segunda-feira, dezembro 08, 2014

ACUSO!


Um país que consente que os seus governantes deixem que se instale o caos e o cisma linguístico dentro das suas fronteiras, é um país que vai a curto prazo deixar de se entender, tanto dentro como fora das suas fronteiras, ficando aberto o caminho para a desintegração cultural e identitária desse povo, e das suas comunidades.

Portugal é um pequeno país, mas está recheado de crimes. Há crimes de sangue, crimes ambientais, crimes económicos, corrupção, atentados à soberania, e agora também, por via do ALOP90, crimes linguísticos ou de identidade. Crimes políticos também os há, muito embora de natureza e âmbito diverso, daqueles que as ditaduras costumam etiquetar e perseguir. Só não há crimes de guerra, no sentido convencional do termo, porque não estamos em guerra com ninguém. Mas eu e muitos mais, estamos em guerra contra o AOLP90, um autêntico monstro invasor, gerado e manipulado em laboratório por pseudo "cientistas linguísticos", e que está empenhado em destruir o que levou quase nove séculos a edificar, respeitando as suas raízes e integrando o que achou por bem ser fruto da natural evolução: a Língua Portuguesa.

Cada dia que passa mais se percebe que a Língua Portuguesa entrou em coma ortográfico, e já não é com cuidados intensivos nem com respiração assistida que irá recuperar facilmente. O texto do Acordo não foi, desde 1990, revisto uma única vez, apesar de ter havido promessas nesse sentido, que não passaram disso mesmo: promessas vãs. Entretanto o Governo, no seu confortável imobilismo, não podia estar mais ausente da questão do AOLP90, pois anda ocupadíssimo a espatifar o ensino público, conjugando a suposta eficácia desse ensino com a redução de despesas, encerrando escolas, reduzindo ao mínimo os auxiliares educativos e desmembrando a classe docente. Pela cabeça dos políticos deve ter-se consolidado a ideia de que a seu tempo sempre se podia dar um passo à retaguarda, só que isso é uma ideia falsa e perversa. O AOLP90 está a fazer o seu caminho, em galope desenfreado, e nada o parará se ninguém o travar. Diáriamente, tanto os meios de comunicação escrita como audiovisual, as edições e reedições livreiras e a legendagem de filmes, presenteiam-nos com autênticos "ensopados" e "caldeiradas" ortográficas que têm um objectivo sinistro: satisfazer toda a clientela, sejam eles apoiantes ou adversários do famigerado AOLP90, ao passo que o sistema educativo foi inundado com publicações acordizadas, e a classe docente instada a ensinar segundo os cânones do novo modelo, percebendo que os estragos que foram feitos em apenas 4 anos, levarão décadas a recuperar. Entretanto, são muitos os que reconhecem que aquela norma ortográfica desfigura a escrita da língua e introduz uma subordinação da grafia à oralidade, bem como às suas divergências, perdendo-se as raízes etimológicas e com a escrita a capturar essas mesmas divergências. Não falta muito que não tenhamos várias versões da Língua Portuguesa, tantas quantos os dialectos falados. De quem se esperava recomendações, comentários ou um ponto de situação, apenas um prolongado e ruidoso silêncio. E passo a enumerar:

- Secretaria de Estado da Cultura
- Ministério da Educação
- Academia das Ciências de Lisboa
- Observatório da Língua Portuguesa
- Instituto Internacional da Língua Portuguesa
- Associação das Universidades de Língua Portuguesa - AULP
- Associação de Professores para a Educação Intercultural - APEDI

O que têm a dizer sobre o AOLP90? Nada? Não têm opinião? Estão a hibernar? O que andam cá a fazer? Habituados a que uns quantos façam cortes nos rendimentos de quem trabalha e vendam o património do país, apressaram-se a seguir o mau exemplo. Cortam consoantes e vendem também a Língua por atacado, fazendo "ouvidos de mercador" a quem abomina e contesta estes negócios de vão-de-escada. Contestatários do AOLP90 são para cima de 52.000 (fora a maioria silenciosa), divididos em vários grupos que intervêm nas redes sociais, tais como "Em Acção Contra o Acordo Ortográfico", "Professores Contra o Acordo Ortográfico", "Tradutores Contra o Acordo Ortográfico", "Meios Jurisdicionais de Luta Contra o Acordo Ortográfico" e "Cidadãos Contra o Acordo Ortográfico". Não basta parodiar e fazer anedotário com a fraseologia ilegível recheada de patacoadas ortográficas que vai pontuando o nosso quotidiano. Penso que está na altura de promover umas quantas monumentais acampadas, frente às instalações destas "honoráveis" instituições, exigindo-lhes que cumpram o dever de se assumirem como os garantes da Língua Portuguesa. Pelo seu silêncio e desinteresse manifestado, acuso estas entidades de estarem a contribuir para cavar a vala comum de um grande crime de identidade. Os doutos eruditos e "cientistas linguísticos" que esculpiram este intragável e aberrante monumento, fizeram questão de levantar uma parede de silêncio, assistindo impávidos e serenos à instalação da miscelânea, do pandemónio ortográfico e à derrocada linguística, persistindo em assobiar para o lado, fingindo que está tudo a correr às mil maravilhas, e prosseguindo na trôpega e canhestra ideia de deixar normalizar, ao sabor das facultatividades, aquilo que não é normalizável.
- Não consumo nada que esteja acordizado, dirão alguns.
- Ai consomes, consomes, e nem sequer dás por isso, digo eu. O AOLP90 entra-te pela porta dentro, sem pedir autorização, seja quando ligas o televisor para ver os noticiários e te deparas com rodapés escritos em "bom português", seja quando recebes pelo correio as "faturas" da água, do gás ou da "eletricidade", quando tropeças na "semirreta" do teste lá da escola ou na "minissaia" do catálogo das vendas "diretas". Nesta pitoresca democracia não há "exceções", ninguém fica de fora e comem todos pela medida grossa.

