A instauração do regime republicano em Portugal está quase a fazer um século de vida, tendo sido marcado por três períodos, cada um deles com a sua identidade própria. É certo que o mundo evolui, as condições da sociedade de há cem anos não são as mesmas de hoje, a História não se repete, porém, a propensão para tropeçar em erros do mesmo tipo, continua a ser uma constante da natureza humana, sobretudo quando se fica indiferente ao capital de experiência acumulada. Por isso, convém recordar a advertência formulada por George Santayana, quando afirmou que se não tirarmos algumas lições do passado, corremos o risco de voltar a repeti-lo. Hoje, quase 32 anos depois da restauração da democracia com a Revolução do 25 de Abril, e quando há tantas vozes a apregoarem que o regime entrou em crise, seria útil, antes de propor a terapêutica, elaborar um diagnóstico, radiografando o nosso processo histórico, em busca das causas profundas para o nosso actual estado de desalento.
Bem vistas as coisas, sempre fomos melhores gastadores que investidores. Após o grande crescimento provocado pelos descobrimentos, iniciados no século XV com a dinastia de Avis, a riqueza gerada pelo comércio com as Índias e o Brasil, em que a coroa era o grande beneficiário e administrador, não teve uma aplicação notória, porque faltava gente preparada para gerir e multiplicar a riqueza. Demos novos mundos ao mundo, mas quem disso se aproveitou foram os outros, até que, pouco a pouco, e pelas mais variadas razões, acabámos em Álcacer-Quibir e anexados por Castela, abraçados a um “sebastianismo” redutor.
Sessenta anos depois, e apesar de restaurada a independência em1640, iniciou-se com Portugal um longo e lento processo de declínio, que se veio estendendo até aos dias de hoje. No reinado de D.João V, o ouro que vinha do Brasil foi usado para satisfazer a megalomania e a ostentação real, como a construção do convento de Mafra e a transformação do país numa espécie de palco de uma grande ópera sacra, em que a Igreja era o actor principal. As prioridades da realeza tinham muito a ver com os seus hábitos e desejos sumptuários, e nada a ver com a valorização e beneficiação do país. Excepção deste estado de coisas foi o reinado de D.José e do seu todo-poderoso ministro Sebastião José de Carvalho e Melo (Marquês de Pombal), cultor do despotismo esclarecido, que a par do reforço do poder régio, com a perseguição das vozes e poderes dissonantes, além de reconstruir a Lisboa mártir do terramoto de1755, se abalançou a modernizar o país, equipando-o com indústrias, das quais muitas foram sobrevivendo até aos nossos dias. Porém, eram também muitos os “estrangeirados”, como D.Luís da Cunha, Luís António Verney e outros, que viviam longe do provincianismo lusitano, das arremetidas da Inquisição e do cheiro a carne queimada dos autos-de-fé. Portugal era um deserto onde não havia políticos, nem economistas, nem educação, e os poucos homens de letras, sábios e cientistas que havia, apenas tinham oportunidade de trabalhar em relativa tranquilidade, obtendo estímulos e reconhecimento nos exílios forçados, longe do país, aliás, condição que continua a verificar-se nos dias de hoje, embora com outras motivações. Nos últimos 500 anos da sua história editorial, Portugal sofreu 420 anos de censura, iniciada com as reais mesas censórias e os autos-de-fé da Santa Inquisição, e a acabar nas rasuras do lápis azul dos Serviços de Censura do Estado Novo e nas apreensões da polícia política, concluindo-se que a publicação de livros em Portugal foi uma actividade cultural levada a cabo com uma taxa de repressão de 84 por cento. Isso explica porque é que os movimentos e as novas ideias que eclodiram além fronteiras, ou chegavam demasiado tarde, ou nunca chegavam, porque é que predominava o analfabetismo e se glorificava a ignorância e a pobreza de espírito, com as vidas ocupadas exclusivamente com a sobrevivência. Isso acaba por explicar também porque temos, na actualidade, 1 milhão de analfabetos, o que correspondente a 9% da população do país, isto sem contar com o analfabetismo funcional e a iliteracia, agravando-se o precoce abandono escolar, causa primeira da baixa qualificação da população e de um atraso congénito. Progressivamente, ia-se desinvestindo nas pessoas, deixando grassar a ignorância, a desqualificação, a boçalidade. Num país eminentemente agrícola, os portugueses limitavam-se a serem pagadores de impostos, arrebanhados aos campos, para as obras que entretanto se iam fazendo, ou para as toscas e indisciplinadas fileiras do exército, quando era preciso travar alguma guerra. Quanto aos outros, que por uma razão ou outra, ficavam fora deste esquema, que se amanhassem.
