segunda-feira, maio 08, 2006

Heróis do Mar


As imagens que se seguem, recolhidas por um fotógrafo anónimo de Ílhavo (talvez não passasse de um simples tripulante), foram obtidas a bordo do lugre bacalhoeiro "LABRADOR", um veleiro de três mastros, construído em madeira, durante a campanha bacalhoeira de 1939, nos bancos pesqueiros dos mares gelados da Nova Escócia, Terra Nova, St. Pierre et Miquelon e Groenlândia. Era no tempo em que os pescadores portugueses, arriscando a vida todos os dias, durante 16 a 20 horas, ao longo de 6 intermináveis meses, entre Abril e Setembro, levavam a cabo a faina, utilizando a pesca de mão à linha, munida dum único anzol, nos frágeis “dóris”, pequenas embarcações individuais de fundo chato. O lugre bacalhoeiro funcionava como base dos “dóris”, alojamento dos marinheiros-pescadores e fábrica de preparação do pescado, que incluía as operações de descabeçamento, do escalo (corte longitudinal do peixe) e da salga. À custa de saudades do lar, da dureza da labuta, de ordenados miseráveis, da alimentação de presidiário e das condições de trabalho infra-humanas, os pescadores portugueses foram os responsáveis, para que o "fiel amigo", também conhecido por “bacalhau a pataco" (uma imagem de marca do salazarismo), não faltasse à mesa dos portugueses. Muitos desses heróis do mar, vítimas de acidentes e doenças, repousam hoje no semi-abandonado talhão dos portugueses, do cemitério St. John's, na Terra Nova, ou em Hollsteinborg, porto da costa oeste da Groenlândia.


O “Labrador” ancorado na Terra Nova

O início da pesca do bacalhau, nos distantes bancos pesqueiros da Terra Nova, data do reinado de D.Manuel I, entre 1465 e 1521, andou intimamente associado às navegações portuguesas no Atlântico Norte, e aconteceu na sequência das grandes carências alimentares dos povos europeus, que passaram a ver no bacalhau, que tanto podia ser consumido na sua forma salgada, fumada ou seca ao sol, uma opção saborosa e nutritiva. É assim que os navegadores João Fernandes Lavrador (que deu o seu nome à península do Labrador e ao lugre desta reportagem) e Pedro de Barcelos, obtêm licença régia para procurar terras no Atlântico Norte, tendo João Álvares Fagundes explorado a costa norte da Terra Nova, vindo a descobrir o golfo de S. Lourenço. A sistemática exploração destes ricos bancos de pescado, com o aumento progressivo do número de naus que demandavam estas paragens, estendeu-se até 1580, altura em que Portugal perdeu a sua independência. Durante a dominação filipina, entre 1580 e 1640, a actividade piscatória na Terra Nova decaiu até quase se extinguir, tendo-se então recorrido à importação do bacalhau, para satisfazer as necessidades do país.
O regresso em força aos mares gelados da Terra Nova, para a pesca do bacalhau, só volta a acontecer no século XIX, cerca de 1830, com a criação de incentivos e a construção de embarcações vocacionadas para a pesca longínqua.
Já nos anos 30 do passado século XX, a frota bacalhoeira envolvia perto de 70 navios, com tripulações que, na totalidade, rondavam entre 6.500 e 7.000 homens, distribuídos pelos vários mesteres e funções.

O cozinheiro do “Labrador” e o seu “Figurão”


O lugre “Labrador” enfrenta uma tempestade no mar alto. No convés, podem ver-se os “dóris”, empilhados uns dentro dos outros, para economizar espaço.

Mesmo no verão, os icebergues, massas de gelo de enormes dimensões, que se desprendem das calotas polares, flutuando à deriva, são comuns no Atlântico Norte, constituindo um perigo permanente para a navegação e para a faina da pesca.

Pescadores nos “dóris”, na faina da pesca, embebidos num silêncio feito de mar e céu, isto quando não se abatiam os traiçoeiros nevoeiros, que deixavam o pescador cosido com a mais inóspita das solidões. Nessas alturas, apenas o toque das sinetas e sirenes dos lugres, fornecia a orientação mínima para os pescadores, quase às cegas, regressarem ao seu navio-base.

Um alabote, peixe do Atlântico Norte, que pode ter até 3 metros de comprimento e 300 quilos de peso, capturado pelos pescadores do “Labrador”.

Meninos esquimós visitam o “Labrador”.

Raparigas esquimós em visita ao “Labrador”.

Aquele ano de 1939, em que nasceu esta exígua reportagem fotográfica, foi um ano assaz difícil, para o mundo em geral. Ficou marcado pelo início da Segunda Guerra Mundial, com a ocupação da Checoslováquia e a invasão da Polónia, pelos exércitos da Alemanha nazi. Em Portugal, com Salazar a viver as euforias do Estado Novo, a refinar os instrumentos repressivos do regime, a isolar o país, ensaiando uma primeira versão da doutrina do “orgulhosamente sós”, levou a que o ditador se acantonasse numa fingida neutralidade, ajudando sub-repticiamente a Alemanha de Hitler com a mão direita, exportando tungsténio, metal essencial para a indústria de armamento, enquanto que com a esquerda ia concedendo facilidades à Inglaterra, nosso secular aliado. Até ao termo do conflito em 1945, as campanhas da pesca do bacalhau foram tentando atenuar as grandes carências alimentares que afectaram a população portuguesa, provocadas pela penúria e os racionamentos de géneros. É nessa altura que todos os navios da frota bacalhoeira são pintados de branco, ostentando os símbolos nacionais bem à vista, a fim de serem facilmente reconhecidos por todos os beligerantes, mas sobretudo pelos submarinos alemães que operavam no Atlântico, torpedeando os comboios de navios aliados. A partir daí a frota portuguesa passa a ser mundialmente conhecida pelo nome de Frota Branca.
Depois do 25 de Abril de 1975, este tipo de pesca acabou por se extinguir, motivado essencialmente pelo alargamento das águas territoriais do Canadá e da Dinamarca para 200 milhas, com a consequente fixação de quotas máximas de pesca para frotas estrangeiras. Era também chegada a altura de os grandes veleiros pesqueiros serem reformados, cedendo o lugar aos modernos arrastões, bem equipados e recheados de tecnologias de detecção e captura dos cardumes. Portugal que continuava a privilegiar a singela pesca à linha (menos agressiva do ambiente e mais protectora da espécie), relativamente à pesca do arrasto (mais predadora do pescado, logo causadora da progressiva escassez da espécie), não acompanhou a renovação tecnológica e acabou por ser incapaz de competir com as frotas pesqueiras de outros países, abandonando a faina, onde antes havido sido mestre e soberano.

terça-feira, maio 02, 2006

Registo

Estas imagens são fotogramas do filme MARIA PAPOILA, realizado por Leitão de Barros, corriam os anos de 1936/37. Referem-se a um edifício situado no cruzamento da Avenida Rovisco Pais com a Avenida Manuel da Maia, naquele tempo, paredes-meias com um novíssimo Instituto Superior Técnico, acabado de sair das pranchetas para o terreno, numa zona que era genericamente conhecida por “Avenidas Novas”. No filme desempenha o papel de uma respeitável e imaculada Pensão Lisbonense, quando os automóveis ainda eram uma raridade. Foi na mesma época em que Salazar já punha e dispunha, dando corpo à sua ideia de um país sob a batuta de “Deus, Pátria e Família”, ao passo que Francisco Franco se sublevava contra a jovem república do país vizinho, dando início à guerra civil de Espanha, a grande ceifeira de tantas vidas e esperanças.

