Meu pai, Américo Garcia Torres, falecido em 1997, a exemplo de muitos milhares de outros portugueses, também foi “agraciado” com a “visita” da PIDE (Polícia Internacional e Defesa do Estado) que, para quem não saiba ou não se lembre, era a polícia política do regime do ditador Oliveira Salazar, quando corria o ano de 1959, e tinha eu os meus 13 anos. Conforme o atesta a sua ficha policial, que aqui reproduzo, e que vem inserida no sexto volume da obra “Presos Políticos no Regime Fascista VI 1952-1960”, da autoria da Comissão do Livro Negro sobre o Regime Fascista e editada pela Presidência do Conselho de Ministros em 1988, meu pai foi detido no seu local de trabalho, a tesouraria de uma seguradora, às 8 horas e 30 minutos do dia 20 de Maio de 1959, uma quarta-feira, por uma brigada de agentes da dita PIDE, coordenada com uma outra brigada que, para espanto de minha mãe, exactamente à mesma hora batia à porta da nossa residência, para proceder à busca e apreensão de possíveis materiais e provas incriminatórias. Estiveram lá a manhã inteira. Não se preocuparam com o facto de eu estar de cama doente, reviraram a casa toda e acabaram a levar uns quantos livros e revistas de pouca importância.
O meu pai passou 15 dias nas celas das instalações da sede da PIDE, na Rua António Maria Cardoso, onde foi “cordialmente” interrogado, com sessões de tortura de “estátua” e de “sono”, acompanhadas de esbofeteamentos, sádica e metodicamente conduzidos pelo major Silva Pais, com o objectivo de o levar a confessar as atrocidades mais incríveis e surpreendentes. Esteve sem contacto com o mundo exterior durante perto de 15 dias, e quando o visitámos pela primeira vez após a detenção, já depois de ter sido transferido para os celebérrimos “curros” do Aljube (nunca mais esquecerei esta sequência), tinha emagrecido, estava despenteado, atordoado, cambaleante, macilento e olheirento, e o que mais me impressionou foi aquele olhar esbugalhado, próprio de quem atravessou uma grande provação. Não trazia óculos, nem relógio de pulso, nem cinto, porque a PIDE detestava os suicídios quando as vítimas estavam sob a sua alçada (medo das repercussões internacionais), e durante toda a visita, de pouco mais de 5 minutos, fomos sempre acompanhados pela presença intimidante de um agente da PIDE, muito bem barbeado, bem vestido e engraxado, a tresandar a água de colónia, que passou todo o tempo, a esgravatar os dentes e a limpar as unhas com um palito, exibindo um permanente sorriso de desdém. Em 23 de Julho de 1959 foi transferido para o Depósito de Presos de Caxias, vulgarmente conhecido por Reduto Norte do Forte de Caxias, tendo sido castigado em 26 de Outubro desse mesmo ano, com proibição de actividade ao ar livre (vulgo recreio), durante 2 dias, por ter alterado o sossego no estabelecimento prisional e ter-se recusado a obedecer às ordens dos guardas. Em 6 de Maio de 1960, isto é, um ano após a detenção, foi finalmente a julgamento, no Tribunal Plenário da Boa-Hora, presidido pelo famigerado juiz Caldeira, homem que se gabava de comungar diariamente (tantos eram os seus pecados!), juntamente com mais perto de meia centena de colegas da mesma profissão de seguros, tendo averbado, por actividades subversivas e atentatórias da segurança do Estado, a perda dos direitos políticos durante 15 anos, isto é, a capacidade de eleger e ser eleito, mais uma condenação de 2 anos de prisão maior, e mais 6 meses a 3 anos de regime de “medidas de segurança”, expediente usado pelo regime, para manter um opositor preso durante tempo indefinido. Foi defendido pelo causídico Dr. Rui Cabeçadas, ele mesmo posteriormente perseguido pelo regime, e obrigado a exilar-se no estrangeiro. Nessa altura já havia o hábito de todos os sábados, eu e minha mãe o irmos visitar. Agora, fruto da condenação, minha mãe socorreu-se dos seus conhecimentos de costura para, trabalhando em casa como modista, enfrentar as necessidades e carências do dia-a-dia, enquanto que eu tive que reorientar os estudos e entrar precocemente no mundo do trabalho, graças à solidariedade de classe, como paquete de uma companhia de seguros, para assegurar o pagamento da renda da casa.
