Tenham sido ou não uma provocação, destinadas a testar a capacidade de resposta dos muçulmanos, as famigeradas caricaturas dinamarquesas (na minha opinião, com um tema venenoso e de mau gosto), acabaram por trazer um benefício: voltar a pôr na ordem do dia, um problema que sempre se tem mantido em aberto. Quais são os limites da liberdade? O que é isso da liberdade com responsabilidade? Qual a fronteira entre liberdade plena e tépida condescendência? Será proibido proibir? Uma coisa é certa: quando os usos e abusos da liberdade se movimentam no plano cívico, mais pontapé, menos pontapé, mais queixa, menos queixa, o problema resolve-se. Porém, quando as religiões entram em cena, quando os púlpitos e as mesquitas se transformam em locais de desassossego, o caldo fica entornado.
Por caminhos ínvios andam as religiões, quando entronizadas de poder, visam impor os seus códigos de conduta, preceitos e regras, sabendo que a humanidade, tanto física como espiritualmente, se alicerça na diversidade. Mal vão também os políticos ditos laicos, que se dizem grandes e zelosos campeões das liberdades de expressão, quando assustados com a violência desencadeada, verberam contra os excessos de liberdade e a “irresponsabilidade” dos artistas do humor. Eu que sou agnóstico, costumo condescender e temperar estas situações com um pensamento: Se Deus, ao dar liberdade ao homem, permitiu que ele cultivasse a crítica, a comédia e a licenciosidade, é porque não estava muito interessado em que o homem respeitasse, sem vacilar, a sua intocabilidade e honorabilidade, dando razão a Albert Camus, quando disse que talvez sejamos mesmo livres e responsáveis, o que faz com que Deus não seja todo-poderoso. Apesar de tudo, é o que se sabe: os homens entenderam tornar-se, nuns casos, mais papistas que o Papa, noutros, mais puros que o próprio Profeta. Salman Ruschdie sofreu uma “fatwa” (decreto corânico) em 1989, que o condenava à morte, lançada pelos hayatolas iranianos, por ter escrito e publicado os seus VERSÍCULOS SATÂNICOS, tendo vivido largos anos na clandestinidade. Quanto ao Prémio Nobel José Saramago, foi anatemizado pelo Vaticano e vetado como candidato a um prémio literário, por um certo Lúcio Lara, subsecretário de estado da cultura português, quando escreveu e publicou o seu EVANGELO SEGUNDO JESUS CRISTO. Já o filme EU VOS SAÚDO, MARIA de Jean-Luc Godard, esteve impedido de ser exibido, ao passo que A ÚLTIMA TENTAÇÃO DE CRISTO de Martin Scorcese, enfrentou reacções hostis de múltiplos quadrantes, sobretudo católicos, prolongando-se até há muito pouco tempo, em alguns países, a proibição da sua exibição. Foi preciso surgir em 2002 uma adaptação cinematográfica d’O CRIME DO PADRE AMARO, romance de Eça de Queirós, editado pela primeira vez em 1875, e que explorava as consequências do celibato sacerdotal, para que os espíritos ficassem ao rubro. Antes mesmo do início das filmagens no México, já lavrava muita polémica, onde vários grupos de inspiração católica, tentaram por todos os meios impedir a sua realização. E isto é só para falarmos de alguns casos recentes, deixando de lado as mordaças impostas pelas mesas censórias e os autos de fé da Santa Inquisição, ou as colossais fogueiras alimentadas, na época do Califado, com os papiros, ditos heréticos e blasfemos, guardados na biblioteca de Alexandria.
A questão central destas confrontações não é uma luta entre culturas e civilizações, mas sim um braço de ferro entre o laicismo e o fundamentalismo religioso, entre a realidade e a superstição, entre a tolerância e a intransigência, entre uso da liberdade de expressão, fundamento das democracias, e algumas listas (umas mais extensas que outras) de restrições ao seu exercício. Embora eu respeite todas as religiões, e entenda que no contexto histórico, todas elas são responsáveis por diferentes modelos civilizacionais, também reconheço que, tanto podem amplificar como embotar os sentidos e a clarividência dos povos, tornando-se factor de perturbação e dando origem a situações bem pouco concordantes com a sua missão. Ao longo dos tempos, os provocadores, seja a que quadrante pertençam, sabem como usar qualquer pretexto, no caso o religioso, para ressuscitarem medos e preconceitos. Porém, as pessoas, seja a que quadrante pertençam, também são suficientemente inteligentes e sagazes, para saberem distinguir o essencial do acessório, desprezando e ignorando as provocações brandidas por agitadores, sejam eles supostos agressores ou pretensos ofendidos, deixando que elas se extingam como fogos fátuos. Sobre o planeta haverá sempre uns mais sisudos, e outros mais liberais, e nem todos os estômagos aceitam digerir as mesmas comidas. Dou um exemplo: ainda há dias a VISÃO publicou uma caricatura do Rui, onde a bandeira portuguesa aparecia confundida com o logótipo do Windows da Microsoft, parodiando os acordos que Sócrates estabeleceu com Bill Gates. Haverá quem veja nisto apenas uma colagem e um gracejo bem conseguidos, assim como haverá também quem veja no desenho, uma insuportável afronta ao mais carismático dos símbolos nacionais. O objectivo da caricatura é exactamente esse. Há que desfigurar a realidade, carregando-a de contrastes e cores fortes, em suma, há que ser mordaz, provocar o choque, pisar o risco, espicaçar os espíritos, subverter as normas e os cânones, para que a crítica e o anedótico atinjam o alvo e surtam efeito.
Cristo e o Vaticano, o Profeta e o Islão, Moisés e a Sinagoga, ou os ensinamentos do venerável Buda, isto para só falar das principais religiões, podem ficar descansados! Não serão caricaturas, afinal expressões do efémero burlesco, venham de que lado vierem, que calarão as fés e as convicções religiosas. Todas as pirotecnias que visam incendiar os espíritos e os sentidos, podem ser acirradas e instrumentalizadas, mas como todas as cóleras, se as remetermos para o seu verdadeiro lugar, apagar-se-ão por falta de combustível, e no fim, poucos vestígios sobrarão.
Com a criatividade temporariamente inquinada, gostei de ver que os dramas e turbulências provocados pelas caricaturas, tivessem sido superados com a realização de um torneio de desenhos humorísticos (embora, na minha opinião, novamente orientados para um tema de mau gosto), desta feita desencadeado pelo lado muçulmano, para ver quem possui maior grau de acidez e acutilância. Direi mais: tudo devia ter começado por aí, com as ofensas a dirimirem-se com canetas, pincéis e tinta-da-china, e não com o habitual folclore das bandeiras queimadas e das embaixadas vandalizadas, mais um punhado de políticos a acotovelarem-se e a colarem-se aos acontecimentos, tentando facturar prestígio e visibilidade. Agora, das duas uma: ou os alvos atingidos vão reclamar ruidosamente, ou todos vão ficar calados como homenzinhos mal comportados. A frio, e quando há culpas mútuas no cartório, o silêncio não é de ouro, mas de chumbo.