A primeira República, organizada à volta de um regime eminentemente parlamentar, durou perto de 16 anos e iniciou-se com a implantação da república no dia 5 de Outubro de 1910. Era uma época em que a monarquia, com o regicídio ainda fresco na memória de todos, tinha atingido o ponto mais alto do descrédito, tornando-se incapaz de gerir crises, encontrar soluções e consensos. Naquele dia, a instauração da república esteve a um passo de não se concretizar, por demasiado improviso e falta de coordenação. Quando os revoltosos republicanos, descrentes do sucesso, já debandavam às mãos cheias das barricadas da Rotunda, convictos que a sua aventura havia fracassado, porque o exército se demarcara do golpe e o seu comandante se suicidou, o impensável aconteceu: a família real, com as malas já feitas, decidiu, pelo sim, pelo não, abandonar Portugal, rumo ao exílio em Inglaterra. O poder não caiu na rua. A queda da monarquia acabou por ser uma das mudanças de regime mais pacíficas e indolores que se conhecem, chegando a instauração do novo regime a ser divulgado, nos locais mais recônditos do país, através do telégrafo. Entre incrédulo e atabalhoado, o impreparado aparelho republicano acabou por ocupar o vácuo criado, mas a ambição de poder era desmedida, de tal modo que, num curto espaço de tempo, o antigo grande Partido Republicado acabou por se pulverizar numa miríade de novos partidos, alguns deles bem insignificantes e quase nada representativos.
Desta primeira experiência republicana, em que o país de viu liberto de uma monarquia moribunda e ineficaz, ficou-nos um período algo turbulento, de ânimos exaltados, fruto de um novo regime que experimentava, pela primeira vez, o pleno usufruto do poder, muito embora os seus principais protagonistas já houvessem passado pelas instituições da monarquia constitucional. O aspecto mais marcante deste primeiro período republicano foi o extremo anti clericalismo, que culminou na expulsão das ordens religiosas e a nacionalização dos bens da igreja.
A monarquia havia negligenciado o estado educacional e cultural do país, em benefício de iniciativas de cariz material, como sejam a implantação da rede de caminhos-de-ferro e alguns troços de estradas. A monarquia preocupava-se com as coisas, ao passo que a república, pelo contrário, interessava-se pelas pessoas, criando o Ministério da Educação Pública, promovendo a instalação de centros de ensino e fazendo da disseminação da educação básica uma grande causa.
O excessivo peso institucional do Congresso na vida política do país, e uma permanente anarquia parlamentar, que fazia e desfazia governos entre surtidas monárquicas, arruaças bombistas, tiroteio, assassinatos e revoluções palacianas, foi a característica mais marcante da vida política da primeira república. Portugal era, entre os principais países da Europa, recordista em instabilidade parlamentar, presidencial e governamental, levando a que começasse a grassar o abstencionismo junto do eleitorado, não como censura ou rejeição do jovem regime propriamente dito, mas sim fruto de promessas incumpridas, múltiplas traições e desilusões protagonizadas pelos políticos, que facilmente esqueciam ser a governação a sua principal função. Aqueles consumiam todas as suas energias nas guerrilhas entre partidos adversários, e também nas lutas internas e interesses mesquinhos dos seus próprios partidos, e não a encontrarem soluções para as muitas carências do país e da população. Em dezasseis anos de regime republicano houve sete eleições para o Parlamento, oito para a Presidência da República e quarenta e cinco ministérios, com estes últimos a terem uma duração média de escassos quatro meses. O Parlamento, órgão que interferia em todos os detalhes da vida governativa, se por um lado constituía um poderoso travão às ambições e um filtro da corrupção política, mantendo a governação sob permanente controlo, por outro, apresentava-se como um permanente foco de instabilidade, fazendo cair ministérios, quantas vezes por questões menores e insignificantes.