Um país que consente que os seus governantes deixem que se instale o caos e o cisma linguístico dentro das suas fronteiras, é um país que vai a curto prazo deixar de se entender, tanto dentro como fora das suas fronteiras, ficando aberto o caminho para a desintegração cultural e identitária desse povo, e das suas comunidades. O AOLP90 é o expediente e o caminho mais curto para reduzir Portugal à irrelevância e insignificância. Mais do que qualquer outro factor, o que une os povos é a sua língua. Por isso mesmo, subscrevo o conteúdo Projecto de Resolução do PCP N.º 965/XII/3, divulgada em 28 de Fevereiro de 2014, aquando da apreciação da “Petição pela desvinculação de Portugal ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990”, e que nos parágrafos finais diz o seguinte: "Independentemente das posições diferentes que existem sobre o Acordo, há uma questão que é, para nós, PCP, muito clara: a inexistência de uma autoridade da língua, o que acaba por não contribuir para alcançar o consenso. Por isso mesmo, o PCP propõe um conjunto de medidas que passam também pela construção dessa autoridade da língua, um instituto da língua. Caso esse instituto não venha a conseguir um novo acordo até 2016, Portugal deve desvincular-se do actual Acordo e voltar ao Acordo de 1945. (...) O Acordo deve ser um instrumento para a valorização e salvaguarda da língua e não para a satisfação de interesses de editores e distribuidores. O Acordo deve ser um instrumento da língua e não o contrário." Ora essa mesma sessão parlamentar acabou por aprovar a constituição de uma comissão de acompanhamento (?) da aplicação do AOLP90, que ninguém sabe quem a compõe - caso alguma vez tenha sido empossada -, o que tem andado a fazer e a que conclusões chegou. Parece ter passado à clandestinidade, como convém. E por aqui me fico.

sexta-feira, agosto 22, 2014

No Cais da Solidão


A chaga aberta dói e sangra tanto,
ainda que no tempo passem anos!...
Do chão do nada, a custo já levanto
a safra de aflições e desenganos.

No peito, o coração, teimando, bate!...
Teimando, bate, bate, e não se cansa!
Nem dor nem desalento o sonho abate
dos cravos desta pátria em esperança!...

Dos fastos e desastres, a memória
de um povo erguendo a pátria à dimensão
da gesta humana em páginas de História!...

E neste cais de Outono e solidão,
que fado nos impede agora a glória
de ousar no pátrio chão mais um padrão?


José-Augusto de Carvalho
24 de Novembro de 2008.
Viana * Évora * Portugal

NOTA - Imagem da Rosa dos Ventos - Sagres, Portugal * Foto Internet, com a devida vénia.

quinta-feira, julho 03, 2014

Pentacríptico


1.
No princípio, o verbo quis,
em conjugações obscuras,
ser grão e depois raiz
do chão projectando alturas...

Desnudo, no paraíso,
o par de divina essência
cantava, no tom preciso,
o elogio da indolência.

Do seu cume imperativo
e projectando o perfil
pelas lonjuras de anil,
deus olhava o par cativo.

E, certo da tentação,
provocou a transgressão.

2.
Expulso do paraíso
no primeiro alvorecer,
era ainda um improviso
a vida que houve de ser.

Adão pesou, pensativo,
o gesto da divindade
e a condição de ex-cativo,
encontrada a liberdade.

E naquela antemanhã,
que mal podemos supor,
percebeu por que a maçã
tinha um estranho sabor:

o sabor da inteligência
acordando a consciência.

3.
Pródiga era a natureza!
Tudo dava, hospitaleira...
Viver era uma beleza,
sem transtorno nem canseira.

Sentia às vezes saudade
do paraíso perdido...
Mas fora a sua vontade:
Assim tinha decidido.

Lá, tinha que obedecer,
ser aplicado no estudo
e ouvir e não rebater...

A liberdade era assim:
não se podia ter tudo
dentro ou fora do jardim...

4.
Sem armas e sem abrigos,
um ninho nos ramos altos,
prevenia os sobressaltos
dos mais diversos perigos.

Nessa arte da construção
imitou os primos símios,
que eram astutos e exímios,
arquitectos de eleição.

Gozando a paz absoluta,
descobriu ser bom pensar:
e concluiu que uma gruta
era o lar a conquistar,

por ser melhor tal intento
do que viver ao relento.

5.
Um dia, o par decidiu
o que há de mais natural:
Eva emprenhou e pariu
o pecado original...

E do seu cálido ninho,
recendendo a puridade,
foi descoberto o caminho
terrestre da humanidade.

E tudo assim sem alarde,
nem hosanas nem prebendas...
Não foi cedo nem foi tarde.
Depois vieram as lendas,

vestindo de cor e rito
o simbolismo do mito.

José-Augusto de Carvalho
Viana *Évora* Portugal

domingo, junho 29, 2014

Passar do Cinzento ao Negro


A última reunião anual do Clube Bilderberg, que decorreu em Copenhague, nos passados dias 29 de Maio a 1 de Junho, já começou a dar resultados, pois sempre que o Clube Bilderberg se reúne, acontecem "coisas", apesar de nada transpirar das suas reuniões e conclusões. Para já, Jean-Claude Junker, delfim de Angela Merkel e membro de longa data daquela sociedade secreta das elites mundiais, desta vez foi "colegialmente eleito" presidente da Comissão Europeia, em vez de "consensualmente nomeado" como era habitual, fruto da geometria variável adoptada pelas "instâncias" europeias, como forma de superar a pseudo-birra eurocéptica de David Cameron de um Reino Unido, que não sendo membro do Eurogrupo, faz questão de andar aos ziguezagues com a União, umas vezes com um pé dentro, outras vezes com os dois pés de fora.

Com um cripto-consensual Jean-Claude Junker a substituir um insuportável José Manuel Durão Barroso, é quase certo que estão a caminho mais "coisas boas". Adivinham-se tempos complicados para os europeus, cada vez mais distanciados do que se vai tramando e cozinhando nos corredores e "capelinhas" de Bruxelas, sobretudo com o que vai resultar do famigerado acordo secreto com os Estados Unidos da América, um tal Tratado Transatlântico de Comércio e Investimento (TTIP), que tem a pretensão de estabelecer a maior zona de livre-concorrência do Mundo, e que a Wikileaks fez questão de divulgar.

O federalismo de que Juncker é adepto, tem muito a ver com a perda de soberania dos estados, que a eficácia do TTIP reclama. A cimeira EU-US, realizada em Bruxelas em Março de 2014, é quase certo que serviu para acertar agulhas. E a Europa incauta, pondo de lado todas as precauções, e entregando-se nos braços do capitalismo voraz, deixa-se arrastar por esta vaga. A sua entrada em vigor terá efeitos nefastos sobre as economias e os direitos dos trabalhadores dos dois lados do Atlântico. As "reformas", ajustamentos e reajustamentos que o Governo tem levado a cabo em Portugal, à sombra da resposta à nossa "crise" doméstica, dando prioridade ao privado, em prejuízo do que é público, só quem está distraído não vê que se ajustam, e não são alheios, às pretensões transnacionais do TTIP. Com efeito, e enquadradas pelas reestruturações e reajustamentos indispensáveis à implementação do tratado, prevê-se que entre 430 mil e 1,1 milhões de pessoas serão obrigadas a mudar de actividade, pois os negócios estão primeiro que as pessoas. Passando de cinzento a negro, o futuro não é risonho.

terça-feira, junho 03, 2014

Mais Depressa Se Apanha Um Mentiroso...

