Foi em Setembro de 1946, quando ainda não tinham assentado as poeiras de Hiroshisma e Nagasaki, que o cometa "Eustache" fez a sua aparição no sistema solar. Descoberto pelo astrónomo amador Anatole Eustache, durante seis semanas o firmamento foi riscado pela sua cauda, e as noites cintilaram com a exuberância da sua cabeleira. Nesse período nasceram centenas de milhares, talvez milhões de crianças, mas nenhuma viria a ser tão famosa quanto o Humberto Alves, filho de um escriturário do Grémio dos Armadores da Pesca do Bacalhau e de uma modista, que viviam ali para os lados do Beato. Debruçando-se sobre aquele novo objecto astronómico, e calculando com o rigor possível a sua órbita, os cientistas concluíram que ele iria surgir nos céus com uma periodicidade de sete anos.
Cedo o pequeno Humberto, de olhos penetrantes e cabelo com caracóis negros, começou a dar mostras de ser muito dotado. Quatro anos depois já lia e escrevia com grande desenvoltura, e quando o "Eustache" voltou a encontrar-se com a Terra em 1953, o jovem fez a sua primeira grande demonstração de criatividade, esculpindo no concurso das construções na areia, uma "Cidade dos Deuses", que deixou perplexos todos aqueles que contemplaram aquela espécie de fusão do Grande Cannyon com Angkor Vat, o Palácio dos Doges, os jardins de Versailles e a catedral de Colónia. Era uma construção tão insólita, destinada a ter uma vida tão efémera, que antes que as primeiras chuvas de Outono terraplanassem aquela "cidadela", transformando-a numa paisagem dunar, foi fotografada e comentada por repórteres de todo o mundo, chegando mesmo a ter direito a uma exuberante e celebrada edição especial da National Geographic.
Nos sete anos seguintes o pequeno Humberto dedicou-se à música. Quando o "Eustache" efectuou a sua nova aparição já o menino-prodígio tinha terminado a sua sinfonia para piano e orquestra "Androceus", que deixou meio mundo embasbacado, depois de uma primeira audição arrancada a ferros, pois ninguém acreditava que fora aquele gaiato, que nunca passara pelo conservatório, o seu compositor. Ser interpretada pela Orquestra Sinfónica de Berlim e editada em disco pela Deutsch Grammophon foi o passo que se seguiu. Se não deu entrevistas, também é verdade que nunca mais compôs música, instalando-se o mistério de como conseguira suplantar Mozart, embora o Humberto se recusasse a ser tratado como um génio precoce. Limitava-se a invadir os terrenos que outros repisavam durante uma vida, fazia uma demonstração do seu talento, e saía tão depressa como tinha entrado, quase em simultâneo com as aparições do errante "Eustache".
Nos sete anos seguintes virou-se para a escrita. Em 1967, ano em que o cometa vagabundo voltou a riscar a abóbada celeste, já o Humberto tinha ultimado o seu romance "Os Valdos". A a primeira reacção dos editores foi de desconfiança e incredulidade, pois a obra podia não passar de uma fraude. Mas não senhor! Afinal as trezentas páginas eram genuínas, uma espécie de mergulho em apneia, na história de uma invulgar família portuguesa. Tornou-se rápidamente num grande êxito editorial, traduzido em dezasseis línguas, publicado no mundo inteiro e com uma tiragem astronómica de duzentos e cinquenta milhões de cópias, em edições que esgotavam num abrir e fechar de olhos, ofuscando Balsac, Dostoievski e Heminguay. Se alguém esperava que o Humberto tivesse encontrado o caminho, iniciando uma carreira de escritor, frustrado ficou. A epopeia de "Os Valdos" foi o seu primeiro e único exercício literário.
O jovem era um caso sério, um mistério dificilmente explicável, tão versátil como um Leonardo dos tempos modernos, e tão esquivo e solitário como um mudo de nascença. Arrumou a máquina de escrever e virou-se para as tintas e os pincéis, ao mesmo tempo que o país entrava em convulsão com a Revolução dos Cravos. Esperou pela oportunidade, e um belo dia, quando o cabeludo "Eustache" voltava a cintilar nos confins do sistema Solar, arrastando exuberante a sua cauda de partículas, montou os andaimes junto daquela imensa parede de vinte e um metros de comprimento e cinco de altura, e começou a esboçar o colossal mural "Lusátria". A pintura levou meses a ser concluída, muito depois do cometa já ter iniciado o seu caminho de regresso às vizinhanças do Sol. Era um espanto, uma jóia de cortar a respiração. Fizeram-se documentários e excursões para apreciar o progresso do trabalho, e quando Humberto terminou o painel, se Almada e Siqueiros ainda por cá andassem, teriam ficado sem fala ou soçobrado de inveja.
Passaram sete anos e as agendas de jornalistas e entendidos, estavam atentas ao mínimo movimento, pois Humberto emergia sempre, com mais uma manifestação de cortar a respiração, quando se avizinhava uma nova aparição do cometa. Mas em vão. Nem o "Eustache" irrompeu das profundezas do universo, nem Humberto saiu para a praça pública. Começaram pesquisas desenfreadas para descobrir o paradeiro do grande e jovem artista, mas nada se soube. O Humberto tinha desaparecido de circulação, mergulhado no mais sombrio e silencioso dos anonimatos, ao passo que os telescópios continuavam a varrer a abóbada celeste, em busca de algum ténue vestígio do inspirador cometa, ou da razão porque tinha deixado de marcar encontro com a Terra. Alguns meses passados, os astrónomos acabaram por admitir que talvez uma variação na sua alongada órbita, tivesse levado a que se aproximasse em demasia do Sol, acontecendo a sua desintegração. Quanto ao Humberto, virados e revirados os quatro cantos do planeta, até hoje ninguém conseguiu dar com ele, mais uma vez se provando que quem não acredita que os astros influenciam a vida das pessoas, não pode estar mais errado.
Da série "Contos Quase Instantâneos"