O país acabou ainda por se envolver na fase final da Primeira Grande Guerra, por força dos compromissos que a aliança com a Inglaterra impunha, bem como a salvaguarda da integridade do seu império colonial, por um lado ameaçado pelos alemães, e por outro, sujeito a uma eventual partilha, caso a derrota dos alemães se concretizasse. Esta intervenção foi levada a cabo por um corpo expedicionário de 50.000 homens, indisciplinados e mal preparados, que foram despejados nos campos de batalha da Flandres em 1917. Lançados no braseiro e enfrentando as divisões alemãs, esta intervenção acabou por se traduzir em 6.000 prisioneiros, 7.000 mortos, inúmeros estropiados e gaseados, e deixando os cofres públicos vazios. De crise em crise e com ditaduras de permeio, o regime sobreviveu mais oito anos, até que sobreveio o golpe militar de 28 de Maio de 1926, capitaneado pelo general Gomes da Costa, que redundou, durante os dois primeiros anos, numa ditadura militar, resvalando depois para a ditadura do Estado Novo.
A segunda República, foi um período marcado pela ditadura de Oliveira Salazar, um professor de finanças, que se arvorou em salvador da pátria e edificou um regime que baptizou de Estado Novo. Grassou durante 48 longos anos, e caracterizou-se por uma inquestionável estabilidade governativa, própria dos governos autoritários. Teve 3 Presidentes da República (Óscar Carmona, Craveiro Lopes e Américo Thomás) e 2 governos, o primeiro, o mais longo de todos, conduzido com mão de ferro pelo todo-poderoso Prof. Salazar, e o último, pelo Prof. Marcello Caetano, que fora em tempos delfim do ditador, e que assumiu as funções, quando o primeiro, física e mentalmente incapacitado por um acidente, foi retirado de funções. Tal estabilidade governativa foi feita à custa do cerceamento das liberdades fundamentais e da instauração de um regime que se arrogava ser, para consumo externo, uma “democracia orgânica”, mas que na realidade não passava de um simulacro caricatural do sistema democrático. Cá dentro grassava um estado policial e repressivo, onde o essencial era saber ler, escrever, contar, rezar e trabalhar sem questionar. Ter acesso a mais altos voos era um privilégio a que muito poucos tinham acesso, sobretudo depois de manifestarem, por obras e pensamentos, a sua inquestionável fidelidade ao regime.
Os actuais adeptos do longo consulado salazarista esforçam-se por apagar tudo o que diga respeito ao estado policial-fascista que foi erigido, adaptado do modelo orgânico e institucional de Mussolini e da máquina repressiva do III Reich alemão. Preferem enaltecer outras iniciativas do regime, tais como sublinhar o meritório esforço que o ditador despendeu a equilibrar as contas públicas (o tal défice todo-poderoso) e a promover a acumulação de reservas de ouro, para arrancar o país à extrema pobreza e ao atraso em que a 1ª. República o deixara, objectivo que não concretizou, mascarando-o com uma paz e a segurança feita à custa da limitação das liberdades. Na verdade, o povo pouco mais ganhou que a segurança das prisões e a paz dos cemitérios. Por outro lado, teríamos ficado a dever-lhe também a manutenção do país ao abrigo de todas as consequências geradas pela Segunda Guerra Mundial, não sem que antes disso, em 1936, haja apoiado descaradamente o pronunciamento e a guerra civil espanhola, desencadeada pelo futuro ditador Franco. A vizinhança da novel República Espanhola era coisa que não lhe interessava, já que esta poderia tornar-se uma potencial exportadora para Portugal das "perigosas" ideias e práticas políticas que o Estado Novo estava tão empenhado em erradicar. Na altura da Segunda Guerra Mundial, momento alto em que as democracias se confrontaram com os fascismos, optou por escudar-se numa conspícua e bizarra neutralidade, porque ao envolver-se no conflito, estaria a comprometer os seus desígnios. Salazar era astuto, tinha um projecto pessoal de poder e sabia que só o poderia levar à prática com sucesso, se isolasse o país, disciplinando e silenciando as suas vozes e pensamento. Não queria partilhar esse projecto com ninguém, nem tão pouco tolerava que alguém nele se viesse intrometer. Desde o primeiro momento que pisara os corredores do poder, Salazar sabia o que queria, e para onde ia. O objectivo era submeter o povo à autoridade secular e religiosa, com padrões mínimos de instrução, sem ambições, reduzido à condição de força de trabalho humilde, domesticada e quase-forçada, arredado das ideias e opiniões contrárias ao regime, por uma impiedosa e castradora censura dos meios de comunicação social, permanentemente vigiado e reprimido pela polícia política, que se encarregava de distribuir os adversários políticos do regime, pela colónia penal do Tarrafal, e as prisões do Aljube, Caxias e Peniche.