O Governo pediu à dona Conceição Esteves, que é Presidente da Assembleia da República, e que também já foi juíza do Tribunal Constitucional (TC), para clarificar junto do TC como é que os serviços devem processar os salários, pensões e subsídios de férias e de Natal que deveriam ser pagos em Junho, depois do chumbo do TC. Não percebo, a não ser que a dona Conceição esteja a receber uma avença do Governo, para clarificar os acórdãos do TC, ou então tenha outras competências que desconhecemos, coisa que me deixa muito perplexo, para não dizer incrédulo.

Depois há o caso de Passos Coelho, durante uma visita à Santa Casa da Misericórdia, acompanhado por Pedro Santana Lopes, se ter queixado que o TC, porque ainda tem entre mãos outras medidas que podem também estar feridas de inconstitucionalidade (ele lá sabe o que fez!), não o deixarem fazer planos para o futuro, nem dormir descansado, pois os assaltos perpetrados não estão a render aquilo com que contava, passando a maior parte do tempo a ponderar se deve ir à carteira ou ao armário dos comes e bebes dos portugueses. Ora Passos Coelho já devia saber (ou sabia e faz-se esquecido) que em Portugal o tempo da Política não é o mesmo da Justiça. Se sabia é matreiro e malicioso, se não sabia, é trafulha ou incompetente. Como é óbvio, inclino-me para a primeira opção, embora possa haver uma mistura das duas.

Numa primeira abordagem a frio da notícia, ainda pensei que Passos Coelho se estivesse a referir à eminência dos cofres vazios, não sabendo onde ir buscar dinheiro para pagar as suas obrigações e compromissos, quando ainda há dias tinha dito que o Governo dispunha de fundos para enfrentar as despesas e necessidades durante um ano, sem andar na pedinchice. Mas não, por enquanto o problema é apenas insónias, amargos de boca e digestões difíceis. Quanto a nós, estamos num ponto em que é tão grande a salada de queixinhas, dramatizações e aldrabices, que já nem sabemos se será razoável envolver os coxos no provérbio dos mentirosos. 

sábado, maio 31, 2014

Badamecos

Ontem, logo após o Tribunal Constitucional (TC) se ter pronunciado sobre a inconstitucionalidade de três das medidas do Governo, apareceu nas televisões, um badameco armado em comentador, que classificou a decisão do TC como uma intromissão na área governativa, fazendo vista grossa ao facto dos actos da governação se confundirem com descarados atropelos a direitos e garantias constitucionalmente consignados. Para estes badamecos, governar pisando constantemente os territórios da ilegalidade, parece ser um problema de menor importância. Entretanto, não houve ninguém que atalhasse que a ostensiva insistência nestes métodos de espoliação, sempre feridos de inconstitucionalidade, permitem ao Governo desculpar-se e ganhar tempo, arrastando-se até Outubro de 2015, altura de novas eleições legislativas, ao mesmo tempo que vão praticando à socapa outros roubos avulsos. Há quem ouça os argumentos destes badamecos, e fique indiferente, seja porque não tem uma ideia precisa daquilo para que serve uma Constituição, ou porque ver os outros a serem roubados e violentados nos seus direitos, não os aquece nem arrefece, todavia, só enquanto os malfeitores não vierem bater à sua porta.

quarta-feira, maio 28, 2014

Derrota Com Sabor a Victória

A Aliança Portugal teve uma derrota estrondosa (há quem diga que não!) nestas eleições europeias, porém a crise acabou por estalar no PS, com António Costa a dar um passo em frente, perfilando-se como candidato a líder, e com vários sectores a contestarem António José Seguro, o qual conduziu o partido a uma magra victória. Na verdade, era quase garantido que as “oposições responsáveis" e as "abstenções violentas" iriam dar mau resultado, e não é agora, tarde e a más horas, que a promessa de irem votar favoravelmente o fogo de barragem da moção de censura do PCP, irá dar qualquer resultado, frente a uma ainda coesa maioria PSD/CDS-PP. É quase certo que a esta hora, Pedro Passos Coelho, Paulo Portas e Aníbal Cavaco Silva, já fizeram as suas leituras dos resultados e tiraram as suas conclusões, apercebendo-se que embora cheios de escoriações, mas com o PS anémico, ainda estão ali para durar. Devem estar a rir-se à socapa, a afiarem as navalhas e a fazerem planos para Outubro de 2015, pois estavam muito longe de imaginar que uma amarga derrota pudesse transmutar-se numa inesperada e doce victória.

terça-feira, abril 22, 2014

Simpatias

A maioria PSD/CDS-PP que actualmente governa a Câmara Municipal de Braga aprovou a execução e instalação, numa praça da cidade, de uma escultura evocativa de Francisco Salgado Zenha, ilustre advogado natural daquela cidade, antifascista, fundador e deputado do Partido Socialista, e posteriormente candidato à Presidência da República, contrastando com o anterior executivo camarário do PS, o qual mandou erigir uma estátua do cónego Eduardo Melo Peixoto, ex-vigário da Diocese de Braga, salazarista, conhecido pelas suas ligações ao MDLP e à rede bombista que assolou as sedes dos partidos de esquerda, sobretudo do PCP, nos anos de 1974/1975, no período pós-revolução de 25 de Abril. Não sou bracarense, mas se fosse, com esta troca de papéis, melhor, de preferências e simpatias, tão diametralmente opostas, certamente que ficaria mais confundido do que já estou.

sábado, abril 19, 2014

Subitamente, Há Quarenta Anos!


