuita violência divina.
É certo que Caim gozou de uma espécie de liberdade condicional, com a obrigatoriedade de apresentação regular a quem o marcou com o ferrete da ignomínia, mas isso, à luz das Escrituras, parece ter sido uma forma do Criador se indulgenciar, antes de concluir que cometeu erros crassos nas manipulações que operou no laboratório da criação, e que a raça humana, afinal, não foi criada à sua imagem e semelhança, antes pelo contrário. Como alguém em tempos alvitrou, não devemos contar demasiado com Deus, mas talvez Deus conte connosco. Ou então, como o afirma Saramago, “a história dos homens é a história dos seus desentendimentos com deus, nem ele nos entende a nós, nem nós o entendemos a ele”.
No meio de tudo isto, tanto os teólogos como alguns críticos, acabam a dizer que a Bíblia NÃO é para ser lida de forma literal, mas mudando de critério, acham que as obras de Saramago SIM, isto é, não as consideram obras literárias, na verdadeira acepção da palavra, e como tal, passíveis de vários sentidos e múltiplas interpretações. Por isso, cada vez que Saramago dá mais um livro à luz, é certo que aí virá mais uma enxurrada de críticas e polémicas sem fim, adornadas, de tempos a tempos, com o tradicional catolicismo patrioteiro de alguns basbaques e querubins, mais rústicos e atrevidos.
Neste tempo em que as relações entre deuses, anjos, demónios, confrarias e sociedades secretas, andam a monopolizar uma larga fatia da produção literária que enche as estantes e vitrinas, para o leitor mais desprevenido, a abordagem de Caim não é fácil, como aliás a maioria das obras de Saramago, mas depois de encontrado o passo certo e a cadência da narrativa, a obra abre-se de par em par, e espanta-nos pela sua originalidade e fluidez.
Digam o que disserem, facto incontroverso é que o autodidacta Saramago, mesmo com a sua falta de diplomas académicos, continua a ser um mestre, e cada obra que sai das suas mãos, é cada vez mais uma obra que prima pela singularidade e inovação.