A riqueza que entretanto ia sendo acumulada pouco ou nada tinha a ver com um tecido económico dinâmico, gerador de riqueza e de trabalho. As grandes fortunas iam-se fazendo à custa da exploração desmedida que o mossuliniano Estatuto Nacional do Trabalho permitia, ao mesmo tempo que o país ia vivendo de uma pseudo-indústria de turismo, do investimento estrangeiro e dos monopólios que estavam nas mãos de meia dúzia de famílias. Em vez de abrir o país ao desenvolvimento e progresso, deixou que o país se fosse exaurindo na exportação de mão-de-obra, através das sucessivas vagas de emigração, vindo depois a encherem-se os cofres do estado com as remessas dessa mesma emigração, num simulacro de prosperidade. As grandes conquista, descobertas, escolas e ideias que irrompiam pelo mundo fora, apenas nos afloravam, quase como meras curiosidades, dissimuladas por entre alguma informação filtrada que ia chegando até nós, importada de forma clandestina. Eleições era uma matéria rigorosamente controlada pelo aparelho repressivo e policial, não deixando que as mensagens oposicionistas chegassem aos destinatários, nem que as urnas fornecessem surpresas. Já em 1948 havia ocorrido um primeiro sobressalto com a candidatura oposicionista de Norton de Matos, mas foi nas eleições presidenciais de 1958, quando se apresentou como candidato da oposição o general Humberto Delgado, um “desertor” das fileiras do Estado Novo, que o regime tremeu. Foi tal o susto (Delgado teria ganho as eleições, caso a sua candidatura não houvesse sofrido toda a espécie de obstruções e os resultados não tivessem sido manipulados) que de imediato o regime procedeu a uma alteração constitucional, acabando com o sufrágio universal do presidente, e deixando a sua eleição/nomeação entregue à assembleia nacional, totalmente dominada pelo regime, travestida das funções de cinzento colégio eleitoral, para o cumprir as futuras investiduras. Quanto a Delgado, que apesar de exilado se mantinha activo, logo incómodo para o regime, viria a ser assassinado pela polícia política, em 1965, junto à fronteira de Espanha.
Depois disto, imerso numa imensa mediocridade e combatido por largos sectores da sociedade, fosse às claras ou na clandestinidade, o regime ia entrando em decadência. Sendo quase certo que o regime dificilmente sobreviveria ao seu mentor, a guerra colonial que irrompeu em 1961, fruto da mesquinhez e do isolacionismo salazarista, que teimava em ignorar os novos tempos que emergiram após a Segunda Guerra Mundial, e que traziam a marca da promoção e emancipação dos povos, acabou por ser o derradeiro balão de oxigénio que manteve vivo o regime, apenas adiando o colapso que já se vinha anunciando.
Acabaram por ser os militares, endurecidos por essa guerra colonial interminável, que se estendia por três frentes, e cuja vitória militar se tornava cada vez mais improvável, que se rebelaram e desceram à rua em 25 de Abril, apeando o regime, e manifestando a intenção de devolverem, ao país e à república, a sua matriz republicana e democrática. Em boa verdade, quando o regime caiu em 25 de Abril de 1974, para além da exaustão resultante de 48 anos de autoritarismo e de 13 anos de guerra, que consumia homens e recursos, o país ainda era, tal como fim da primeira república, e no dealbar do Estado Novo, em 1926, para além de um anacronismo político, a nação mais pobre e atrasada da Europa.