Hoje, 70 anos depois, o mesmo edifício continua de pé, mas em estado deplorável, a esboroar-se, com janelas sem vidraças, como olhos vazados, e andares entaipados para evitar visitas indesejáveis. É mais um destroço a navegar neste século XXI, como tantos outros por essa Lisboa fora, e por isso, um sério candidato para a rodagem de filmes de terror. Heroicamente, e apesar da decadência, continua a exibir a mesma porta metálica e o mesmo número de polícia.

sábado, abril 29, 2006

A Pérola


Era uma vez uma ilha chamada Madeira, também conhecida por Pérola do Atlântico, que era habitada por gente simples e trabalhadora, mas governada por uma criatura abjecta, um tal chamado Jardim, que ficava a meio caminho entre o director de uma colónia penal, com tiques de soba africano, e um desenho animado, astuto e ordinário, como um padrinho siciliano. Chegou ao poder com o 25 de Abril, porém, quanto a comemorar esse dia, nunca! Assim, para dar algumas alegrias ao pobre povo, era ele que animava, entre suores, fantochadas, atoardas e copos de vinho a martelo, os comícios do Chão da Lagoa, como se estivesse no Circo Máximo a distribuir pão e patacoadas, ou então, mascarado de palhaço rico, desfilava pelas ruas do Funchal para ir enterrar o Carnaval. Porém, comemorar o 25 de Abril, isso nem pensar! Quanto ao turismo, dizia que eram todos bem vindos, menos, por razões de higiene e segurança, essa “corja” dos partidos de esquerda, esses “gajos” do Tribunal Constitucional que pensavam que podiam dar ordens à Madeira, mais os “filhos da puta” dos jornalistas que não são imparciais, não respeitam o poder instituído e estão convencidos que sabem fazer jornalismo. E quanto a essa coisa do 25 de Abril, não passava de uma maçada, uma grande chatice. Quando chegava essa data mandava fechar as portas do Parlamento Regional, e quanto a comemorações, festejem onde quiserem, menos aqui. Era só o que faltava! Que é como quem diz: – isto é uma democracia, mas quem manda aqui sou eu. Para manter a ilha a flutuar, era ele que entre um chorrilho de impropérios, ladeado pela sua corte, um punhado de “grunhos” e homens de mão, exigia de dedo em riste, que os “cubanos do Contenente” lhe enviassem mais uns quantos contentores de dinheiro, para superar os problemas da insularidade, da pobreza, e para ele poder continuar a falar grosso. Quanto a comemorar o 25 de Abril, nem pouco mais ou menos, ou melhor dizendo, jamais! Na Madeira, estando lá ele, o 25 de Abril não era preciso para nada!
Apenas os distraídos continuam a chamar a este paraíso, mascarado de inferno, a Pérola do Atlântico. Já lá vão 32 anos, o 25 de Abril ainda não chegou à Madeira, mas quando lá chegar, tenho a certeza que vai ser uma festa.

quinta-feira, abril 27, 2006

Sapateiros a Tocarem Rabecão


Este mês de Abril continua recheado de surpresas, nem todas agradáveis. A UGT (União Geral de Trabalhadores) veio até à comunicação social para nos dizer que os dias de gozo de “ponte” deveriam ser descontados nas férias dos trabalhadores, a fim de minimizar os seus efeitos negativos sobre a produtividade do país. Diz a mesma UGT que não irá tomar qualquer iniciativa em prol daquela sua sugestão (seria um escândalo se o fizesse), deixando esse papel às associações patronais, em sede de concertação social. Fica por explicar qual a intenção da central sindical, avançando com a sugestão de tal medida, tão original quanto desenquadrada das suas habituais preocupações, competências e vocação. Não se percebe mesmo este propósito de querer “meter a foice em seara alheia”, já que as “pontes” não estão contempladas no articulado dos contratos colectivos e outras convenções laborais, sendo concedidas exclusiva e extraordinariamente pelas empresas, quando entendem fazê-lo, não sendo, portanto, matéria negociável. Assim, qualquer cidadão mais avisado, é levado a concluir que se anda a insinuar alguma abrangente conspiração, destinada a conseguir a extraordinária proeza de unir patrões e sindicatos contra os trabalhadores, confirmando que, por vezes, os inimigos surgem de onde menos se espera. Ou terá isto alguma coisa a ver com a suposta “modernidade” que o governo pretende incutir e espalhar por todo o país?
Em defesa dos interesses desses mesmos trabalhadores e da economia portuguesa, melhor seria que a UGT arrolasse entre as suas preocupações, a revisão do regime de contratos a prazo, pois a sua proliferação, além de ser um agente de instabilidade social, faz baixar perigosamente os níveis de produtividade e qualidade do trabalho.

quarta-feira, abril 26, 2006

As Vozes e o Silêncio


Os discursos pronunciados nas cerimónias evocativas do 25 de Abril transformaram-se em tiradas enfáticas, recheadas de encómios, bem emolduradas e regadas com brindes à democracia, mais uns quantos choradinhos dos costume, a explorar os temas que já conhecemos de cor. Tornaram-se litanias onde os políticos enunciam os males que nos afligem, desde as dificuldades económicas até à exclusão social, passando pelas desigualdades e o empobrecimento em geral, como se fossem outros que não eles, que nos outros dias do ano, se entregam à tarefa de demolir o que foi edificado de lá para cá, entregando o país às garras da penúria. Melhor seria que tentassem confessar-se e redimir-se dos pecados, por não serem o que parecem e por praticarem o inverso do que andaram a prometer. Ou então, que guardassem silêncio.

segunda-feira, abril 24, 2006

Liberdade Reconquistada




Já lá vão 32 anos, quando risquei esta ilustração para um boletim partidário. Viviam-se tempos de libertação e de ajuste de contas com o colonialismo, o autoritarismo, a repressão e a mordaça de um Estado velho, que arvorando-se em “Novo” só para alguns, converteu o país numa grande penitenciária a céu aberto para todos os outros. Hoje, quando são reabilitados despotismos e outras variantes de exploração humana, incauta ou dissimuladamente apelidados de modernidade, convém estar atento, assentar ideias e não deixar que nos comam as papas na cabeça.

sábado, abril 22, 2006

Feedback (*)


(*) Em português significa “reacção”.

