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Título: STALKER
Título original: Сталкер
Ano: 1979
Realização: Andrei Tarkovsky
Baseado na novela de Arkadi e Boris Strugatsky, (Stalker - Roadside Picnic)
Elenco:
Aleksandr Kajdanovsky como Stalker
Alisa Frejndlikh como esposa do Stalker
Anatoli Solonitsyn como Escritor
Nikolai Grinko como Cientista
Natasha Abramova como Martha, filha do Stalker
Duração: 163 min
Origem: Alemanha Ocidental e União Soviética
Locais de Filmagem: Estónia
Idioma: Russo
Fotografia: Preto e Branco / Cor (Eastmancolor)
Áudio: Mono / Stereo
Vencedor do prémio especial do Júri do Festival de Cinema de Cannes de 1980
Comentário: Já disse uma vez, algures, que cada filme de Andrey Tarkovsky não é cinema-divertimento, mas sim cinema-reflexão! Cada filme deste cineasta precocemente desaparecido, e que nos deixou, entre outros, “Andrey Rubliev”, “Solaris” e “Stalker”, é um mergulho em apneia, nas profundezas da natureza humana e suas relações com o universo.
Baseado na novela de ficção científica dos irmãos Arkadi e Boris Strugatsky, “Piquenique à Beira da Estrada” (Roadside Picnic), a acção de Stalker situa-se num amplo espaço geográfico denominado “zona”, provável local de visita de uma civilização extraterrestre, que à sua passagem transformou aquele território numa espécie de caos, repleto de lugares misteriosos, escombros, fenómenos inexplicáveis, edifícios arruinados e trilhos armadilhados que mudam de lugar, posteriormente cercado de barreiras e guardado por militares, onde não é permitida qualquer presença humana. Com uma clara conotação política, aquele isolamento não se destina a proteger quem se afoita no desconhecido, mas sim para desmobilizar os que ficam cá fora. No entanto, estas restrições são transgredidas por uma classe de marginais denominados “stalker”, uma espécie de exploradores-pisteiros, já contaminados sabe-se lá porque doença desconhecida, em consequência de viverem nas proximidades da área interdita, no entanto, são os únicos capazes de identificarem, compreenderem e iludirem as ciladas dispersas pelo lugar. Para sobreviverem, disponibilizam-se para guiar, clandestinamente, aventureiros e curiosos, que anseiam explorar os meandros da misteriosa “zona”. O filme descreve uma dessas atribuladas excursões àquele lugar insólito e assombroso, quase primordial, protagonizada por um “stalker”, que será o guia e protector dos seus novos clientes, neste caso um “escritor” e um “cientista”. O objectivo final da jornada é alcançar um “quarto” existente nas entranhas da “zona”, destino místico recheado de simbolismo, lugar de revelação onde supostamente pode ser alcançado o paraíso interior, e onde se vão confrontar os três actores, num discurso em que a pedra de toque são coisas tão subjectivas e imateriais como a fé e a esperança. Até lá, percorrem lugares que mudam de morfologia, prenunciando perigos que não se vêem mas se “sentem” de forma amplificada, seja pela lentidão e precauções que devem ser tomadas durante a progressão, seja por outros tantos rituais que devem ser respeitados por quem se atreve naquela enigmática e inóspita região, onde, entre outras coisas, é proibido voltar para trás pelo mesmo caminho.
Se há filmes que corporizam, ora uma descida aos infernos, ou pelo contrário, uma subida ao reino dos céus, no que diz respeito a Stalker assiste-se ao lento e elaborado atravessamento de um limbo, espaço intemporal de quietude e esquecimento, repassado de desolação, onde impera a luz difusa, um silêncio absoluto, vegetação luxuriante e onde a água é sempre omnipresente, à mistura com destroços e esqueletos de um qualquer cemitério industrial, tudo elementos que funcionam como um cataplasma propício à reflexão e ao confronto das dúvidas, inquietações, desejos e medos de cada um dos intervenientes. São três homens em transgressão e três mentalidades em confronto: a fé religiosa tradicional (representada pelo stalker), a razão agnóstica, científica e pretensiosa (caracterizada pelo cientista) e o cinismo ateu dos criadores (interpretado pelo escritor), a desnudarem e exibirem a sua natureza ante o insondável e o desconhecido, a questionarem-se, ao mesmo tempo que deambulam por aquele perímetro interdito e policiado por autoridades de um estado que se suspeita totalitário, numa ténue alusão ao regime que vigorava na então União Soviética.
29 anos depois de Stalker ter entrado no universo da cinematografia, e Tarkovsky ter começado a pagar um preço demasiado alto pela sua independência e intransigência, penso não estar muito enganado se disser que este filme talvez tenha sido a obra cinematográfica que foi objecto do maior número de críticas, comentários, estudos, ensaios e análises, sem que isso tenha pacificado o meu espírito. Stalker é um filme técnica e esteticamente exemplar, embora de leitura difícil, tantas são as metáforas e as questões de ordem filosófica e metafísica que aborda. Por isso, cada vez que o revejo, assaltam-me novas interrogações e novas dúvidas, volto a reequacionar certezas já dadas como adquiridas, desvendo poesia num e noutro recanto mais obscuro daqueles 163 minutos de cinema, descubro novos e insuspeitos pormenores que antes me haviam passado despercebidos, e volto a emocionar-me com a estranha beleza de todo o discurso fílmico, desde as palavras até aos ruídos e às imagens, e onde à ficção científica cabe apenas o papel de invólucro. Chego mesmo a interrogar-me se Stalker não será o tal filme “mais que perfeito” que todos demandamos.