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No Reino Unido, as autoridades voltaram a fazer grande alarido à volta de uma intervenção que fez abortar, dizem eles, mesmo à beira da sua consumação, mais uma intentona (ou terá sido inventona?) terrorista que desaguaria num atentado de grandes proporções (1). As razões do alarme adiantadas pela Scotland Yard, são tão vagas quanto imprecisas. As buscas e duas detenções que foram efectuadas em Londres e Halifax, no quadro da lei contra o terrorismo, baseiam-se na «suspeita de [os detidos] terem cometido, preparado ou instigado actos de terrorismo». Isto é mais do que suficiente para manter a pessoas a olhar, permanentemente, por cima do ombro e com o credo ao canto da boca. Antes disso, já em 9 de Janeiro, e também no Reino Unido, que neste momento parece ser o campeão das medidas e acções anti-terroristas, ultrapassando, em muitos casos, as medidas tomadas nos Estados Unidos, foi divulgado que o MI5, com a intenção de travar (ou terá sido de incentivar?) o pânico no seio das populações, vai passar a fornecer, via e-mail, informações especializadas sobre o terrorismo. Quem quiser receber informações sobre as alterações ao estado de alerta nacional, é condição essencial registar-se no site oficial daquela agência de informações. Ora vejamos: se a intenção da iniciativa fosse comportar-se como um verdadeiro serviço público (tal como o boletim meteorológico, as farmácias de serviço ou as cotações da bolsa), bastava disponibilizar a informação num site a isso dedicado. Ao exigir o registo e identificação do utilizador da informação, é óbvio que a intenção é espiar e controlar quem está interessado nela. Isto é tão evidente e elementar que até o sisudo e imperturbável Sherlock Holmes se teria sentido melindrado, por estarem a tentar profanar a sua inteligência, para já não falar da privacidade.
Propagar uma ideia persistente de terror, é meio caminho andado para instaurar o estado-de-sítio, e daí abrir caminho ao golpe de estado marcial vai apenas um pequeno passo. Mas atenção, os velhos métodos já não são apropriados, não porque tenham caído em desuso, mas sim porque isso apagaria umas sobras de liberdade e direitos que é preciso resguardar, para manter, junto do homem comum, as aparências de que a democracia continua de pedra e cal. Assim, tudo isto pode ser feito, passo a passo, quase sem disso nos apercebermos. Se perdermos todos os dias mais um bocadinho de direitos, liberdades e garantias, chegaremos onde eles querem, quase sem disso nos apercebermos. O objectivo é o mesmo, só que o caminho para lá chegar é mais longo, mais subtil e menos traumático.
O propósito é transformar a sociedade numa estrutura de vigilantes, informadores e denunciadores, convencendo-os que estão a desempenhar uma função eminentemente patriótica, social ou ético-moral, com o objectivo final de transformar o cidadão num ser humano obediente, condicionado, avesso à reclamação, com medo e horror à indignação e contestação, confundindo o inconformismo com transgressão da ordem estabelecida, subversão, e em última análise, com terrorismo. Hoje, tal como em épocas mais sombrias da história da humanidade, as denúncias anónimas são bem-vindas. Para chegarmos a este estado de coisas, basta que nos convençam a trocar tantas fatias de liberdade, por outras tantas da tal segurança, que eles nos querem fazer crer que está ameaçada.
Iremos passar a ter, a muito curto prazo, qualquer coisa como um BIDU (Bilhete de Identidade Único), sem o qual não poderemos dar o mínimo passo, caso contrário começamos a pisar os terrenos da suspeição e da ilegalidade (2). Através de terminais apropriados, ele funcionará como um vulgar Multibanco, mas o que é verdadeiramente importante é que nos manterá permanentemente ligados a uma base de dados, que registará, logo controlará, todos os nossos passos, para confirmar a nossa identidade em compras, sejam elas a crédito ou não, no acto de votar, em operações STOP, acções judiciais, acções notariais, ir aos correios para levantar uma carta registada, ir ao médico, à farmácia ou ao hospital, abrir conta bancária ou na internet, entregar candidaturas de toda a espécie, ou até mesmo a requisição de um simples passe de transporte, isto é, tudo onde seja preciso ter que se provar a identidade. Por outras palavras, este proficiente e multifuncional BIDU, que noutras circunstâncias poderia ser um desburocratizante sistema de simplificação da cidadania, à luz das condições e circunstâncias em que o querem implementar, irá tornar-se um instrumento de controle e vigilância totalitária dos cidadãos.