ERAM para aí umas sete da manhã daquela Quinta-feira, quando o meu pai entrou no meu quarto e veio acordar-me, antecipando-se ao despertador. Ele estava excitadíssimo, com o rádio do quarto dele com o volume mais alto que o habitual, enquanto ia comentando:
- Passa-se qualquer coisa... de dez em dez minutos, estão a dar comunicados de um comando das forças armadas, a dizer para nos mantermos calmos e não sairmos de casa..., dizia-me ele nervoso, ainda em traje de pijama e a passar a máquina de barbear de uma mão para outra, enquanto que do seu quarto vinham os sons pouco comuns de trechos de música clássica, sem interrupções de publicidade, à mistura com algumas marchas militares.
- Desta vez é que é! Exclamei eu, sentado na cama, a fazer tentativas para espantar aquele sono pegajoso. - Afinal aquilo em 15 de Março, sempre foi um ensaio! Levantei-me e fui até ao quarto do meu pai, à espera de mais novidades da Rádio Clube Português.
- Aqui posto de comando do Movimento das Forças Armadas, vamos passar a ler um comunicado dirigido à população, anunciava a voz calma mas decidida do locutor. Logo a seguir mais marchas militares entrecortadas de apelos à calma e pedidos para nos mantermos em casa, para não perturbar as operações militares em curso.
- Desta vez é que é! Voltei a repetir, convencido sabe-se lá de quê.
- Vamos lá a ver se não é uma golpada dos ultras, intercalava o meu pai. Não te esqueças que há meia dúzia de dias os generalotes foram todos ao beija-mão do Caetano, por isso não deitemos foguetes, voltou a adiantar o meu pai, cheio de inquietação, a calcorrear, vezes sem conta, o curto percurso entre a casa de banho e o quarto. Os tratos-de-polé por que passara nas mãos da PIDE, há uns anos atrás, e os quatro anos de reclusão no reduto Norte do Forte de Caxias, aconselhavam-no a ser cauteloso, e a não embandeirar em arco aos primeiros sinais.

OITO e meia da manhã. Saímos de casa, cada um para seu lado, eu com o transístor no bolso com pilhas novas, para ir sabendo mais novidades. Como ia casar-me daí a um mês, precisava de telefonar da cabine pública do café Tatu (não havia telefone em nossa casa), para aconselhar calma e ninguém se assustar. Depois fui até à empresa. Pelo caminho vi passar no Campo Grande, talvez vinda do Lumiar, uma coluna de carros de combate em andamento acelerado. Na empresa onde trabalhava, na zona do Saldanha, circulava a informação que todos estavam dispensados.
Entretanto, e porque as notícias não adiantavam grande coisa, rumei à Rua das Enfermeiras da Grande Guerra, a casa da minha futura mulher. Voltei cá fora pelas duas da tarde e lá consegui descobrir, na Rua do Forno do Tijolo, uma leitaria de portas meio abertas, para me reabastecer de café e cigarros. Um cliente ocasional ia contando que o Caetano estava no Quartel do Carmo, cercado pelas tropas revoltosas. À saída vi passarem forças militares. Em passo acelerado fui atrás delas. Em Sapadores perguntei para que lado é que a tropa tinha ido. Informaram-me que tinham tomado o caminho da Rua da Penha de França. Fui até lá. Estava a ser iniciado o assalto ao quartel-general da Legião Portuguesa. Fiquei algum tempo por ali, a assistir ao lançamento de muita papelada pelas janelas, e à apreensão do armamento ultramoderno, muito dele ainda encaixotado, que por lá estava acumulado.
Voltei à Rua das Enfermeiras da Grande Guerra e, finalmente, à noite a televisão iniciou uma emissão improvisada que confirmava definitivamente que daquela vez é que o regime tinha caído, que a longa noite tinha expirado, e as nossas vidas iam tomar novo rumo. Hoje só tenho palavras para balbuciar um grande obrigado a meu pai, a todos aqueles que também sofreram as perseguições do regime, e sobretudo, a todos os corajosos capitães de Abril.

NOTA - Excerto de um texto de minha autoria, publicado em 25 de Abril de 2001, com o título "Daquela Vez é Que Foi!"

sábado, abril 12, 2014

Branco Mais Branco Não Há!

Com as eleições europeias à porta, e porque tudo é pretexto para branquear a sua actuação junto dos países sob resgate financeiro, a Comissão Europeia mobilizou um punhado de comissários europeus e organizou em Lisboa uma conferência a que deu o nome de "Portugal: rumo ao crescimento e emprego". Sempre bem comportado, de cócoras e rastejante, o Governo consentiu. Os detergentes usados na tal conferência foram Cavaco Silva, Passos Coelho e Durão Barroso, um trio pouco recomendável, onde no meio das patéticas balelas e banalidades dos costume, para encher o programa, foi exibido um rebuçado peitoral de 25 mil milhões de futuros financiamentos comunitários, com objectivos eminentemente sociais, vejam só, com o intuito de nos deixar a salivar e a sonhar, e com a União a querer fazer-se passar por uma espécie de "santa casa da misericórdia" à escala europeia.

O resto foi lavar, lavar, pôr a roupinha a corar e depois a secar. Registe-se ainda que Durão Barroso até recebeu rasgados elogios de Cavaco Silva, a propósito da sua actuação e envolvimento como presidente da Comissão Europeia, em prol da "causa" portuguesa, uma coisa que até lhe dá muito jeito, se atendermos que será seu desígnio - embora não o admita para já - candidatar-se à Presidência da República, provando-se que o detergente, tipo dois-em-um, de uma assentada, lavou o Durão e a União. Enfim, teatro com muita espuma, daquela que lava mais branco.

sexta-feira, março 28, 2014

Portugal, a Grande Lavandaria

Não hesite!
Nós precisamos dos seus "investimentos",
E você precisa das nossas "facilidades".
Decida-se já hoje!
Peça um VISTO GOLD.
Venha até cá lavar o seu dinheiro.
Nós oferecemos o detergente.
É simples, é barato e dá MILHÕES.

domingo, março 23, 2014

Relatividade


(da Série Contos (In)Completos

Parte I

NAQUELE fim de tarde de Agosto, quando voltou do trabalho o Mário não arrumou o carro na garagem, não visitou a caixa do correio como era seu hábito, e quando entrou em casa beijou Francisca maquinalmente, sem a ver. Talvez fosse daquele calor sufocante ou do emprego precário que ameaçava levá-lo para o desemprego, mas o certo é que estava imensamente cansado, as pálpebras pesavam toneladas, as pernas estavam à beira de se tornarem insensíveis e quase não conseguia carregar a sua pasta com trabalho para casa.

Foi olhar-se no espelho e não se reconheceu. Sentia o cérebro vazio, o corpo e a alma tão distantes, como se lhe não pertencessem. Não jantou. Foi para o quarto e acendeu o pequeno candeeiro da cómoda. Deitou-se. Semicerrou os olhos e ficou a ver apenas aquela luminosidade frouxa que lhe amordaçava os sentidos. A escuridão conquistou-o definitivamente e o abismo do sonho, como uma goela escancarada começou a tomar conta dele. Depois deixou de se sentir.

