.
Porque concordo com a perspicaz análise e desmontagem que é feita da personalidade, do tão aplaudido quanto odiado primeiro-ministro-VEDETA Pinto de Sousa, também conhecido por José Sócrates, reproduzo abaixo o artigo da autoria de José Pacheco Pereira, publicado no jornal Público de 20 de Junho de 2009, e depois no blog ABRUPTO, em http://abrupto.blogspot.com/.
"ENTRE O "ANIMAL FEROZ" E MANSO CORDEIRO"
"O José Sócrates manso, humilde, penitente, da entrevista que deu à SIC, e que a jornalista permitiu com demasiada complacência, é um mau produto de marketing que não durará muito. É interessante até ver como uma série de fugas relatadas no Diário de Notícias, raras por serem da cozinha interior da política "socrática", foram imediatamente feitas para distanciar a agência de comunicação que trabalha com ele, a LPM, daquilo que foi atribuído a um trabalho amador dos seus assessores: fazer do "animal feroz" um manso cordeiro. Não sei se foi assim porque, dada a natureza profissional de todas estas fugas e contrafugas, não acredito numa só linha sobre a realidade do que relatam, embora me interesse o que pretendem sugerir. Eu sei que é sugestio falsi, mas tem interesse saber que fast food estão a pôr no meu prato mediático. Neste mundo de ficções, que é hoje a política-espectáculo, tem que se ter, como um centípede, 99 pés atrás e só um à frente, para balanço.
Seja como for, os conselheiros e a agência dir-lhe-ão em breve que a coisa não pega e é contraproducente, pelo que voltará de novo o "animal feroz" que é mais compatível com o inner self do actor que todos conhecemos como José Sócrates, actual primeiro-ministro de Portugal. Haverá retoques na forma de ferocidade do "animal", mas será por aí que a coisa vai ir, uma vez estabilizada uma estratégia de marketing, já que a anterior ruiu no dia das eleições para o Parlamento Europeu. Seja dito, de passagem, que entre os grandes perdedores dessa noite estão as agências de comunicação, aquelas que tratam os políticos como "marcas", e os políticos que assim se deixam reduzir a um produto de compra e venda.
Voltando a José Sócrates, a personagem interessa por duas razões. Uma, é que a bipolarização que existe de facto em Portugal não é entre o PS e o PSD, nem entre a esquerda e a direita, é a favor ou contra José Sócrates. A segunda razão é porque ele é, em muitos aspectos, um produto típico do tempo. Não é único - as mesmas incubadoras que o produziram, as "jotas" partidárias, agora complementadas pelas carreiras políticas de blogue, Facebook e Twitter (com uma enorme capacidade de reproduzirem na Rede os piores defeitos das políticas das "jotas"), estão a gerar outros produtos do mesmo tipo. Gente ambiciosa, muito ambiciosa, com pouca "virtude", com poucas leituras e muita televisão e computador, deslumbrada pelos gadgets, movendo-se com à-vontade entre jornalistas e empresários, sem "vida" nem biografia e pensando a política como pouco mais do que uma forma elaborada de marketing. Depois, como estamos em Portugal, o grosso do "trabalho" está na "gestão da carreira", em milhares de telefonemas, muita intriga e "imagem". Depois, há uns melhores do que outros e Sócrates, dentro da espécie, aprendeu melhor e com mais eficácia. E teve sorte, apareceu-lhe uma causa, a co-incineração, com todas as vantagens de lhe ter permitido a suprema ambição deste tipo de políticos: "ter protagonismo".
O caso da co-incineração foi fundamental na educação política do primeiro-ministro, penso até que o mais decisivo nessa educação. José Sócrates percebeu que fazer a ficção da autoridade, ser actor da autoridade, podia dividir e irritar, mas que o lado que estimava a exibição da força e da determinação era sempre muito maior do que o que o criticava pela obstinação. Trouxe essa lição para o início do seu Governo com sucesso e depois estragou tudo. Não porque não "dialogasse", mas sim porque deitou fora o menino e a água do banho, não percebeu que uma reforma precisa de aliados no interior de qualquer grupo profissional, mesmo que minoritários, e ele descambou no populismo fácil de colocar grupos profissionais uns contra os outros. Tornou-os, mesmo quando ainda não o eram, em corporações entrincheiradas e depois, quando percebeu os custos, recuou. Fez a ficção das reformas, mas não era, nem é, um verdadeiro reformista.