Algumas pessoas discordaram das ideias e considerações que vinculei no meu artigo “Mercenários”, dizendo-me que se a intenção era ensaiar um cenário de ficção científica, ainda vá lá, mas que se a finalidade era outra, estava a exagerar e a alimentar as teorias conspirativas que andam à solta por aí. Pois bem, seja ficção ou conspiração, o que é um facto é que o nosso presidente da República, Aníbal Cavaco Silva, durante uma visita às tropas portuguesas estacionadas na Bósnia, no seu papel de comandante-chefe, e metido dentro de um dolman camuflado, sempre económico em palavras e ideias fracturantes, disparou no dia 20 de Abril de 2006, com todas as letras e para quem o quis ouvir, que “o envio de tropas portuguesas para o estrangeiro, longe de ser um encargo para o país, era sobretudo um investimento”. Arrisco-me a fazer uma pergunta, sabendo antecipadamente que ele não vai responder: Investimento em quê, porquê e para quê? O tempo encarregar-se-á de tirar as dúvidas.

quinta-feira, abril 20, 2006

Mercenários


É habitual argumentar-se que os pequenos estados não possuem recursos suficientes para manterem umas forças armadas baseadas no serviço militar obrigatório, no entanto, esse argumento não passa de um ardil, já que esses recursos acabam sempre por aparecer, para financiarem forças armadas assentes no profissionalismo, por sinal bem mais dispendiosas que as outras, mas na opinião de alguns sábios, com grandes e notórias vantagens. Os mercenários não precisam de possuir sentimentos patrióticos para se sentirem motivados (o dinheiro é um óptimo substituto), não têm comportamentos de tropa fandanga, oferecem garantias de lealdade ao patrão, desde que aquele traga os pagamentos em dia, limitam-se a cumprir ordens e não costumam questionar se vão entrar numa guerra boa ou má. Na verdade, o que se passa é que o poder, a partir dos anos 70 do século passado, passou a desconfiar dos militares milicianos e considera desaconselhável que qualquer pessoa comum tenha acesso facilitado às armas. Os cidadãos foram feitos para trabalhar, tratar da família, ir ao futebol e pagar impostos, e não para andarem a brincar aos soldados, com a agravante de por obra de algum descontentamento generalizado, lhes poder passar pela cabeça a ideia de congeminar e levar a cabo alguma revolução. Considerados impensáveis nos novos tempos, porque as pessoas vão perdendo o hábito de reclamar, o Movimento dos Capitães e a Revolução do 25 de Abril de 1974 em Portugal, foram impulsos nascidos no seio da tropa à moda antiga, e justamente apropriados pelo povo. Aquela aliança entre o povo e os militares, foi coisa que não deixou muitas saudades em certos sectores, vigorando ainda hoje uma acérrima hostilidade para com aquela transitória coligação, e os políticos, aconselhados por quem não quer voltar a perder poder e privilégios, e interessados em manter boas e estreitas relações com os donos do dinheiro, acharam por bem não voltar a correr riscos, mudando o estatuto da tropa.
Assim, o programa apresenta-se claro. Para novos tipos de guerra, exige-se um novo tipo de combatentes. Como não é para já a solução dos soldados robotizados, primeiro profissionalizam-se as forças armadas, depois passa-se à fase de internacionalização, com o país “A” a poder passar a contratar os serviços das forças armadas do país “B”, para tratar de uma questiúncula qualquer no país “C”, e finalmente, porque estamos mergulhados em economias de mercado, e em tempos de globalização a soberania deixou de ter sentido, passando também a ser objecto de negócio, avança-se para a privatização das forças armadas, tal como já se privatizou a saúde, a educação e outros sectores públicos.
Provavelmente, mais coisa menos coisa, será assim que as coisas vão acontecer.

quarta-feira, abril 19, 2006

Coincidências e Maquinações


As pessoas que pronunciaram ou escreveram as frases que se transcrevem a seguir, sabiam o que diziam, uns porque foram ou são gente muito íntima do poder, outros porque estão bem informados e conhecem os mecanismos e labirintos desse mesmo poder. Por isso, se é verdade que nem tudo o que acontece nos meandros da política pode ser classificado como conspiração, também é certo que são poucos os factos que podem ser considerados meras coincidências. Quando um ministro nos vem falar ao coração, dizendo que há que aceitar uma medida impopular, reconhecendo-a como dolorosa, porém necessária para se alcançar um hipotético benefício futuro, o mais certo é estar a tentar obter o nosso consentimento, para algo de que não iremos colher qualquer proveito, além de que o verdadeiro beneficiário irá ser outro que não nós.
Quando uma empresa declara falência e lança no desemprego os muitos que lá trabalham, é quase certo que antes disso, alguém andou a preparar o terreno, apropriando-se de teres e haveres, para depois bater em retirada no momento certo. Quando um país entra em guerra, é certo que vem aí uma grande calamidade para muita gente, mas em contrapartida vai ser um grande maná para os poucos do costume. Ora bem! Está na altura de deixar para trás a idade da inocência, da ingenuidade e do desconhecimento. E também o pendor para a resignação. Ouçamos o que têm para dizer os meus convidados!

O homem prudente deve seguir sempre as vias traçadas pelos grandes personagens.

Toda acção é orientada em termos do fim que se procura atingir.

Todos compreendem como é digno de encómios um príncipe quando cumpre a sua palavra e vive com integridade e não com astúcia. No entanto, a experiência de nossos dias mostra haverem realizado grandes coisas os príncipes que, pouco caso fazendo da palavra dada e sabendo com astúcia iludir os homens, acabaram triunfando dos que tinham por norma de proceder a lealdade.

Saiba-se que existem dois modos de combater: um com as leis, outro com a força. O primeiro é próprio do homem, o segundo dos animais. Não sendo, porém, muitas vezes suficiente o primeiro, convém recorrer ao segundo. Por conseguinte, a um príncipe é mister saber comportar-se como homem e como animal (...)

Tendo, portanto, necessidade de proceder como animal, deve um príncipe adoptar a índole ao mesmo tempo do leão e da raposa; porque o leão não sabe fugir das armadilhas e a raposa não sabe defender-se dos lobos. Assim, cumpre ser raposa para conhecer as armadilhas e leão para amedrontar os lobos. Quem se contenta de ser leão demonstra não conhecer o assunto.

Um príncipe sábio não pode, pois, nem deve manter-se fiel às suas promessas quando, extinta a causa que o levou a fazê-las, o cumprimento delas traz-lhe prejuízo Este preceito não seria bom se os homens fossem todos bons. Como, porém, são maus e, por isso mesmo, faltariam à palavra que acaso nos dessem, nada impede venhamos nós a faltar também à nossa (...)