Durante a detenção foi castigado com a suspensão do direito a visitas pelo período de 15 dias, por ter colaborado num protesto, ocorrido nas instalações prisionais, motivado pela má alimentação fornecida aos presos. Em 4 de Dezembro de 1961, voltou a ficar privado de visitas durante duas semanas, assim como todos os outros detidos, como represália por ter ocorrido uma espectacular fuga do presídio, coroada de êxito e levada a cabo no próprio carro oficial do director do forte (que havia pertencido ao ditador Salazar), a que eu quase assisti, devido ao facto de ter chegado mais cedo às imediações das instalações prisionais. Ao longe ainda escutei o ruído da metralha lançada contra o carro dos fugitivos, e quando cheguei à beira do forte, pude constatar o estado em que ficou o portão exterior que foi violentamente abalroado. Se internamente se agudizava a resistência ao regime, também a nível internacional a ditadura tinha começado a sofrer contrariedades e revezes. O ano de 1961 ficou para a História como o “annus horribilis” do regime salazarista, primeiro com o sequestro do paquete “Santa Maria” em Janeiro de 1961, levado a cabo pelo opositor do regime, comandante Henrique Galvão, à frente de uma força de vinte membros da DRIL (Direcção Revolucionária Ibérica de Libertação), constituída por portugueses e espanhóis, logo a seguir, em Fevereiro de 1961, com o início da guerra colonial em Angola, e finalmente, com a consumação da invasão das possessões indianas de Goa, Damão e Diu, por parte da União Indiana, em Dezembro desse mesmo 1961.
Entretanto, já em 1962, meu pai partilhou algum do tempo de detenção com o Dr. Arlindo Vicente, outro opositor do regime e antigo candidato à presidência da república.
Terminada que foi a pena, já durante a vigência das famigeradas medidas de segurança, e sem aviso prévio, foi posto em liberdade condicional no dia 27 de Dezembro de 1962, com a obrigatoriedade de todos os meses ir assinar uma folha de presença, na sede da PIDE. Bateu-nos à porta de casa, ao fim da tarde daquele dia, a pedir para lhe darmos dinheiro para pagar ao taxista. Tinha saído de casa a uma quarta-feira, regressou a uma quinta. Estava mais velho quase 4 anos, e com a sua oposição ao regime transformada numa surda, metódica e profunda revolta. A sua ausência deixou marcas, fez estragos, e também por isso, nunca mais voltámos a ser a mesma família.
Os “crimes hediondos”, propriamente ditos, que praticou, foi ter sido um opositor visceral do regime de Salazar, guardar em casa meia dúzia de livros e uma resma de revistas, que só o excesso de zelo poderia considerar literatura subversiva, ter colaborado nas listas de Humberto Delgado e Arlindo Vicente, ter subscrito alguns abaixo-assinados e ter participado nas actividades sócio-profissionais do sindicato de seguros, tudo perigosas actividades que colocavam em risco de colapso, o “grande edifício social” e a “democracia orgânica” do Estado Novo, erigidas por esse “grande português” que foi o ditador Oliveira Salazar. Porém, igual ou muito pior do que aconteceu a meu pai, foi o destino que o regime, antes e depois, reservou a muitos milhares de outros portugueses, que tiveram a ousadia de contestar e pôr em causa as regras em vigor, mais próprias de uma imensa penitenciária, do que de um país, digno desse nome.
O meu pai passou 15 dias nas celas das instalações da sede da PIDE, na Rua António Maria Cardoso, onde foi “cordialmente” interrogado, com sessões de tortura de “estátua” e de “sono”, acompanhadas de esbofeteamentos, sádica e metodicamente conduzidos pelo major Silva Pais, com o objectivo de o levar a confessar as atrocidades mais incríveis e surpreendentes. Esteve sem contacto com o mundo exterior durante perto de 15 dias, e quando o visitámos pela primeira vez após a detenção, já depois de ter sido transferido para os celebérrimos “curros” do Aljube (nunca mais esquecerei esta sequência), tinha emagrecido, estava despenteado, atordoado, cambaleante, macilento e olheirento, e o que mais me impressionou foi aquele olhar esbugalhado, próprio de quem atravessou uma grande provação. Não trazia óculos, nem relógio de pulso, nem cinto, porque a PIDE detestava os suicídios quando as vítimas estavam sob a sua alçada (medo das repercussões internacionais), e durante toda a visita, de pouco mais de 5 minutos, fomos sempre acompanhados pela presença intimidante de um agente da PIDE, muito bem barbeado, bem vestido e engraxado, a tresandar a água de colónia, que passou todo o tempo, a esgravatar os dentes e a limpar as unhas com um palito, exibindo um permanente sorriso de desdém. Em 23 de Julho de 1959 foi transferido para o Depósito de Presos de Caxias, vulgarmente conhecido por Reduto Norte do Forte de Caxias, tendo sido castigado em 26 de Outubro desse mesmo ano, com proibição de actividade ao ar livre (vulgo recreio), durante 2 dias, por ter alterado o sossego no estabelecimento prisional e ter-se recusado a obedecer às ordens dos guardas. Em 6 de Maio de 1960, isto é, um ano após a detenção, foi finalmente a julgamento, no Tribunal Plenário da Boa-Hora, presidido pelo famigerado juiz Caldeira, homem que se gabava de comungar diariamente (tantos eram os seus pecados!), juntamente com mais perto de meia centena de colegas da mesma profissão de seguros, tendo averbado, por actividades subversivas e atentatórias da segurança do Estado, a perda dos direitos políticos durante 15 anos, isto é, a capacidade de eleger e ser eleito, mais uma condenação de 2 anos de prisão maior, e mais 6 meses a 3 anos de regime de “medidas de segurança”, expediente usado pelo regime, para manter um opositor preso durante tempo indefinido. Foi defendido pelo causídico Dr. Rui Cabeçadas, ele mesmo posteriormente perseguido pelo regime, e obrigado a exilar-se no estrangeiro. Nessa altura já havia o hábito de todos os sábados, eu e minha mãe o irmos visitar. Agora, fruto da condenação, minha mãe socorreu-se dos seus conhecimentos de costura para, trabalhando em casa como modista, enfrentar as necessidades e carências do dia-a-dia, enquanto que eu tive que reorientar os estudos e entrar precocemente no mundo do trabalho, graças à solidariedade de classe, como paquete de uma companhia de seguros, para assegurar o pagamento da renda da casa.
