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Com o mesmo título do post, transcrevo o texto do professor José Ricardo Costa, publicado no jornal O TORREJANO, em 11 de Dezembro 2008.
«Imagine o meu caro que é professor, que é dia de exame do 12º ano e vai ter de fazer uma vigilância.
Continue a imaginar. O despertador avariou durante a noite. Ou fica preso no elevador. Ou o seu filho, já à porta do infantário, vomitou o quente, pastoso, húmido e fétido pequeno-almoço em cima da sua imaculada camisa.
Teve, portanto, de faltar à vigilância. Tem falta.
Ora esta coisa de um professor ficar com faltas injustificadas é complicada, por isso convém justificá-la. A questão agora é: como justificá-la?
Passemos então à parte divertida. A única justificação para o facto de ficar preso no elevador, do despertador avariar ou de não poder ir para uma sala do exame com a camisa vomitada, ababalhada e malcheirosa, é um atestado médico.
Qualquer pessoa com um pouco de bom senso percebe que quem precisa aqui do atestado médico será o despertador ou o elevador. Mas não. Só uma doença poderá justificar sua ausência na sala do exame. Vai ao médico. E, a partir deste momento, a situação deixa de ser divertida para passar a ser hilariante.
Chega-se ao médico com o ar mais saudável deste mundo. Enfim, com o sorriso de Jorge Gabriel misturado com o ar rosado do Gabriel Alves e a felicidade do padre Melícias. A partir deste momento mágico, gera-se um fenómeno que só pode ser explicado através de noções básicas da psicopatologia da vida quotidiana. Os mesmos que explicam uma hipnose colectiva em Felgueiras, o holocausto nazi ou o sucesso da TVI.
O professor sabe que não está doente. O médico sabe que ele não está doente. O presidente do executivo sabe que ele não está doente. O director regional sabe que ele não está doente. O Ministério da Educação sabe que ele não está doente.
O próprio legislador, que manda a um professor que fica preso no elevador apresentar um atestado médico, também sabe que o professor não está doente.
Ora, num país em que isto acontece, para além do despertador que não toca, do elevador parado e da camisa vomitada, é o próprio país que está doente.
Um país assim, onde a mentira é legislada, só pode mesmo ser um país doente.
Vamos lá ver, a mentira em si não é patológica. Até pode ser racional, útil e eficaz em certas ocasiões. O que já será patológico é o desejo que temos de sermos enganados ou a capacidade para fingirmos que a mentira é verdade.
Lá nesse aspecto somos um bom exemplo do que dizia Goebbels: uma mentira várias vezes repetida transforma-se numa verdade. Já Aristóteles percebia uma coisa muito engraçada: quando vamos ao teatro, vamos com o desejo e uma predisposição para sermos enganados.
Mas isso é normal. Sabemos bem, depois de termos chorado baba e ranho a ver o 'ET', que este é um boneco e que temos de poupar a baba e o ranho para outras ocasiões. O problema é que em Portugal a ficção se confunde com a realidade. Portugal é ele próprio uma produção fictícia, provavelmente mesmo desde D. Afonso Henriques, que Deus me perdoe.
A começar pela política. Os nossos políticos são descaradamente mentirosos. Só que ninguém leva a mal porque já estamos habituados.
Aliás, em Portugal é-se penalizado por falar verdade, mesmo que seja por boas razões, o que significa que em Portugal não há boas razões para falar verdade. Se eu, num ambiente formal, disser a uma pessoa que tem uma nódoa na camisa, ela irá levar a mal. Fica ofendida se eu digo isso para a ajudar, para que possa disfarçar a nódoa e não fazer má figura. Mas ela fica zangada comigo só porque eu vi a nódoa, sabe que eu sei que tem a nódoa e porque assumi perante ela que sei que tem a nódoa e que sei que ela sabe que eu sei.
Nós, portugueses, adoramos viver enganados, iludidos e achamos normal que assim seja. Por exemplo, lemos revistas sociais e ficamos derretidos (não falo do cérebro, mas de um plano emocional) ao vermos casais felicíssimos e com vidas de sonho.
Pronto, sabemos que aquilo é tudo mentira, que muitos deles divorciam-se ao fim de três meses e que outros vivem um alcoolismo disfarçado. Mas adoramos fingir que aquilo é tudo verdade.
Somos pobres, mas vivemos como os alemães e os franceses. Somos ignorantes e culturalmente miseráveis, mas somos doutores e engenheiros. Fazemos malabarismos e contorcionismos financeiros, mas vamos passar férias a Fortaleza. Fazemos estádios caríssimos para dois ou três jogos em 15 dias, temos auto-estradas modernas e europeias, mas para ver passar, a seu lado, entulho, lixo, mato por limpar, eucaliptos, floresta queimada, barracões com chapas de zinco, casas horríveis e fábricas desactivadas.
Portugal mente compulsivamente. Mente perante si próprio e mente perante o mundo.
Claro que não é um professor que falta à vigilância de um exame por ficar preso no elevador que precisa de um atestado médico. É Portugal que precisa, antes que comece a vomitar sobre si próprio.»