As imagens voltaram, mas eram como se ele tivesse deixado de existir na sua forma sólida, ficando apenas ligado àquela dimensão irreal por um frágil filamento sem substância. Foi então que partilhou o calor de uma fogueira com os Templários do Santo Sepulcro, jogou xadrez com Tamerlão e assistiu a colossais batalhas cósmicas ao lado de Flash Gordon. Passeou com Helena junto das muralhas de Tróia, ensinou Pinóquio a mentir com mais subtileza e foi recebido com pompa na tenda de Sandokan. Assistiu à queda de Constantinopla, escutou deliciado alguns contos de Sherazade, chapinhou com Tom Sawyer e Huckleberry Finn nos sapais do Mississipi e andou na borga com os Três Mosqueteiros. Procurou em vão Sindbad pelos quatro cantos do mundo, escapou por pouco à matança de Chicago, cruzou-se discretamente com Romeu e Julieta, galopou com Marco Polo pela interminável Rota da Seda e conversou pela noite dentro com Júlio Verne.

Navegou com Leif Erickson pelo árctico rumo ao Novo mundo, esbarrou com Gulliver no reino de Lilliput, visitou a ciclópica Atlântida antes do grande dilúvio e singrou o mar Egeu para ir despertar os fogos de Olímpia. Construiu máquinas de guerra concebidas pelo mestre Leonardo, reviu o rei Artur junto às muralhas de Tule, discutiu à luz da candeia com Dickens, bebeu água nas nascentes do Ganges com Alexandre da Macedónia, namoriscou Alice no País das Maravilhas e adormeceu sob um ulmeiro à vista de Shangrila. Viu passar Napoleão a caminho de Santa Helena, perseguiu Moby Dick no baleeiro do capitão Ahab, entrou de roldão no Palácio de Inverno e assistiu de longe à morte inglória da bela Pompeia. Andou com Tim-Tim pelos trilhos do Tibet, viu ser construída a Grande Muralha da China, escutou Buda, acompanhou Jesus e mais tarde o Profeta, foi companheiro de Ulisses e cavalgou planícies sem fim, com os guerreiros da nação Sioux. Foi peregrino em Meca e Santiago de Compostela, voou com Peter Pan sobre os telhados de Londres, assistiu aos eclipses intermináveis das luas de Júpiter, colheu laranjas nos jardins suspensos de Babilónia e deixou-se perder nas minas de Salomão.

Tinha acabado de abandonar o oráculo do templo de Delfos e preparava-se para desvendar os mistérios da Grande Pirâmide quando sentiu que um leve e intemporal sopro de vento tropical o arrastara de novo para as fronteiras do real. Mesmo ébrio de gozo e aventura, voltara a encontrar o caminho do seu corpo. Sentiu que o sonho se volatizava, que iria voltar para o lado de cá, quando um inesperado e irresistível extraterrestre estendeu a sua mão esquálida e o convidou para entrar na sua nave, plena de cintilações, mistérios e segredos, como um imenso casulo de cristal. Deixou-se afogar naquela torrente de luz e percebeu que o estranho visitante lhe propunha uma grande e derradeira aventura, lá para a longínqua fronteira do universo, à beira da constelação do Cisne, onde os humanos são uma espécie muito rara. Não exibiu a sua visceral prudência e timidez. Não negociou nada, nem sequer o regresso. Pura e simplesmente, aceitou o desafio e partiu.

Eram onze e meia da noite quando a Francisca terminou a lida doméstica, e depois de uma curta passagem pelos programas da televisão, entrou no quarto para ir dormir. A chegada da noite ainda não refrescara aquela atmosfera pesada de Agosto. A luz fraca e esborratada do candeeiro da cómoda atraíra uma borboleta que voluteava impertinente, desenhando fugazes e imprecisas sombras chinesas nas paredes do quarto. Nem quis acreditar quando viu que o seu Mário já lá não estava. Foi até ao corredor e chamou pelo Mário, mas o Mário não respondeu. Dele apenas restavam um leve calor deixado naquele lado da cama e o vago vestígio de que a sua almofada estivera ocupada.


Parte II

A SUA VIAGEM durou onze dias, com curtas e escassas paragens. Extasiado, levaram-no até ao outro lado do universo, como se fosse uma coisa já ali, ao virar da esquina. Inacreditável! Viu explosões de estrelas supernovas, colisão de galáxias e contornou os vórtices devoradores de buracos negros. Arregalou os olhos perante biliões e biliões de inusitados objectos celestes, dançou nos braços espiralados das nebulosas, espreitou de longe planetas desertos e outros habitados, acercou-se de colossais mundos jupiterianos, cruzou-se com Vega, Cassiopeia e Alfa do Centauro, corpúsculos filamentosos, gases, poeiras e destroços de estrelas moribundas, viajou lado a lado com cometas e asteróides e ouviu como ruído de fundo, algumas vozes a articularem línguas estranhas. Sequioso e esfomeado, onze dias depois voltou à Terra, materializou-se nas coordenadas de onde partira, e não reconheceu nada.

Estava deitado no chão, alagado em suor, já não existia a sua cama, nem o seu quarto, nem o seu apartamento do décimo andar, nem o prédio onde habitara, e quando chamou pela Francisca, nem o mais subtil eco do seu chamamento se ouviu. Levantou-se e olhou à sua volta. Tudo lhe era estranho. Fora largado naquilo que parecia ser uma espécie de museu de antiguidades, recheado de mastodônticas locomotivas a vapor, tenders e carruagens centenárias restauradas, manequins fardados de fogueiros, agulheiros, revisores e chefes de estação, e moveu-se pasmado por entre aquelas relíquias reluzentes de outros tempos. Chamou de novo por Francisca e nada, de Francisca nem um suspiro, nem um ai. Atónito, espreitou por um dos janelões e lá fora reconheceu o antigo edifício da Câmara Municipal, o seu jardim fronteiro agora mais cuidado, que tantas vezes atravessara, nas suas idas e vindas de casa para o trabalho, e vice-versa, com aquele pitoresco coreto, recheado de arabescos, onde uma vez por outra tocavam as bandas lá do bairro. Encostou a testa à vidraça, fechou os olhos, reviu passagens da sua viagem galáctica, e pensou de si para si:
- Parece que voltei, mas não voltei, estou exausto e perdido!
Se queria enfrentar o exterior, não era descalço, com uma camiseta e uns calções mínimos que o podia fazer. Despiu e descalçou um manequim de bagageiro, e lá se ataviou o melhor possível. Depois, pelo sim, pelo não, voltou a consultar o calendário do seu relógio. Não há dúvida, tinham passado apenas onze dias, porém, tempo bastante para que tudo ficasse fora do tempo, mas não do lugar.