Quando não há possibilidade de alterar o curso das acções dos homens e, sobretudo, dos príncipes, procura-se distinguir sempre o fim a que eles tendem.

Busque, pois, um príncipe triunfar das dificuldades e manter o Estado que os meios para isso nunca deixarão de ser julgados honrosos, e todos os aplaudirão. Na verdade, o vulgo sempre se deixa seduzir pelas aparências e pelos resultados.
Nicolau Maquiavel – Estadista e escritor florentino do século XVI. Extractos da sua obra “O Príncipe”, considerado um tratado de ciência política.

Uma verdade insignificante pode ser eclipsada por uma falsidade emocionante.
Aldous Huxley – Escritor inglês, autor do romance Brave New World, publicado em 1932.

Em política nada acontece por acaso. Cada vez que um acontecimento surge, podemos estar seguros que foi preparado por alguém para ser levado a cabo dessa maneira.
Franklin Delano Roosevelt - Presidente dos Estados Unidos da América entre 1933 e 1945.

A humanidade está dividida em três grupos: Há um pequeno grupo de pessoas que concebe e produz acontecimentos, depois um grupo um pouco maior que assegura a execução e observa os resultados, e finalmente um grupo largamente maioritário que ignora o que na realidade está a acontecer.
Nicholas Murray Butler - Presidente da Pilgrim Society, membro da Carnegie, membro do CFR (Council on Foreign Relations).

Iremos ter um governo mundial, quer queiramos ou não. A única questão que falta saber é se será imposto ou consentido.
Paul Warburg - Financeiro e membro do CFR (Council on Foreign Relations).

O povo francês desconhece, mas a verdade é que estamos em guerra com os E.U.A.. É uma guerra permanente, económica, uma guerra sem mortos. Efectivamente, os americanos são muito duros e vorazes, sendo sua intenção dominar o mundo, sem nada partilhar com os outros.
François Mitterrand - Político francês, num comentário feito no fim de uma entrevista, pouco antes de falecer, citado pelo
Courrier International de Abril de 2000

Quase sem nos apercebermos, estamos a viver, nos países ocidentais, de há dez anos para cá, uma mudança radical de regime político, com o advento de um novo tipo de poder, baseado nas redes económicas e financeiras. Por isso, há razões de sobra para não nos considerarmos, de todo, a viver em democracia.
A ditadura sem ditador não aspira a tomar o poder, mas sim a exercer o poder sobre aqueles que o detêm.
Viviane Forrester - Autora de várias novelas e ensaios, é crítica literária do jornal Le Monde e membro da organização Femina.

terça-feira, abril 18, 2006

Olho Mágico


A ENSIGN Selfix 16-20 que as fotos documentam, é um dos vários modelos das câmaras fotográficas de fole, que apareceram no mercado, entre 1936 e 1961. Este tipo de câmaras, começaram inicialmente a ser produzidas pela Ensign Ltd de Londres, empresa que em 1951 adoptou a denominação Ross Ensign Ltd., tendo acabado por se extinguir em 1961.
Este modelo ENSIGN Selfix 16-20 surgiu no mercado em princípios da década de 1950. É uma câmara de rolo 120, com 16 exposições em formato de 6 x 4,5 centímetros, vocacionada para amadores, logo detentora de características modestas, muito embora apresente uma esmerada construção e óptimos acabamentos cromados. O fole retráctil aloja-se num corpo metálico, que se abre na totalidade, pela parte traseira, para carregamento e remoção do rolo. Possui uma pequena janela para controlar o avanço da película, o qual é accionado manualmente, através de um rotor metálico no topo do corpo, ao lado do visor. O conjunto óptico Épsilon está equipado com uma lente Ensar Anastigmat de 75 milímetros, que permite a utilização de aberturas de diafragma entre 4.5 e 22. Aceita fotografar um objecto entre a distância de 1,5 metros e o infinito, e o disparador requer que seja previamente armado. Tem velocidades de obturador de 1/1, 1/2, 1/5, 1/10, 1/25, 1/50, 1/100, 1/300 avos de segundo, além de exposição contínua e disparador automático. Na tampa do corpo exibe dois botões, sendo um deles o disparador e o outro o desbloqueador da tampa do fole. Possui dois alvéolos para tripé, um na base do corpo e outro na tampa do fole, respectivamente para exposições em formato retrato e paisagem. Possui ainda na tampa do fole um pequeno suporte retráctil, destinado a manter a câmara erecta sobre uma superfície plana. Tem as dimensões de 90 x 120 x 110 (aberta) e 42 x 120 x 110 (fechada) milímetros, e pesa 548 gramas.
A seguir a um velho caixote Kodak da década de 1930, cuja tampa empenada deixava passar luz suficiente para inutilizar todas as fotografias, acelerando assim a sua passagem à reforma, esta foi a segunda câmara que o meu pai possuiu, comprada em Lisboa, em segunda mão, em meados dos anos 50. Um artista correeiro manufacturou-lhe um estojo em cabedal, sob especificações e modelo em cartolina concebido pelo meu pai. Andou pelas sete partidas do mundo, e na década de 1980 foi dada como perdida numa troca de bagagens, numa agitada viagem ao Cazaquistão, mas acabou por regressar à posse do dono, tanto a câmara como o respectivo rolo meio impressionado. Há perto de 15 anos que fez o último “click”.

Missal de Bolso


Este “Livro da Missa e da Confissão, com os Officios dos Domingos e Principaes Festas do Anno”, não é propriamente uma miniatura, mas ainda assim mede uns escassos 120x90x30 milímetros, o que o inclui na classe dos livros de bolso. Tem uma encadernação rígida em marfim, dois fechos do mesmo material, e a capa está ornamentada com uma cruz finamente esmaltada. Tem 635 páginas impressas em papel bíblia, com ilustrações alusivas à função, e três iluminuras. Chegou até mim, no meio de outras bagatelas, por via das heranças de devotos antepassados. Está datado de 1857, o mesmo ano em que irrompeu em Lisboa uma epidemia de febre-amarela, tendo morrido mais de 5.000 pessoas, entre perto de 17.000 contaminadas, e em que são instauradas as primeiras Sopas Económicas. Foi composto e impresso na antiga Casa Morizot, Laplace, Sanchez e Cª, Editores, 3, Rua Séguier, em Paris, sendo “uma edição feita sobre a do Prior d’Abrantes”, e foi “revista, emendada e augmentada por um Lente em Theologia, tendo sido approvada por (José) S.E.R. o Arcebispo primaz de Braga”. Já lá vão 149 anos.

sábado, abril 15, 2006

Admirável Mundo Novo (*)


(*) No original, Brave New World foi um romance publicado em 1932, da autoria do escritor inglês Aldous Huxley, onde se prenunciava uma sociedade biológica e psiquicamente manipulada, e onde os resistentes eram classificados como anomalias, destinados a viverem e serem exibidos em “reservas históricas”. O empréstimo que faço daquele título, serve apenas para legendar algumas situações preocupantes com que temos sido brindados nos últimos dias.