Durante a detenção foi castigado com a suspensão do direito a visitas pelo período de 15 dias, por ter colaborado num protesto, ocorrido nas instalações prisionais, motivado pela má alimentação fornecida aos presos. Em 4 de Dezembro de 1961, voltou a ficar privado de visitas durante duas semanas, assim como todos os outros detidos, como represália por ter ocorrido uma espectacular fuga do presídio, coroada de êxito e levada a cabo no próprio carro oficial do director do forte (que havia pertencido ao ditador Salazar), a que eu quase assisti, devido ao facto de ter chegado mais cedo às imediações das instalações prisionais. Ao longe ainda escutei o ruído da metralha lançada contra o carro dos fugitivos, e quando cheguei à beira do forte, pude constatar o estado em que ficou o portão exterior que foi violentamente abalroado. Se internamente se agudizava a resistência ao regime, também a nível internacional a ditadura tinha começado a sofrer contrariedades e revezes. O ano de 1961 ficou para a História como o “annus horribilis” do regime salazarista, primeiro com o sequestro do paquete “Santa Maria” em Janeiro de 1961, levado a cabo pelo opositor do regime, comandante Henrique Galvão, à frente de uma força de vinte membros da DRIL (Direcção Revolucionária Ibérica de Libertação), constituída por portugueses e espanhóis, logo a seguir, em Fevereiro de 1961, com o início da guerra colonial em Angola, e finalmente, com a consumação da invasão das possessões indianas de Goa, Damão e Diu, por parte da União Indiana, em Dezembro desse mesmo 1961.
Entretanto, já em 1962, meu pai partilhou algum do tempo de detenção com o Dr. Arlindo Vicente, outro opositor do regime e antigo candidato à presidência da república.
Terminada que foi a pena, já durante a vigência das famigeradas medidas de segurança, e sem aviso prévio, foi posto em liberdade condicional no dia 27 de Dezembro de 1962, com a obrigatoriedade de todos os meses ir assinar uma folha de presença, na sede da PIDE. Bateu-nos à porta de casa, ao fim da tarde daquele dia, a pedir para lhe darmos dinheiro para pagar ao taxista. Tinha saído de casa a uma quarta-feira, regressou a uma quinta. Estava mais velho quase 4 anos, e com a sua oposição ao regime transformada numa surda, metódica e profunda revolta. A sua ausência deixou marcas, fez estragos, e também por isso, nunca mais voltámos a ser a mesma família.
Os “crimes hediondos”, propriamente ditos, que praticou, foi ter sido um opositor visceral do regime de Salazar, guardar em casa meia dúzia de livros e uma resma de revistas, que só o excesso de zelo poderia considerar literatura subversiva, ter colaborado nas listas de Humberto Delgado e Arlindo Vicente, ter subscrito alguns abaixo-assinados e ter participado nas actividades sócio-profissionais do sindicato de seguros, tudo perigosas actividades que colocavam em risco de colapso, o “grande edifício social” e a “democracia orgânica” do Estado Novo, erigidas por esse “grande português” que foi o ditador Oliveira Salazar. Porém, igual ou muito pior do que aconteceu a meu pai, foi o destino que o regime, antes e depois, reservou a muitos milhares de outros portugueses, que tiveram a ousadia de contestar e pôr em causa as regras em vigor, mais próprias de uma imensa penitenciária, do que de um país, digno desse nome.