Medeiros Ferreira chamou-lhe "pagão" e, num certo sentido, tem razão porque estas personagens representam uma forma moderna de "paganismo". José Sócrates tem semelhanças com algumas personagens menores da antiguidade, que em certos períodos da história de Roma tiveram o seu papel: Sejano, por exemplo, ou alguns imperadores pretorianos. Se olharmos para Sejano, o meu primeiro exemplo, percebe-se melhor. O verdadeiro criador da Guarda Pretoriana como força política, o homem que governava Roma com brutalidade, enquanto Tibério se entretinha em Capri a nadar com os seus "golfinhos", acabou mal, mas mandou muito enquanto pôde. O "paganismo" era no fundo pouco mais do que crueldade, alguma capacidade de organização (uma qualidade rara em Portugal), uma falta completa de escrúpulos e um certo instinto de sobrevivência e intriga. Em Roma essa intriga permanente fazia-se com mulheres, filhos, família e veneno real, hoje faz-se com jornais, blogues e veneno virtual. Sejano também era na época uma espécie de "animal feroz", só que não havia assessores de marketing para o amansar e acabou executado mais a família às ordens de Tibério.
Há também algo de artificial no Sócrates "animal feroz", algo de construído pelo próprio, depois ampliado pela máquina de propaganda gigantesca que ninguém antes dele tinha criado à volta de um primeiro-ministro. A verdade é que este "animal feroz" mostrou-se muitas vezes bem menos "feroz" do que se pensa. Sempre que via os votos a voarem pela janela e a perspectiva de sarilhos a sério, a ferocidade diminuía exponencialmente. Foi o caso da defenestração do ministro da Saúde e da actuação do Governo face aos pescadores bloqueando as lotas e os camionistas bloqueando o país. Na verdade, mesmo o argumento de que Sócrates sempre apoiou a ministra da Educação, contra a luta dos professores, que assumiu uma dimensão de guerra total e que certamente lhe acabou por retirar muitos votos, não colhe. Sócrates convenceu-se, e bem, de que, enquanto contra o ministro da Saúde estava o "povo" e não os médicos, contra a ministra da Educação estavam os professores mas não o "povo". Por isso, afastou o primeiro e deu cobertura política à segunda. Só que não percebeu que no contexto de um crescendo de conflitualidade, que ia muito para além dos professores, a irritação acabou por funcionar num sistema de vasos comunicantes e, no voto, o "povo" acabou por aceitar que professores na rua era bom porque era "contra Sócrates". E contra Sócrates, valia tudo.
O que aconteceu, e torna qualquer governo de José Sócrates a mais instável das soluções políticas, é que foi à sua volta, ou da sua persona, ou da sua máscara, ou da sua personagem, que o país se polarizou. Mais de metade do país é contra Sócrates e uma parte mais pequena é a favor, mas ambas estão muito radicalizadas. Na verdade, a que é contra Sócrates está ainda mais radicalizada, porque na outra há uma confluência poderosa de fãs absolutos do primeiro-ministro, com a habitual conjugação de interesses à volta do poder, e beneficiam de uma maior homogeneidade do que os do lado do contra.
Ora é por ser exactamente assim que há "ingovernabilidade", não porque possam não existir condições institucionais para sustentar um governo. Elas são uma vantagem potencial para a governabilidade, mas estão longe de ser suficientes, em particular se uma parte importante dos portugueses votar pelo protesto (contra Sócrates) no Bloco ou no PCP ou no voto branco, ou se abstiver como atitude de negação. É por isso que poucas soluções governativas seriam mais instáveis e conflituosas que um novo governo PS com ou sem maioria absoluta. E é também por isso que, se não existirem condições de alternância governativa, a instabilidade gerada por um governo PS pode levar a um ciclo de sucessivas eleições legislativas, ao modo italiano.
Enquanto for Sócrates a dominar a cena, a vida política portuguesa permanecerá muito conflitual e instável, não serão possíveis reformas, nem as políticas consistentes e difíceis que a crise exige. E não há mansidão programada que resulte para amainar uma opinião pública que, pura e simplesmente, não só não acredita na personagem, como a sua mera presença a irrita e muito mais a irritará se lhe puserem à frente um híbrido de "manso-feroz".
Por isso, Sócrates está condenado à ferocidade, que representará sempre melhor porque é-lhe mais fácil puxar pelo ego nesse cenário do que numa humildade em que ele é um erro de casting. Só que o "animal feroz" parte cada vez mais o país em dois e é gerador de instabilidade por si só.
Vamos conhecer tempos interessantes, como na maldição chinesa."