Como se já não bastasse a condenação do uso do preservativo, da interrupção voluntária da gravidez, do divórcio, da homossexualidade, da teologia da libertação, da leitura de José Saramago ou do “Código de Da Vinci” de Dan Brown, também agora um excesso de leitura de jornais, navegação na Internet e consumo de programas de televisão, em alternativa à leitura da Bíblia, constituem pecados de reporte obrigatório no acto da confissão. Eis, portanto, os mais recentes pecados enunciados pelo Vaticano, empenhado numa nova cruzada pontifícia, desta vez contra a sociedade do conhecimento e da informação. Não é por acaso que o cardeal Joseph Ratzinger, actual Papa Bento XVI, foi durante muitos anos o prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, herdeira directa dos obscurantistas Tribunais do Santo Ofício, o braço justiceiro da ignóbil Inquisição, a tal que até confundia ataques de epilepsia com possessão demoníaca. Agora, instalado no trono de S.Pedro, está empenhado em fazer cumprir, com rigor e determinação, a sua missão evangelizadora e rectificadora, para benefício do admirável mundo novo que se anuncia, reacendendo nos espíritos, os medos e a santa ignorância dos tempos medievais.

O senhor Van Zeller, o honorável e deplorável presidente da CIP (Confederação da Indústria Portuguesa), diz-se um homem “moderno”, adepto das “novas realidades”, da “competitividade”, inimigo do “proteccionismo parasitário e paralisante” do Estado e do modelo obsoleto, caduco e cadavérico das sociedades que tinham o primado do social. Quanto à “utopia do trabalho estável”, uma velharia do passado, é coisa a que se torna urgente fazer o funeral. Animado destes princípios, não subscreveu as novas regras de atribuição do subsídio de desemprego, e fez questão de afirmar que os cursos de formação da Segurança Social apenas servem para os desempregados, em vez de andarem a catar/arranjar trabalho, terem um pretexto para saírem de casa de manhã, e só voltarem à noite. Fala assim, talvez com saudades do que acontecia há anos atrás (pode-se recuar 40 anos ou mais), quando outros desempregados saíam de casa de manhã e nunca mais voltavam. Acções de formação, requalificação profissional e aquisição de novas competências, são expressões ausentes do seu vocabulário. Este senhor é o mensageiro de um admirável mundo prenhe de “modernidade”, empenhado em recuperar as doutrinas que elegeram o desemprego como uma força de trabalho de reserva, indispensável à satisfação das necessidades do capitalismo guloso e todo-poderoso.

Neste país em que os trabalhadores são sistematicamente acusados de serem os principais protagonistas da endémica crise económica, porque seriam absentistas, pouco produtivos e demasiado reivindicativos, deixando ilesos os patrões incumpridores, pouco dinâmicos e eficazes, com baixa iniciativa e visão empresarial, a bandalheira nacional fez questão de chegar à Assembleia da República. Indiferentes ao facto de os exemplos virem de cima, acabando os seus actos por se reflectirem nos comportamentos da sociedade, no dia 12 de Abril, da totalidade de 230 deputados, não estiveram presentes 120, provocando falta de “quórum” e inviabilizando os trabalhos parlamentares. No entanto, antes de se ausentarem para umas férias da Páscoa alargadas, muitos dos faltosos fizeram questão de assinar o livro de presenças, qual patética manobra de ocultação, para garantirem o vencimento e a reforma. O admirável mundo novo tem destas coisas: para uns há bons vencimentos, mordomias, horário mais que flexível, e uma reforma dourada ao fim de alguns anos, sem abrir a boca nem mexer uma palha, bastando levantar o braço de vez em quando, dando a ideia que estão a fazer coisas importantes para os outros, quando de facto estão a cuidar de si próprios; para outros, sejam eles gente com saber e experiência adquirida a pulso, que vai caindo nas malhas do desemprego, sejam outros que passam meia vida a respigar migalhas nos trilhos da sobrevivência, apenas a referência de que são números para alimentar as estatísticas e outras manobras evasivas, bodes expiatórios para todo o serviço, senão mesmo o papel de eternos maus do filme.

Marcar com o ferrete do anti-social, senão mesmo com a marginalização, alguns comportamentos menos ortodoxos, foi comum noutras épocas, prática que a lenta conquista e progressão dos direitos humanos acabou por banir. Não há muito tempo, ainda vigoravam disposições, que consideravam legítimo retirar às mulheres a sua pensão de viuvez, caso se suspeitasse que viviam em mancebia ou exibiam porte escandaloso. O bom senso e a humanização encarregaram-se de separar as águas, passando a reconhecer que a quebra de um dever não corta o acesso ao usufruto do direito. Ninguém pode ser privado dos seus meios de subsistência, por ter uma conduta ou comportamento socialmente reprovável, tal como alguém que tenha cometido um crime, não pode ser privado do direito de se defender.
Entretanto, a justiça portuguesa achou por bem dar um ar da sua graça, ao voltar a inscrever em alguns dos seus acórdãos, a retoma de ideias defendidas em tempos passados, e que entretanto, por força da evolução das sociedades, tinham passado à história. Entre elas conta-se o reconhecimento da legitimidade de usar (brandos) castigos corporais sobre crianças deficientes (imagine-se os que se poderão aplicar às crianças normais), que os abusos sexuais são mais graves entre homossexuais que entre heterossexuais, que o homicídio de um cônjuge poderá ser objecto de uma sentença atenuada, caso a vítima tivesse comportamento adúltero, ou que a morte de um filho, tem mais significado, valor e impacto no agregado familiar, do que se ocorrer com uma filha. Que admirável mundo novo é este, que volta a recuperar os conceitos mais retrógrados e anti-pedagógicos, que tinham na chibata e no cavalo-marinho, os instrumentos por excelência da disciplina, da educação e instrução? Que admirável mundo novo é este que julga actos reprováveis, não pelos actos em si, mas na base de preconceitos? Que admirável mundo novo é este que, em função do sexo, estabelece preços diferentes para a vida humana, uma coisa que era suposto não ter preço?