Saiu do museu e começou a andar em direcção ao jardim, voltando a concluir que, não fosse o caso de ter sido tragado por um qualquer universo paralelo, ou ter esbarrado com alguma deformação do espaço-tempo, não havia razão para duvidar que o seu relógio estava a funcionar correctamente. Curiosamente não havia automóveis e a balbúrdia do trânsito fora substituída por uma pacatez quase provinciana. Havia gente na rua, gente calma à mistura com gente apressada. As roupas que traziam vestidas eram ligeiramente diferentes das suas, mas não deixavam de ser pessoas por isso. Habituado como estava a que as diferenças fossem apenas aparentes, cruzou-se com um homem de meia-idade, pigarreou para aclarar a voz, e perguntou:
- Por favor, sabe dizer-me que dia é hoje?
- É Quarta, respondeu o homem, medindo-o curioso de alto a baixo.
- Não, não é isso, o que quero saber é em que ano e mês é que estamos, insistiu o Mário.
- Bem, hoje é 22 de Agosto de 2108. Está satisfeito? perguntou o outro, com uma ligeira expressão irónica a bailar-lhe no rosto, quase divertido por ver que ainda há gente que não sabe a quantas anda.
O Mário amparou-se a um banco do jardim e quase desfaleceu. Mais sério, o outro olhou-o de esguelha e perguntou:
- Sente-se mal, veja lá, precisa de alguma coisa?
O Mário fechou os olhos, passou a mão pelo queixo com barba de onze dias, balbuciou uma negativa, e começou a fazer contas de cabeça. 2108 menos 2015 dá uma pechincha de 93 anos, e a conclusão foi fácil de tirar. Salvo algum pormenor que lhe estava a escapar, já não valia de nada voltar a chamar pela Francisca.

Nota do autor – A Parte I foi escrita em Março de 1996, e publicada com o título “Viagem Fantástica”. A Parte II foi escrita em Março de 2014. Entre elas há uma ninharia de 18 anos autênticos, comparados com os 93 da ficção global.

sábado, março 22, 2014

Registo Para Memória Futura (97)

«O JORNAL DA MADEIRA, detido pelo Governo Regional do arquipélago, publicou esta manhã as conclusões do Conselho Regional do PSD/Madeira antes mesmo de esta reunião ter terminado.»

in DIÁRIO DE NOTÍCIAS on-line de 22 de Março de 2014

Meu comentário: Deliciosamente jardinesco!

terça-feira, março 18, 2014

Horizonte Nublado

António José Seguro esteve reunido com Pedro Passos Coelho, a pedido deste, para serem encontrados pontos de convergência nas políticas orçamentais, senão mesmo um possível acordo, no quadro da saída de Portugal do programa de ajustamento. No fim do encontro, com parcas declarações, Seguro limitou-se a dizer que o encontro não foi fácil, que há divergências insanáveis, entre o PS e o Governo, sobretudo quanto à estratégia para equilibrar as contas públicas, ficando-se o "contributo" do PS pela votação favorável do Tratado Orçamental e a luz verde à inscrição da regra de ouro na Lei de Enquadramento Orçamental. Portanto, desengane-se, quem esperava mais daquele lanche ajantarado.

E a oposição do PS continua a ficar-se por aqui. É fácil de perceber que vai ficar a ganhar fôlego e a aguardar serenamente que se desenrolem as eleições europeias de 2014, como teste ao estado e à paciência do eleitorado, e essas sim, as legislativas de 2015, para voltarmos, sem rupturas de maior, ao carrocel da fastidiosa alternância. Até lá, a par de arrumar a sua própria casa, vai deixando ao Governo PSD/CDS-PP, tempo e margem de manobra suficientes para, acobertado pela austeridade destinada a amansar os “mercados, mais a dependência externa e o endividamento galopante, continuar a implementar o seu programa ideológico neoliberal, baseado no sistemático esvaziamento do Estado Social, através do emagrecimento e extinção das funções sociais, o desmantelamento desenfreado do sector empresarial do Estado, através de alienações e privatizações em cascata, e a continuação do empobrecimento generalizado do povo português. Pelos vistos, se não for o povo, ninguém mais os consegue travar.

domingo, março 09, 2014

As Boas Intenções


As ditaduras e estados policiais, pela sua própria natureza sequestradora e castradora, convivem mal com a privacidade dos cidadãos, e as democracias, tanto as musculadas como as mais liberais, a pretexto do combate aos terrorismos e outros supostos males dos tempos actuais, têm vindo a convencer-nos que é legítimo abdicarmos de "alguma" liberdade e privacidade, para bem da nossa própria segurança. Para que baixemos os braços e não ofereçamos resistência, não se cansam de repetir vezes sem conta, que se não consentirmos na tal perda de liberdade e intrusão na privacidade, podemos vir a ser as vítimas dos próximos 11 de Setembro. E como se isso não bastasse, e acompanhando o "boom" da internet e das redes sociais, até nós vamos colaborando nessa tarefa, que ainda há uns anos atrás era olhada de soslaio e com reservas, que é a facilidade com que nos "desnudamos", à frente de meio mundo, esquecendo que de boas intenções está o inferno cheio. Na verdade, as empresas que alojam sites e redes sociais (Microsoft, Google, Facebook, Twitter, etc) não se têm coibido de fornecer todos os dados que lhes são exigidos pelos governos, sem se sentirem na mínima obrigação de proteger ou informar desse facto os utilizadores, o que nos leva a considerar que se sentem confortáveis na sua pele de diligentes informadores.

Podemos sempre dizer que não temos nada a esconder, que a nossa vida é transparente, que nada tememos, porque nada devemos, que somos inofensivos, mas há uma coisa que se chamam princípios, e sejam lá quais forem os argumentos invocados (mesmo na lógica do antes prevenir que remediar, ou do mal necessário), é garantido que ninguém gosta de saber que a sua conta bancária anda a ser bisbilhotada, que alguém o anda a espreitar pelo buraco da fechadura, a seguir os seus passos através do olho indiscreto da videovigilância, seguindo o rasto do telemóvel, o uso das caixas multibanco e portagens electrónicas, a coscuvilhar os seus e-mails, a escutar as suas conversas, por muito inocentes ou descomprometidas que sejam, pois o direito à privacidade é um dos sagrados direitos humanos, e não basta os entendidos virem dizer que a globalização, a democratização e a partilha universal dos meios de comunicação também têm os seus inconvenientes e perversas consequências.

