sábado, janeiro 19, 2008

A Democracia em Queda

A

Amigo Benedetto (de Asti, Itália):
Tu e a tua Itália já passaram por muito, em termos políticos, e não esqueço que estive contigo em 1978, quando era grande a ansiedade que se vivia no teu país. Aldo Moro, o democrata cristão que tinha tido a ousadia de subscrever o COMPROMISSO HISTÓRICO com os comunistas, estava sequestrado, e aquilo foi um golpe muito bem orquestrado, conduzido pela extrema–esquerda, sabe-se lá com que acordos e dividendos, para que tudo ficasse na mesma ou ainda pior.
Passaram 30 anos. Aqui não há sequestros nem terrorismo na verdadeira acepção da palavra, mas há aquilo que eufemísticamente se vai chamando de suposta “revolução” democrática, fundamentada numa “maioria silenciosa” que de tão usada e maltratada, baixou os braços e se desinteressou do futuro.
Aquela democracia que na Grécia, tua vizinha, era a voz do povo, com expressão participativa e representativa, aqui em Portugal, 34 anos depois da revolução de 25 de Abril, que fez questão de escorraçar a ditadura provinciana, beata e rançosa do Salazar, está em risco de fenecer, como fenecem todos os cravos, se forem mais os que ignoram tal símbolo da liberdade, do que aqueles que o cultivam e amparam.
Eu vou-te contar esta história de estarrecer.
O professor Vital Moreira, em 27.6.2005, em artigo publicado no jornal Público, e a propósito da intenção de vir a ser elaborada nova legislação eleitoral para as autarquias, entre outras coisas, escreveu o seguinte:
“...
O que é inaceitável no projecto de reforma do Partido Socialista são duas razões essenciais: (i) o presidencialismo municipal anómalo que a reforma criaria, concentrando todo o poder no presidente da câmara, que passaria a ser o único verdadeiro titular do poder executivo, incluindo a livre escolha dos vereadores; (ii) a eleição conjunta do presidente da câmara e da assembleia municipal, acabando com a actual eleição separada. Na verdade, se esta reforma fosse para a frente, deixaria de ter sentido falar em câmara municipal, que ficaria reduzida ao presidente, "assessorado" por alguns vereadores/ajudantes, que ele escolheria e substituiria com quase total liberdade.Mais grave do que isso, a eleição conjunta implicaria a natural "bipolarização" não somente na eleição do presidente da câmara municipal, mas também ao nível da eleição da assembleia municipal, garantindo na maior parte dos casos uma maioria fiel e obediente ao presidente, tanto mais que o candidato a presidente se encarregaria de controlar a composição da lista a que ele próprio irá presidir.A ameaça à democracia municipal desta proposta de reforma está na inaudita concentração do poder nas mãos do presidente da câmara e na domesticação política das assembleias municipais. Se se quer ter um regime presidencialista no governo municipal, então impõe-se ser coerente, de acordo com os seguintes requisitos: (i) eleição separada do presidente da câmara e da assembleia; (ii) redução dos actuais poderes da câmara municipal; (iii) reforço dos meios de controlo do executivo pela assembleia.
...”
Como é óbvio, subscrevo inteiramente este ponto de vista, muito embora na prática esta concordância já não tenha qualquer valor prático. Além disso, nem sei se o autor destas linhas mantém hoje a mesma opinião. Porém, em prejuízo da democracia, ontem, 18 de Janeiro de 2008, os grupos parlamentares do PS e do PSD, quase às escondidas, esquivos a declarações e determinados na missão de esvaziar de sentido e enfraquecer a vereação do poder municipal, aprovaram na generalidade a lei eleitoral autárquica, que estabelece as novas regras. Enquanto que os partidos da oposição (PCP, Verdes, BE e CDS) acusaram a nova lei de distorcer o sistema político democrático, violando a regra constitucional da proporcionalidade, além de favorecer o caciquismo no poder local, já o PS e PSD, unidos e com os mesmos propósitos, argumentaram que as novas regras, por eles cozinhadas, permitem maior estabilidade, governabilidade, transparência e eficiência nos órgãos autárquicos, enfim, tudo conversa fiada. Se assim não fosse, porque razão a opinião pública foi arredada da discussão, e os meios de comunicação social, poucos ou nenhuns parágrafos dedicaram ao assunto?
Suspeito que no futuro, o “grande centrão” formado pelo PS e PSD, queira aplicar às eleições legislativas, as mesmas regras da desproporcionalidade, abrindo caminho a uma representação parlamentar partilhada exclusivamente pelos “dois grandes”, e condenando à erradicação/extinção os partidos que não detenham votações expressivas (ou que entretanto sobreviveram à famigerada lei que exige um mínimo de 5.000 militantes inscritos). Tempos vão, tempos vêm. Resumindo, estamos entregues aos vendilhões que traficam a liberdade e a democracia, em troca de poder absoluto, benesses, riqueza pessoal e vá-se lá saber mais o quê.
Caríssimo Benedetto, chega de te contar desgraças. Faço votos que a tua pequena Lionor, finalmente, se tenha doutorado, com aquela distinção que ela merece, e que a Francesca continue a deleitar as visitas com aquele refresco à base de Limoncello de Capri e os substanciais pratos de massas napolitanas.
Aguardo as tuas notícias.

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