CORRIA o ano de 1385, mais exactamente a tarde do dia 14 de Agosto, e para os lados de Aljubarrota, aprestavam-se para se enfrentarem, as hostes do Condestável e de dom João I, o mestre de Avis, e o exército de Juan I, rei de Castela, cujas hostes, em número e fidalguia apoiante, suplantavam largamente o exército português e as ajudas inglesas. Por aquelas bandas, entre povoados e charnecas inabitadas, viviam, não uma mas duas padeiras, a saber, uma de nome Brites de Almeida, mulher rija e trabalhadeira, e outra mais discreta, surda, mas toda ela farta de carnes e músculo, porém minguada de formosura, de sua graça Lianor Domingues, casada com um insignificante jornaleiro, de nome Álvaro Domingues.
Ao saber da notícia de que estava eminente o embate, Álvaro não pensou duas vezes, e foi rápido a decidir. Sem espada nem lança, silencioso e sem dizer onde ia, apanhou uma forquilha e meteu pés ao caminho para se ir juntar às tropas invasoras, cujos estandartes e pendões, desde manhã cedo, lá ao longe, já tinham assomado nos outeiros. Fê-lo como o haviam feito um punhado de fidalgos das redondezas, imaginando que a sorte das armas penderia, infalivelmente, para Castela, e que com isso colheria algum benefício ou honraria. Na sua ignorância, seguiu o exemplo de quem ele pensava ser mais entendido em matéria de interesses e oportunidades.
A caminho do fim da tarde, depois de algumas manobras preparatórias, e ainda sob um sol escaldante, chocaram-se os dois exércitos, com uma violência desmesurada. O fragor da batalha, feito de ordens, gritos, entrechocar das armas e das couraças, troar das bombardas, assobios de flechas e virotões, e o relinchar de cavalos feridos, calou a passarada e fez estremecer a bucólica e lânguida paz das hortas e pomares, ao redor do campo de São Jorge. Com o chegar da noite eram vencedores os invadidos e estavam derrotados os invasores. O povo em brasa saiu aos campos, armado de foices, forquilhas, varapaus e em tremenda gritaria, vasculhava os caminhos, atalhos e celeiros, em busca de castelhanos transviados, chacinando-os sem piedade. Outros, aventuravam-se no campo de batalha, ainda morno, volteando corpos e saqueando tudo o que de valor encontravam, indiferentes aos corpos enganchados e trespassados nas paliçadas aguçadas, outros tombados e massacrados nos fossos e covas de lobo. Amontoados de corpos entupiam os ribeiros, cujas águas corriam vermelhas de sangue, e pelos campos em redor, galopavam à toa cavalos sem cavaleiro, aterrorizados peões castelhanos e aragoneses, lanceiros italianos e besteiros franceses, feridos e esfarrapados, acossados e em fuga desordenada.
Sete dos fugitivos foram esconder-se no forno da Brites de Almeida, que com a sua pá de ferro, logo ali os aliviou de outros tormentos. Mais para norte, a meia légua, num lugarejo cujo nome se perdeu, coube a tarefa a Lianor Domingues, que com a sua machada de rachar lenha para o forno, já mesmo ao cair da noite, tratou da saúde de outros quatro castelhanos extraviados, que se coziam com as sombras, e mais um outro, que berrava a plenos pulmões, suplicando misericórdia, mas em vão. Na penumbra, embalada pela sua surdez e no calor do ajuste de contas, o gume da machada, movida com destreza e com um ruído seco, abriu a cabeça do tratante ao meio, até aos ombros, como se fosse um melão maduro.
Esse quinto, o tal mais um, veio-se a saber mais tarde, era nem mais nem menos que o foragido, humilhado e arrependido, Álvaro Domingues, de regresso ao doce lar e aos braços portentosos da sua Lianor, que nunca lhe conhecera a voz. Depois de ter provado o pão que diabo amassou, regressava sem ter sido reconhecido, pior do que tinha saído, de calções rotos, ensopado de feridas, sem honra nem forquilha. Dias depois foi rezada uma missa por ele e outros traidores, mas ficaram dúvidas que tivessem sido aceites no paraíso.
Semanas mais tarde, depois de assentar a poeira daquela refrega e voltarem a chilrear os pássaros e a arrebitarem os arbustos espezinhados dos campos de Aljubarrota, inconsolável e roída de remorsos, Lianor juntou os poucos haveres e acabou - dizem as alcoviteiras - por partir para algures, deixando à parceira de ofício, a tal Brites de Almeida, o prestígio, o protagonismo e a responsabilidade da lenda.
Texto de F.Torres - Julho de 2012
Ilustração de Hal Foster