É bom não esquecer que os métodos das polícias de hoje, agora apoiadas por uma extensa panóplia de sofisticados recursos tecnológicos, continuam a ser os mesmos das OKRANAs, STASIs, KGBs, SAVAKs, CIAs, DINAs, GESTAPOs, PIDEs/DGSs e outras que tais. A vigilância apertada de todos os nossos movimentos, simpatias, leituras, gostos e preferências, as escutas, o recurso a informadores, recrutados voluntariamente ou sob chantagem, são as ferramentas, o oxigénio e a matéria-prima das suas actividades. Embora maquilhadas com a cores da democracia, são um mundo à parte, operam por conta própria, fora dos limites, não são controladas nem escrutinadas, fazem o que lhes mandam fazer, actuando à margem das leis e segundo as conveniências e interesses de quem manda. Para além do Echelon, Prism e Tempora, complexos sistemas de espionagem global, entrelaçados e geridos pelos EUA e UK, também os há mais domésticos, isto é, cada país terá o seu, com níveis de abrangência e sofisticação variáveis. Em resumo: acabou-se a privacidade, caímos na rede, estamos metidos numa grande caldeirada, somos todos potenciais suspeitos, não há para onde fugir. E as "passwords" que nos dizem para mantermos rigorosamente a recato, está provado que não são invioláveis, pois qualquer "hacker" de meia-tigela sabe como contornar o problema, e passear alegremente dentro do nosso computador pessoal. Esta actividade é punida por lei, mas são um filão onde os governos vão recrutar os seus futuros especialistas e espiões.

Uma coisa é as nações espiarem-se reciprocamente, actividade que é da esfera dos seus jogos de influência, interesses e vantagens competitivas, e outra coisa o andarem a espiar e esgravatar a vida privada dos seus próprios cidadãos, como se de potenciais inimigos se tratassem, mesmo que sejam incapazes de fazer mal a uma mosca. Julian Assange, fundador e principal porta-voz do WikiLeaks, e Edward Snowden, ex-técnico de informática da agência norte-americana de espionagem NSA, não fizeram mais do que entreabrir o cofre dos segredos surripiados, analisados, classificados e armazenados pelos estados, à espera de quem deles faça uso, percebendo-se a razão da fúria das grandes potências (e não só) que caiu sobre eles. Se antes havia desconfianças sobre o abjecto comportamento dos governos, agora passou a haver certezas absolutas. E os grandes mandatários do poder mundial não perdoam que alguém lhes tenha posto o jogo a descoberto, havendo mesmo quem tenha sugerido que ambos os delatores deviam ser liquidados por um qualquer esquadrão da morte, na primeira oportunidade. Sobre a odisseia de Edward Snowden, aguardo com alguma expectativa o livro de Luke Harding, que sobre o tema será publicado neste mês de Março.

sábado, março 08, 2014

Humberto e o Cometa


Foi em Setembro de 1946, quando ainda não tinham assentado as poeiras de Hiroshisma e Nagasaki, que o cometa "Eustache" fez a sua aparição no sistema solar. Descoberto pelo astrónomo amador Anatole Eustache, durante seis semanas o firmamento foi riscado pela sua cauda, e as noites cintilaram com a exuberância da sua cabeleira. Nesse período nasceram centenas de milhares, talvez milhões de crianças, mas nenhuma viria a ser tão famosa quanto o Humberto Alves, filho de um escriturário do Grémio dos Armadores da Pesca do Bacalhau e de uma modista, que viviam ali para os lados do Beato. Debruçando-se sobre aquele novo objecto astronómico, e calculando com o rigor possível a sua órbita, os cientistas concluíram que ele iria surgir nos céus com uma periodicidade de sete anos.

Cedo o pequeno Humberto, de olhos penetrantes e cabelo com caracóis negros, começou a dar mostras de ser muito dotado. Quatro anos depois já lia e escrevia com grande desenvoltura, e quando o "Eustache" voltou a encontrar-se com a Terra em 1953, o jovem fez a sua primeira grande demonstração de criatividade, esculpindo no concurso das construções na areia, uma "Cidade dos Deuses", que deixou perplexos todos aqueles que contemplaram aquela espécie de fusão do Grande Cannyon com Angkor Vat, o Palácio dos Doges, os jardins de Versailles e a catedral de Colónia. Era uma construção tão insólita, destinada a ter uma vida tão efémera, que antes que as primeiras chuvas de Outono terraplanassem aquela "cidadela", transformando-a numa paisagem dunar, foi fotografada e comentada por repórteres de todo o mundo, chegando mesmo a ter direito a uma exuberante e celebrada edição especial da National Geographic.

Nos sete anos seguintes o pequeno Humberto dedicou-se à música. Quando o "Eustache" efectuou a sua nova aparição já o menino-prodígio tinha terminado a sua sinfonia para piano e orquestra "Androceus", que deixou meio mundo embasbacado, depois de uma primeira audição arrancada a ferros, pois ninguém acreditava que fora aquele gaiato, que nunca passara pelo conservatório, o seu compositor. Ser interpretada pela Orquestra Sinfónica de Berlim e editada em disco pela Deutsch Grammophon foi o passo que se seguiu. Se não deu entrevistas, também é verdade que nunca mais compôs música, instalando-se o mistério de como conseguira suplantar Mozart, embora o Humberto se recusasse a ser tratado como um génio precoce. Limitava-se a invadir os terrenos que outros repisavam durante uma vida, fazia uma demonstração do seu talento, e saía tão depressa como tinha entrado, quase em simultâneo com as aparições do errante "Eustache".

Nos sete anos seguintes virou-se para a escrita. Em 1967, ano em que o cometa vagabundo voltou a riscar a abóbada celeste, já o Humberto tinha ultimado o seu romance "Os Valdos". A a primeira reacção dos editores foi de desconfiança e incredulidade, pois a obra podia não passar de uma fraude. Mas não senhor! Afinal as trezentas páginas eram genuínas, uma espécie de mergulho em apneia, na história de uma invulgar família portuguesa. Tornou-se rápidamente num grande êxito editorial, traduzido em dezasseis línguas, publicado no mundo inteiro e com uma tiragem astronómica de duzentos e cinquenta milhões de cópias, em edições que esgotavam num abrir e fechar de olhos, ofuscando Balsac, Dostoievski e Heminguay. Se alguém esperava que o Humberto tivesse encontrado o caminho, iniciando uma carreira de escritor, frustrado ficou. A epopeia de "Os Valdos" foi o seu primeiro e único exercício literário.