A fronteira que separa a sociedade desejável da indesejável, é bem mais ténue do que se imagina. Tem muito a ver com o instinto de sobrevivência, a capacidade que o ser humano tem para se adaptar a novos preceitos e constrangimentos, aceitando-os como bons, sem aferir nem questionar o seu significado, ignorando que são sinais negativos que vão sitiando as sociedades e cerceando os direitos humanos. Não percebe que está a ser narcotizado com ideias simples na forma, mas perversas no conteúdo, que pretensamente querem fazer crer que se está a progredir, quando na realidade se está a regredir.

domingo, abril 09, 2006

Curtas Metragens


Enquanto foi presidente da república, Jorge Sampaio tinha por costume manifestar-se, umas vezes emocionado, outras vezes preocupado, quando alguma coisa corria mal nas vielas do país ou nos becos da governação. Nos últimos dias, já regressado à sua condição de vulgar cidadão, perante a ocorrência de novos acontecimentos, neste caso o repatriamento de portugueses, emigrantes ilegais no Canadá, subiu um ponto na escala apreciativa, e declarou-se perturbado, estado que é suficiente para tirar o sono a qualquer um. Conclusão: dentro do Palácio de Belém o país é uma coisa, e cá fora é outra.

Eu não acredito, mas a justiça portuguesa acreditou. A senhora Fátima Felgueiras tem um passaporte brasileiro, que funciona como uma espécie de colete salva-vidas, caso os tribunais portugueses a voltem a “injustiçar”. É quase certo que servirá para lhe abrir as portas da liberdade, de que não prescinde, para defender a sua inocência, como costuma dizer. Sabedora disso a justiça pediu a sua devolução, porém tal não é possível, para já. Diz a senhora Fátima que se esqueceu daquele valioso passaporte, no seu refúgio brasileiro, com a precipitação do seu regresso a Portugal, coisa imperdoável numa pessoa tão calculista e bem aconselhada. Apesar disso, comprometeu-se a mandá-lo vir e a entregá-lo ao tribunal. Mesmo que fosse verdade, é sabido que enquanto o passaporte vai e vem folgam as costas. A desculpa e a promessa foram aceites como boas, não tendo sido agravadas as medidas impostas à dita senhora, arguida em vinte e tal acusações, e já com um antecedente de fuga à justiça. Aguardam-se os próximos episódios.

Com as suas 333 medidas desburocratizantes, o SIMPLEX, é no mínimo, extraordinariamente COMPLEX.

A CIDADE SUPREENDENTE é um blog que nos permite realizar uma esplêndida visita guiada à cidade do Porto, recheado como está de belas e elucidativas reportagens fotográficas. Diz o seu autor (imagino que seja fotógrafo apaixonado) que “é cada vez mais difícil fotografar, há proibições a torto e a direito. Umas fazem sentido, outras são absolutamente idiotas, sobretudo quando se trata de bens públicos” … “Acho que, frequentemente, os agentes do Estado se apropriam indevidamente das coisas públicas, confundindo a guarda com a posse.”
Pois é, o grande mal desta terra talvez seja haver tantas coisas para serem partilhadas, mas prevalecer o recurso abusivo à usucapião.

Entrei ontem no blog SABER A VERDADE, gostei e aconselho uma visita demorada. Muito embora a soma aritmética das verdades nunca chegue à VERDADE, é garantido que andará lá perto.

Há uns anos atrás conheci um intelectual que pôs termo à vida quando concluiu que se estava a travar uma guerra sem quartel, entre filósofos e psicólogos, pela possessão dos espíritos humanos, e que os segundos iriam levar a melhor sobre os primeiros.

Acho que o mundo actual está cada vez mais parecido com um grande centro comercial, em que as lojas exibem para os incautos, grandes montras com as delícias do paraíso, enquanto que os armazéns escondem um arsenal dos diabos.

Dizem que o mundo mudou, e que alguns sectores das sociedades são incapazes de assimilar certas mudanças. Mas será que o mundo mudou assim tanto, e de forma tão substancial, ou não estaremos a rever o mesmo filme contado de outra forma? Em Maio de 1968 a juventude francesa trazia a revolução para a rua e reivindicava a mudança, para sair da cepa torta. Hoje, quase quarenta anos depois, a revolta da juventude volta às ruas de França, aliada a sindicatos e partidos de esquerda, exigindo a congelação da tão apregoada e novíssima mudança, que os está a fazer regressar à velha cepa torta.

“O grave do medo não é que se tenha, mas que se sucumba ante ele”. É com pensamentos como este que o juiz Baltazar Garzón continua a viver o seu quotidiano.

Quando olho para a Guernica de Pablo Picasso lembro-me sempre que a memória é fraca e só a arte perdura.

segunda-feira, março 27, 2006

Miniaturas

A miniaturização não é apenas um fenómeno dos séculos XX e XXI. Já no século XIX se produziam missais como este, datado de 1856, ano da inauguração do primeiro troço de caminho de ferro, entre Lisboa e o Carregado, e da concessão da liberdade a todos os escravos que desembarcassem em Portugal continental, Ilhas adjacentes, Índia e Macau. Tem as modestas dimensões de 68x48x16 milímetros (compare-se com os dicionários Lilliput ou com a moeda de 2 Euros), que dava para dissimular no cano das botas ou entre os punhos de renda, encerrando 255 páginas de católica e piedosa devoção. A capa é rígida e está decorada com a figura de um doutor da igreja, embutida numa filigrânica moldura oval. Está recheado de gravuras alusivas à missa e tem a protecção de um irrepreensível fecho dourado, feito de um metal indestrutível (será latão?), da mesma estirpe da moldura da capa. Com a idade de 150 anos (chegou até mim através de várias e parcas heranças), este Manual abreviadíssimo da Missa em português (e não em provecto e obscuro latim), foi compilado pelo presbítero J.-I. Roquette, editado e impresso pelos livreiros Aillaud, Monlon & Cª., com sede na Rue S.-André-des-Arts, 47, em Paris.

domingo, março 19, 2006

A França não Dorme


Não parece, mas de tempos a tempos a França acorda. Anteontem foi a França da Revolução, da tomada da Bastilha, dos Estados Gerais, do Directório e do terror. Ontem, há quase quatro décadas atrás foi a França do Maio de 68, e hoje continua a não ser uma França qualquer: é a França que ainda há pouco rejeitou a Constituição Europeia de cariz neoliberal, e agora a França dos estudantes, aliados aos sindicatos e às forças políticas de esquerda, que fazem frente a uma legislação que quer deixar a juventude que acede ao mercado de trabalho, sujeita à mais dura e despudorada precariedade.
Voltam a despovoar-se as universidades, as ruas a transbordarem de estudantes e a contestação e propagar-se do Quartier Latin aos quatro cantos do país. Diz o governo que os contestatários não passam de um punhados de esquerdistas, de holligans e de vadios. O governo diz que está a fazer isto tudo para o bem das novas gerações, a acautelar o seu futuro, portanto, tenham paciência e muito juízo, caso contrário levam…
Porém, os franceses já perceberam que isto é o capitalismo puro e duro, guloso, desavergonhado e sem freio, a reeditar a cartilha novecentista da revolução industrial, que levantava monopólios e aferrolhava fortunas colossais, à custa da constituição de imensos exércitos de reservistas desempregados. O mundo mudou, porém, mau grado as lições do passado, o capitalismo continua igual a si próprio. E o poder político vai pelo mesmo caminho, renovando e reforçando o mesmo tipo de ligações amásias e perigosas com as gentes do capital e da finança, os tais para quem o pior dos outros é sempre o melhor para eles. Para enfrentar a revolta e o descontentamento, põem-se as polícias na rua, amanhã talvez a tropa, a tal que deixou de ser instituição nacional e passou a ser voluntária, para não dizer mercenária. E mundo continua a mudar, se calhar para pior, mas nós continuamos alegremente distraídos. A França não dorme, mas nós parece que sim. Pode faltar dinheiro para tudo e mais alguma coisa, mas nada se regateia para equipar os corpos especiais das polícias de choque, bem comidos, bem pagos, bem montados, bem couraçados, bem armados e bem treinados, para reporem uma ordem, que de democrática vai tendo cada vez menos. Temos andado distraídos, embalados nos nossos brandos costumes, mas em Portugal passa-se o mesmo que pelo resto da Europa e do Mundo. Durante o Euro 2004 já tivemos uma demonstração do super-equipamento das polícias anti-motim. Não faltará muito tempo que experimentemos no lombo, o que de lá até cá, veio reforçar as “forças da ordem”. A bem da ordem e da nação.

