segunda-feira, junho 05, 2006

A Paixão pela Educação


António Guterres tinha a paixão pela educação e foi o que se viu. Sócrates tem uma paixão pela confrontação e é o que se está a ver. Quem passa os dias a pavonear-se para os telejornais, distribuindo muita publicidade enganosa, é compreensível que não tenha tempo para reflectir sobre os problemas profundos do país, nomeadamente os da educação, achando mais fácil, e com sucesso quase garantido, ostentar “coragem”, “ousadia” e “determinação”, disparando em todas as direcções. O caso da educação é paradigmático. Os professores cumprem um percurso académico, onde são sucessivamente examinados e avaliados, até serem considerados aptos para o desempenho da sua função. Depois disso, e por ausência de um dimensionamento adequado das necessidades, o Estado obriga os mesmos a cumprirem o calvário das colocações, acrescido de longos períodos de precariedade. Andou a formar professores, porém, suspeita que os modelos e valores que congemina e decreta não são adequados aos objectivos. Neste processo, embora os professores não estejam isentos de responsabilidades, não podem ser os únicos a carregar o ónus da degradação do ensino e consequente insucesso escolar. Se alguém falhou foi o próprio sistema, que não acautelou o rigor e a excelência que é exigida à função de ensinar. Como Pilatos, o governo lava as mãos, e corre a acusar os professores de serem os responsáveis pelo fracasso escolar, para logo a seguir avançar com um novo Estatuto da Carreira Docente, que entre outras coisas, além de obrigar a dar aulas da especialidade (com a prévia preparação, testes, classificações, avaliações, aulas de substituição, etc.), obriga os professores ao seguinte:

a) Coordenação pedagógica do ano, ciclo ou curso;
b) Direcção de centros de formação das associações de escolas;
c) Exercício dos cargos de direcção executiva da escola;
d) Coordenação de departamentos curriculares e conselhos de docentes;
e) Orientação da prática pedagógica supervisionada a nível da escola;
f) Coordenação de programas de desenvolvimento;
g) Exercício das funções de professor supervisor;
h) Participação nos júris das provas nacionais de avaliação de conhecimentos ecompetências para admissão na carreira ou da prova de avaliação e discussãocurricular para acesso à categoria.

E ainda:

1 – O exercício de funções docentes em estabelecimentos de educação ou de ensinopúblicos é feito em regime de exclusividade.
2 – O regime de exclusividade implica a renúncia ao exercício de quaisquer outras actividades ou funções de natureza profissional, públicas ou privadas, remuneradas ou não, salvo nos casos previstos nos números seguintes.
3 –É permitida a acumulação do exercício de funções docentes em estabelecimentos de educação ou de ensino públicos com:
a) Actividades de carácter ocasional que possam ser consideradas como complemento da actividade docente;
b) O exercício de funções docentes em outros estabelecimentos de educação ou de ensino.
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Depois de meditarmos sobre o conteúdo desta lista, e mesmo admitindo que os professores a conseguiam cumprir minimamente, sobraria algum tempo para um professor ter alguma vida pessoal, mesmo que insignificante? Duvido! Mais ainda. Quem, apesar de tudo, conseguisse ter tempos livres, não os poderia gastar a seu bel-prazer. Aos professores, quais escravos acorrentados às galés, está-lhes vedado entregarem-se a outras tarefas, remuneradas ou não, como seja o voluntariado. Não contente com isso, o governo avança com a avaliação anual dos professores, uma espécie de cutelo do carrasco que fica a pairar sobre o seu quotidiano, ao mesmo tempo que lhe dá um toque de humilhação, atribuindo aos pais e encarregados de educação, uma fatia dessa mesma avaliação. Pior é impossível! O Estado, incapaz de se colocar no seu lugar, socorre-se do “pogrom” medievalóide, entregando a outros a maquiavélica função de levar os professores perante uma espécie de mesa inquisitorial, inabilitada para descortinar inaptidões, mas pronta a sugerir irradiações. Compreende-se e aceita-se que os professores, ao longo da sua carreira se sujeitem a uma contínua actualização e avaliação de conhecimentos, nas vertentes científica e pedagógica, mas que isso seja levado a cabo por quem tem capacidade para tal. O que não é o caso dos pais dos alunos, seja porque, genericamente, não possuem competência para tal, seja porque os seus juízos têm tendência para se deixarem contaminar pelos legítimos interesses que condicionam qualquer progenitura.
Já passou o tempo de andarmos a fazer ensaios e experimentações, arranjando depois bodes expiatórios para justificar o que continua a correr mal, seja porque a paixão foi tão grande que cegou o político, ou porque nos ministérios há gabinetes e comissões em demasia, e muito pouca gente competente para os ocupar. Por essa razão, e não só, eu não quereria ser professor em Portugal.

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