Meu comentário:
Desde que nasci que sempre ouvi aquela frase-modelo, que normalmente anda na boca dos descontentes do estado da Nação: “o povo tem o que merece!”. A questão é simples: desde que a Inquisição se instalou em Portugal, por volta de 1536, com o beneplácito dos poderes seculares, que fomos perdendo aquela força anímica que tinha feito descer à rua a arraia miúda de que falava Fernão Lopes, que pôs à frente da nação a dinastia de Aviz. A partir daí, corridos quase 500 anos, e até ao dia em que caiu a ditadura salazarista, fomo-nos transformando num “povo de brandos costumes”, temente dos poderes do céu e da terra, por eles tiranizado, explorado, amachucado, espremido, e com isso fomos perdendo a capacidade de reagir. Passámos a viver, melhor, a sobreviver, tentando contornar esses poderes, coexistindo com eles de forma apagada, vivendo e deixando viver, usando a astúcia, tentando não ser molestados, e para isso era preciso adquirir poder de adaptação, recorrer a expedientes, e se necessário saber mentir, muito e bem. Desde o berço era-nos ensinado que revoltar-se, contestar ou indignar-se, era o caminho certo para arranjar problemas, ao passo que a invisibilidade e a mediocridade eram a atitude ideal para não se ser atormentado. A Revolução de Abril abriu muitas portas e janelas, arejou o país, mas também foram muitos os que rapidamente se empenharam em fechá-las, não para um regresso ao passado, mas para criar uma democracia virtual, em que, lá no fundo, continuavam a prevalecer os ancestrais moldes de comportamento social, nos quais a intrujice e os expedientes têm um papel dominante.
Em 1878 havia no país 80% de analfabetos, ao passo que hoje, 2010, o número ainda ronda os 9% , isto sem falarmos da iliteracia, isto é, pessoas que sabendo ler e escrever, habitualmente não fazem uso da leitura e da escrita. Já nem falo dos esquemas facilitistas e mirabolantes que os governos adoptam para melhorar as estatísticas e camuflar a realidade. A verdade, tal como o azeite, acaba sempre por vir à superfície, exibindo o nosso baixo grau de aptidões, isto sem falar de nível cultural. Tivesse o povo um sistema educativo bem estruturado, baseado em conhecimento e na cidadania, e minimamente adequado ao estado civilizacional do Século XXI, e os cidadãos portugueses já não comeriam gato por lebre, já não se deixariam enganar pelo primeiro político ambicioso e mal formado, seja ele engenheiro incompleto ou vendedor de unguentos, que lhe aparecesse pela frente, e já o povo não seria tão ingenuamente enganado. Não faria genuflexões perante os juízes que passam metade do mês em caçadas e tertúlias jantaristas, e que quando se sentam para redigir sentenças deviam previamente soprar no balão. De juízes que fazem passagens pela política e outras áreas (como o futebol ou a PGR), para simularem um ar de credibilidade, mas encobrindo a corrupção e outras actividades, mais ou menos controversas. Que devia haver regras tão exigentes (e para cumprir), tanto para o trabalhador como para o patrão, com este último a ser impossibilitado de declarar falência aqui, ao mesmo tempo que abre nova empresa no distrito ao lado. Que devia ser obrigatória a revelação dos rendimentos e a assinatura de uma declaração de interesses, para quem vai ocupar um lugar público, para servir a comunidade e não para dele tirar proveito, sob pena de ter que abdicar daquela função. Que as leis produzidas, fossem provadas e comprovadas, e não redigidas com tantas lacunas e escapatórias, que apenas servem para inocentar os malfeitores do costume, continuando a que não seja feita justiça, logo, incentivando ao crime. Que a justiça seja acessível, tanto ao rico como ao pobre. Que o uso e abuso da mentira, e a sua propagação, fosse duramente penalizada.
Quando a deputada Inês de Medeiros, a tal que disse que morava em Lisboa, mas que afinal tem uma casa em Paris, e o país por isso lhe paga, todas as semanas, uma viagem de avião de ida e volta, essa deputada, dizia eu, numa entrevista concedida à revista SÁBADO disse, para que todo o país a ouvisse, que “não sei se mentiu ou não mentiu, mas, se mentiu, nem acho isso muito grave”, isto referindo-se às mentiras que o primeiro-ministro tinha dito, a propósito do negócio PT/TVI (fora as outras que tem produzido, de forma continuada), acho que está tudo dito e não é necessário acrescentar mais nada. Gente desta espécie, era perfeitamente dispensável, naquele que é o lugar onde se produzem as leis que regem o país. Enquanto eles por lá andarem, num apressado vai-e-vem entre Lisboa e Paris, com eles se continuará a eleger a mentira como uma falta nada grave, quase uma virtude, e por via deles assim se vai continuando a estruturar a mentalidade e o modo de vida do português, ambas recheadas de mentiras, e destinadas a manter de rastos um país mentiroso, e o povo a continuar a ter o que merece.