Autoridade à Portuguesa


Francisco Van Zeller, presidente da Confederação da Indústria Portuguesa, disse com todas as letras:
- Adoro governos autoritários, não me afligem absolutamente nada.
Quem assim fala, é fácil perceber de que lado está, e não é, certamente, do lado da democracia. Quem assim fala, sabe o que quer, e sabe escolher o momento de começar a deitar as unhas de fora. Os portugueses, sobretudo os de curta memória, que se cuidem! Portanto, assentemos ideias e abramos os olhos.
Um homem autoritário, é uma coisa. Em princípio, não passa de um ditadorzeco singular, que aqui e ali, poderá ir destilando as suas exigências e criando desassossego, mas pouco mais será do que isso. Porém, um governo autoritário é algo de diferente, e por sinal bem pior, pois qualifica o órgão de governação de um país, sendo suposto que exerce o poder sobre todo o povo, e se for despótico e prepotente, é certo que arrastará consigo as mais inesperadas e inevitáveis consequências.

Samba à Portuguesa


Contrariando os pareceres dos serviços do seu ministério, o secretário de estado das comunidades, António Braga, deslocou-se ao Brasil, ele e a sua equipa, em “missão de estado”, para apaziguar um diferendo entre o consulado português e o Arouca São Paulo Clube, uma organização de emigrantes portugueses, que por sinal tinha um denso programa de festas, na semana em que o fogareiro carnavalesco estava ao rubro. O caso devia ser deveras grave, para exigir a presença de tão proeminentes personagens, mas afinal parece que também estavam previstos alguns contactos com autoridades locais, os quais primaram pela compreensível descoordenação e desencontro, atendendo às fogosas festividades em curso, confirmando que a folia não é compatível com contactos bilaterais. No ar fica mais uma dúvida: será que o governante e seus assessores foram até às terras de Vera Cruz para apagar o tal fogo que grassava na comunidade portuguesa, ou tratou-se de mais uma surtida suportada pelo erário público, destinada a espreitar, ao vivo e em directo, os delírios do Carnaval carioca? Embora sabendo que esta diligência era desaconselhada e estava condenada ao fracasso, o senhor Braga não desistiu do seu devaneio, talvez porque sendo Carnaval e estarmos em Portugal, é costume ninguém levar a mal…

quarta-feira, março 15, 2006

Adeus TRRRIM, TRRRIM …


Esta é a transcrição de uma carta que enviei à PT COMUNICAÇÕES, na sequência de mais um mau serviço aos clientes, à comunidade e ao país, sentido na pele. Será que o nervosismo (verdadeiro ou simulado, o tempo o dirá) desencadeado pela OPA, é a causa de tanta negligência e desnorte? Não, não é! A PT habituou-se, ao longo das décadas, a tratar os clientes como uma maçada que se deve despachar com duas pedras na mão, ou sacudir com desdém, quais limões que devem ser espremidos e enganados sem contemplação, sem direito a desculpas, mesmo quando têm razão.

“Exmos. Senhores:

Serve a presente para vos comunicar que, a partir do corrente mês de Março, prescindo dos vossos serviços, relativos ao fornecimento de rede fixa. Passo a especificar as minhas razões, em número de três (3), a saber:

1) De há uns meses a esta parte, e apesar de sempre ter informado que estava satisfeito com o actual prestador de serviços (XPTO), fui sistematicamente assediado e incomodado com contactos por escrito e via telefone, de pessoal da PT, no sentido de aderir aos vossos serviços e tarifas;

2) Bisando uma situação já ocorrida em 2005, no passado dia 3 de Março deixei de poder efectuar e receber chamadas pela rede fixa, muito embora o meu telefone tocasse quando alguém me pretendia contactar. Solicitei a intervenção da XPTO, a qual, após várias esforçadas diligências, me informou que o problema tinha origem na PT. Esta situação manteve-se até à tarde do dia 9 de Março (6 dias sem telefone), altura em que um funcionário da PT telefonou a informar que o problema já estava solucionado, explicando que umas obras teriam afectado a linha, justificação que dificilmente se aceita, dado que em modo de recepção o telefone tocava, muito embora não houvesse comunicação. Quando manifestei ao técnico a minha incredulidade por tal corte se ter arrastado durante 6 dias, e apenas me ter afectado a mim, o mesmo exibiu alguma admiração;

3) Nesse mesmo dia 9 de Março recebi uma Factura Nº. 99999999 da PT, relativa ao mês de Fevereiro de 2006, na qual me eram indevidamente debitados € 20,937 de comunicações, ao passo que a XPTO, para o mesmo período, me debitou, muito correctamente e como lhe competia, € 17,63 por essas mesmas comunicações.
Naturalmente, apressei-me a cancelar junto do banco respectivo a autorização de débito directo que possuía para as facturas apresentadas pela PT Comunicações, pois não tenho por hábito pagar contas em duplicado.
Para confirmação do que atrás referi, junto fotocópias de ambos os documentos citados.

Apenas uma nota final: a PT Comunicações deveria ser tão diligente a tratar os seus clientes como trata os seus accionistas.