O jovem era um caso sério, um mistério dificilmente explicável, tão versátil como um Leonardo dos tempos modernos, e tão esquivo e solitário como um mudo de nascença. Arrumou a máquina de escrever e virou-se para as tintas e os pincéis, ao mesmo tempo que o país entrava em convulsão com a Revolução dos Cravos. Esperou pela oportunidade, e um belo dia, quando o cabeludo "Eustache" voltava a cintilar nos confins do sistema Solar, arrastando exuberante a sua cauda de partículas, montou os andaimes junto daquela imensa parede de vinte e um metros de comprimento e cinco de altura, e começou a esboçar o colossal mural "Lusátria". A pintura levou meses a ser concluída, muito depois do cometa já ter iniciado o seu caminho de regresso às vizinhanças do Sol. Era um espanto, uma jóia de cortar a respiração. Fizeram-se documentários e excursões para apreciar o progresso do trabalho, e quando Humberto terminou o painel, se Almada e Siqueiros ainda por cá andassem, teriam ficado sem fala ou soçobrado de inveja.

Passaram sete anos e as agendas de jornalistas e entendidos, estavam atentas ao mínimo movimento, pois Humberto emergia sempre, com mais uma manifestação de cortar a respiração, quando se avizinhava uma nova aparição do cometa. Mas em vão. Nem o "Eustache" irrompeu das profundezas do universo, nem Humberto saiu para a praça pública. Começaram pesquisas desenfreadas para descobrir o paradeiro do grande e jovem artista, mas nada se soube. O Humberto tinha desaparecido de circulação, mergulhado no mais sombrio e silencioso dos anonimatos, ao passo que os telescópios continuavam a varrer a abóbada celeste, em busca de algum ténue vestígio do inspirador cometa, ou da razão porque tinha deixado de marcar encontro com a Terra. Alguns meses passados, os astrónomos acabaram por admitir que talvez uma variação na sua alongada órbita, tivesse levado a que se aproximasse em demasia do Sol, acontecendo a sua desintegração. Quanto ao Humberto, virados e revirados os quatro cantos do planeta, até hoje ninguém conseguiu dar com ele, mais uma vez se provando que quem não acredita que os astros influenciam a vida das pessoas, não pode estar mais errado.

Da série "Contos Quase Instantâneos"

domingo, março 02, 2014

A Geometria Variável dos Princípios

«Não temos razões para duvidar» [da palavra da Guiné Equatorial]

Declaração do ministro dos Negócios Estrangeiros Rui Machete, na entrevista concedida ao jornal PÚBLICO, sobre a aceitação da adesão da Guiné Equatorial como membro da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP), que se está a realizar sem a garantia de que haverá alteração do ordenamento jurídico daquele país, enquadrando-o como país respeitador da Democracia e dos Direitos Humanos. Lembremos que a Guiné Equatorial é governada desde 1979 por um regime corrupto e ditatorial, presidido por Teodoro Obiang Nguema Mbasogo, que promove a perseguição e prisão indiscriminada de adversários políticos, usando e abusando da pena de morte e de execuções sumárias. Este pedido de adesão à CPLP é interpretado como uma tentativa do regime da Guiné Equatorial romper o seu persistente isolamento internacional.

Meu comentário: Por este andar, ainda um dia verei a República Democrática Popular da Coreia (do Norte) pedir a sua adesão à CPLP, e a coisa compor-se.

sábado, março 01, 2014

Registo Para Memória Futura (96)

«Todos aqueles que produziram os seus descontos e que têm hoje direito às suas reformas ou às suas pensões, deverão mantê-las no futuro, sob pena de o Estado se apropriar daquilo que não é seu.»

Pedro Passos Coelho em 19 de Abril de 2011, durante a campanha eleitoral para as Eleições Legislativas

«A nova Contribuição Extraordinária de Solidariedade (CES), que foi reconfigurada no Orçamento Rectificativo de 2014, passa a abranger 165.497 novos pensionistas, que estavam isentos do seu pagamento, de acordo com a Unidade Técnica de Apoio Orçamental (UTAO). (...) Os números, que foram fornecidos à UTAO pelo Ministério das Finanças, indicam que dos 505.816 pensionistas abrangidos pela medida, 198.635 pertencem ao regime geral de Segurança Social (mais 85.635 do que com a formulação inicial da CES para 2014) e 307.181 pensionistas (mais 79.862 do que anteriormente) pertencem à Caixa Geral de Aposentações (CGA). (...)»

Excerto da notícia do jornal PÚBLICO de 1 de Março de 2014

sexta-feira, fevereiro 28, 2014

O Horror Ortográfico

Com os votos da maioria PSD/CDS-PP, foi aprovada na Assembleia da República a constituição de um grupo de trabalho (mais uma pantominice) que irá acompanhar a aplicação do novo Acordo Ortográfico, conhecido como AO90.

Reverter o processo, fazendo-o volta à estaca zero, dificilmente aconteceria, pois sairia molestado o tão propalado quanto patético "orgulho nacional". Tentar salvá-lo seria uma tarefa ingrata, pois não é melhorável o que é irrecuperável. Acompanhar a sua aplicação é uma solução picaresca, como receitar um placebo para tratar uma doença crónica. De uma forma ou de outra, os estragos já foram feitos, continuando a contaminar e a lançar o caos entre quem usa a língua portuguesa, por muitos e largos anos, sendo dificilmente estabilizada, isto se alguma vez o for. O sistema educacional, propulsor e roda-mandante das línguas vivas, será o que maiores dificuldades e prejuízos sofrerá, pois terá que lidar com uma língua que foi anarquizada por mixordeiros que andaram a brincar aos laboratórios de linguística-experimental, pelos políticos cretinos e ávidos de protagonismo, pelos vassalos dos meios de comunicação social, e por editores e livreiros pouco escrupulosos, mais preocupados com as suas margens de lucro que com os efeitos perversos dos subprodutos com que inundam as escolas do país.

A verdade é que a indiferença e o conformismo que se instalou entre os portugueses, levará a que prevaleça a ideia de que mais ou menos pontapés na ortografia, tanto faz, e todas as confusões que surgirem entre PACTO e PATO, FACTO e FATO, ESPECTADORES ou ESPETADORES, mais as outras excentricidades e facultatividades que forem contaminando a língua, não trarão grande mal ao mundo. Resumindo: é para se ir gostando, por força da habituação, e nada será como dantes. Na verdade, vai ser muito pior. O tempo e o uso dirão de sua justiça.