Já hoje já se consegue reproduzir o percurso de qualquer pessoa, seguindo o rasto deixado pelo telemóvel que transporta consigo, os terminais Multibanco que vai utilizando aqui e ali, e agora ainda com mais eficácia e rigor, desde que o vulgar cidadão passou a dispor de equipamentos de GPS no seu automóvel e nas mais recentes gerações de telemóveis. Isto para não falar na densa constelação de câmaras de vigilância que nos espreitam lá de cima, como sentinelas de uma grande penitenciária, ou o uso da Internet e do correio electrónico que ajudam a traçar o nosso perfil, gostos e preferências. Julgamos que temos connosco apenas objectos e instrumentos de grande utilidade, o tal grande passo em frente da civilização e do progresso, quando afinal também trazemos pequenos delatores que vão denunciando todos os nossos passos. Eis o “admirável mundo novo” que nos vai cercando um pouco por todo o lado, o “big brother” que nos espreita a todo o momento, policiando todas as nossas acções.
Depois do Congresso dos EUA ter engavetado, sem cerimónia, a “Bill of Rights”, banindo a figura de “habeas corpus”, permitindo assim que se enclausure num lugar esconso todos os supostos suspeitos de terrorismo e outros “indesejáveis”, ao mesmo tempo que era posto em vigor o “Patriot Act”, depois do Reino Unido ter aprovado em Março de 2005, o “Prevention Terrorism Act” e a União Europeia ter posto a funcionar o polémico “Mandato de Prisão Europeu”, tudo é de esperar, e depois de tiradas as respectivas medidas, não será certamente nada de bom.
Tudo isto nos leva a concluir que os políticos e ideólogos que leram o “1984” de George Orwell, o “Admirável Mundo Novo”de Aldous Huxley e o “Fahrenheit 451”de Ray Bradbury, acharam que aquelas ficções, embora estivessem no bom caminho, ainda deixavam muito a desejar, e então, sub-repticiamente, passo a passo, têm vindo a pô-las em prática, com ligeiras variantes. A coberto do lento aperfeiçoamento de um estado totalitário de fachada democrática, e desculpando-se com uma “globalização” que parece ter surgido de parte nenhuma, mas que na realidade corresponde a um projecto bem planeado de dominação planetária, estamos a ver as tais ficções, que há décadas atrás ainda pertenciam ao reino do utópico, serem paulatinamente integradas na realidade que nos cerca, perfilando-se como sérias e efectivas ameaças à liberdade. São apresentadas como factores de progresso tecnológico, cujo primeiro objectivo é proporcionar-nos benefícios, felicidade e bem-estar, mas o que de facto está a acontecer é que, a par disso, estamos a ser narcotizados com muitas “realidades virtuais”, andamos a ser controlados, nos mínimos gestos, passos, gostos, opiniões e opções. E quem tem um controlo deste género, tem o poder. Um poder imenso e absoluto.
Notas -
(1) – O surto da gripe das aves H5N1, ocorrido em Ipswich, Suffolk, acabou por relegar para segundo plano, mais esta regular operação de aterrorizamento das populações do Reino Unido. No entanto, também há quem diga (teorias da conspiração?) que a sobreposição dos dois acontecimentos, foi milimétricamente concertada e coordenada, para que os dois pavores coexistissem, cada um deles com os seus destinatários próprios.
(2) – Ao contrário de muitos outros países, que sempre prezaram a privacidade e rejeitaram o controle apertado dos cidadãos, próprios dos regimes totalitários, rejeitando serem identificados através de um número de cidadão, em Portugal, o bilhete de identidade foi criado em 1907 e generalizado o seu uso a partir de 1913. Persistiu até à actualidade, sobrevivendo à própria restauração da democracia, em 25 de Abril de 1974. Com um século de existência, tornou-se um elemento tão banal quanto enraizado na sociedade, daí o ser vulgar dizer-se que a existência do português é impensável e inseparável do seu bilhete de identidade, e a sua não renovação, constitui uma falta que conduz ao bloqueio de todo o processo burocrático e ao exercício pleno da cidadania.