Nesta conformidade, e como referi no primeiro parágrafo, insisto em prescindir dos vossos serviços, ficando o aparelho telefónico à vossa disposição para ser recolhido na morada abaixo, quando muito bem entenderem. Sem outro assunto, subscrevo-me.”

segunda-feira, março 06, 2006

Farsas


José Sócrates diz que aquela sua iniciativa, é o máximo que a solidariedade humana podia ter engendrado. Eu digo que não, e para o provar aí está a entrevista que o Primeiro-ministro deu, onde tentou dourar uma pílula prenhe de propaganda e nula de consequências. O subsídio complementar de pobreza na velhice, com toda a sua panóplia de documentos burocráticos que o candidato tem que apresentar, é a súmula máxima da crueldade deste estado pseudo-social. Imaginem um solitário e carente octogenário, com relações familiares conflituosas ou inexistentes, ignorado, solitário, entregue às pequenas tarefas da sobrevivência, quase incapaz de se deslocar, afectado por aquela timidez e acanhamento próprio de quem se sente marginalizado, condição que o leva a escolher a invisibilidade e o silêncio, amparado à bengala, a calcorrear repartições para requerer atestados de pobreza, a preencher formulários, a querer apensar fotocópias de declarações de impostos que nunca chegam, enfim, a tentar provar que não tem onde cair morto. Este estado socialista, como de socialista só tem o nome, faz os velhotes passarem vergonhas, obrigando-os à humilhação de exibirem o abandono a que foram votados, ou a penúria dos seus descendentes, dá uma esmolinha aos que se sujeitam a levar o calvário até ao fim, e nos restantes casos põe-se de fora, satisfeito com a sádica tarefa de levantar barreiras ao elementar direito de sobreviver com alguma dignidade, na última etapa da vida.

Em vez de providenciar que as regras básicas do código da estrada e do comportamento cívico comecem nos bancos do ensino primário, em vez de exigir excelência e rigor nos exames de condução, em vez de pôr em acção mecanismos adequados para pôr um ponto final no comércio escandaloso da venda ao desbarato de licenças de condução, o governo quer impor o uso de limitadores de velocidade, nos veículos conduzidos por pessoas com carta há menos de dois anos. O governo, mais uma vez, na sua ânsia, ignorância e incompetência, quando não sabe, engendra, convencido que inventou a roda. Começa por não saber o que é um limitador de velocidade (não é um parafuso a travar o curso do acelerador), e não faz ideia de como e quem irá providenciar a fiscalização de tais dispositivos. Sem os tradicionais recursos policiais para cobrir adequadamente o espaço rodoviário do país, tudo isto tem a pretensão de travar a carnificina nas estradas portuguesas, que está provado, não é, tendencialmente, um problema dos traçados das vias, nem que se solucione com a limitação das aptidões dos veículos, mas sim com a moderação e civilidade de quem os conduz.

Por outro lado, Ricardo Almeida, deputado do PSD, é useiro e vezeiro em ultrapassar os limites de velocidade por esse país fora, qual lusitano Speedy Gonzalez, sem que nunca tenha pago uma única multa. Diz ele que tais excessos se devem ao facto de ser um político que gosta de cumprir horários. Todos somos portugueses, mas há uns que são portugueses pontuais, enquanto que outros são portugueses atrasados. Este argumento tem deixado sensibilizado até às lágrimas, quem lhe vai perdoando as acrobacias rodoviárias, provavelmente apoiado noutros precedentes, ocorridos com figuras do poder judicial, que deram como justificação para o facto de serem interceptados a velocidades proibitivas, razões e compromissos do foro jurídico, mas que afinal não passavam do anseio de chegar a tempo e horas a uma boa patuscada.

O ministro Jaime Silva, confrontado com perguntas sobre as precauções que devemos tomar com a gripe aviária, apesar de ter enunciado certas cautelas, fazendo alguma pedagogia sobre o assunto, acabou por estragar a intervenção, rematando com a confissão de que não dispensa o seu franguito assado, iguaria que aprecia. Se o vírus morre à temperatura de 70 graus, ficamos sem saber o que é mais seguro, se frango assado como o ministro gosta (na versão a carvão a temperatura do pitéu não chega aos tais 70 graus), galinha de fricassé ou canja de miúdos. Preocupado em desdramatizar o problema, mas esquecido da prudência que o caso exige, acabou por fazer uma triste figura, fazendo lembrar um outro ministro, apanhado a comer mioleira, com grande sofreguidão, na época em que a BSE começava a grassar em Portugal, e que disse não haver nada que o desviasse de deleitar-se com tal manjar.

Para avançar com a OPA sobre a Portugal Telecom, Belmiro de Azevedo vai utilizar os serviços de uma subsidiária holandesa, tirando partido das isenções de impostos que aquele país oferece nestas operações financeiras, pondo assim os seus interesses à frente do aconchego que tal maquia traria às finanças públicas de Portugal. Deste modo, vão deixar de entrar nos cofres do Estado português qualquer coisa como 57,5 milhões de euros relativos a imposto de selo, mais o pagamento de imposto sobre mais-valias e dividendos, bem como a retenção na fonte de juros bancários. Isto é capitalismo, puro e duro, sem olhar a quem.
Lembro-me de o patrão da Sonae ter dito, certa vez, que para enfrentar o Estado ávido de impostos, independentemente do dinheiro, dos assessores e advogados, e da perseverança que era preciso mobilizar, era preciso ter-se coluna vertebral. Porém, agora neste caso, em particular, vai também ser preciso assumir-se um nadinha menos patriota, economicamente falando, claro está.

O presidente Sampaio tem andado a despedir-se da função que ocupou durante uma década. Acabou a distribuir condecorações, entre muitas outras, por tudo o que apareceu, pelo menos uma vez, nos jornais, nas televisões, nos palcos e nas passerelles da moda. Passe a comparação, seguiu o exemplo do Papa João Paulo II, que se sentiu na obrigação de beatificar e santificar, todos os pretendentes que constavam dos processos pendentes, pelos corredores do Vaticano. Na última sessão fez questão de agraciar alguns jornalistas, gesto que apreciei sobremaneira, porque são eles que nos transmitem informação, conhecimento e não só. Só não percebi porque os apelidou, sem mais nem menos, de Pais da Pátria, porque, para mim, Pais da Pátria, continuam a ser os nossos egrégios avós, como aquele brutamontes do D. Afonso Henriques, o ínclito D. João I, o imortal Luís de Camões, os ousados conjurados de 1640, e um tão modesto quanto grande patriota de nome Salgueiro Maia.

sábado, março 04, 2006

O Nove de Março


Todo emproado, de fatinho novo, gravata berrante e cabelo empastado, a tresandar a autarca com ligações à construção civil e ao futebol regional, entra afoito na empresa de aluguer de automóveis, distribui sorrisos e cumprimentos, e dispara em voz alta para a funcionária:
- Oh menina, isto é urgente! Estou interessado em alugar uma limãosine, com motorista, para ir à tomada de posse do meu presidente.
- Peço desculpa mas limousines já não temos, foram todas requisitadas, articula a empregada, num sussurro.
- Oh menina, mas eu sou um dos 2000 felizes contemplados com direito a assistir à cerimónia…
- Pois, tenho muita pena, mas como lhe disse, não há limousines, logo não o posso ajudar…
- Ora, não está nada perdido! Cá por mim até prefiro que seja uma larangine, e na pior das hipóteses, serve uma tangerine.