A terceira República, engloba o período que se estende, desde a revolução do 25 de Abril de 1974, até à actualidade. Desmembrou o estado totalitário, e na fase mais aguda de um conturbado processo revolucionários, procedeu ao desmembramento dos monopólios, a um arrojado programa de nacionalizações e reforma agrária. Levou a cabo a descolonização, acabando por fazer regredir o espaço territorial português para as fronteiras anteriores aos descobrimentos, foi gerador de uma nova Constituição, que reorganizou o país à volta de um regime democrático de matriz semi-presidencial, estruturado à volta de meia dúzia de partidos políticos, que passaram a cobrir, com razoável eficácia, o espectro sociológico do país. Até à data, teve 5 Presidentes da República (o sexto vai tomar posse dentro de dias), 6 Governos Provisórios e 16 Governos Constitucionais. Definitivamente encerrado o processo relativo ao seu passado colonial, com a adesão de Portugal à União Europeia, em 1986, o país passou a deslocar os seus centros de interesse para uma Europa que, sendo já uma potência económica, sem ser ainda uma unidade política, tem vindo a colher novas adesões, que também vão multiplicando as contradições e dificuldades.
Enumerar aqui todos os governos que até hoje se sucederam na ribalta política, seria fastidioso, além de que, dada a sua proximidade temporal, ainda persistem muitas memórias deles. Grosso modo, diremos apenas que todos eles, quase sem nenhuma excepção, enveredaram por promover vagas sucessivas de privatizações, restituindo os mais importantes sectores económicos e financeiros ao grande capital, reduzindo ao mínimo o sector empresarial do estado, mesmo em áreas consideradas estratégicas.
Por outro lado, entre 1985 e 1995, os muitos milhões de euros que entraram no país, vindos da União Europeia, esvaíram-se sabe-se lá para onde, e acabaram por não criar os alicerces duradouros e virados para a criação de riqueza produtiva, ficando muito longe de promover a qualificação dos portugueses, que continua a decair. Tal como o ouro do Brasil referido na introdução, os milhões europeus esvaíram-se em obras de estadão e pouco ou nada contribuíram para a criação de oportunidades, o revigoramento do tecido económico e a consequente elevação das condições de vida do país, ao passo que a agricultura e as pescas, longe de se modernizarem, acabaram desmanteladas e quase reduzidas a actividades de subsistência. Onde foram desaguar aqueles caudalosos rios de dinheiro? Quem deles beneficiou?
Deixaram-nos muitos milhares de quilómetros de auto-estradas, muitos viadutos, muitos “elefantes brancos” e uma indústria de betão que entra logo em crise assim que abranda a sofreguidão edificadora do estado, ao passo que a reorientação dos recursos e das competências ficaram-se pelas boas intenções.
A modernização e o desenvolvimento do país são, na actualidade, mais uma aparência que uma realidade, mantendo-se o país, apesar das quotidianas injecções de subsídios comunitários, um exemplo de descoordenação, ausência de rigor e sistemática falha de objectivos, o que conduz a que Portugal permaneça como um dos elos mais fracos da cadeia europeia, ocupando insistentemente os últimos lugares do “ranking” europeu.
O próprio Estado e a Administração Pública só aparentemente se modernizaram, sendo muitos os processos ainda tradicionais, que datam do século XIX, dos primórdios da república e do extenso consulado salazarista.
Do mais anónimo cidadão, até ao mais notável empresário, todos exigem ser beneficiários do subsidiarismo crónico que se instalou no país, o qual funciona como um sistema compensatório alternativo, face à ausência de projectos estruturantes, à ineficácia do aparelho administrativo e à mesquinhez e incompetência dos actores políticos. Com a alternância do poder, instalou-se a disseminação de clientelismos, secretas promiscuidades entre o poder político e os agentes económicos, o que potencia a difusão de favorecimentos e a instalação de uma generalizada corrupção, que alastra os todos os sectores da sociedade. Os programas de governo acabaram por tornar-se réplicas de outros anteriores, com ligeiras alterações de interesse e circunstância, onde está ausente qualquer vestígio de inovação e imaginação, sendo rara e minimamente cumpridos, quando não acontece serem cumpridos às avessas.
O guterrismo pensava que conseguia governar o país sem mexer uma palha, e que os problemas se resolveriam por si. O barrosismo pensava que conseguia governar o país virando tudo do avesso. Quanto ao santanismo, até há poucos meses, ainda pensava que conseguia governar como se tudo não passasse de um espectáculo de circo, com distribuição de caramelos pelo meio. Curiosamente, o socialista José Sócrates, apoiado numa maioria absoluta e na cartilha da “dama de ferro”, acaba por levar à prática as políticas que o barrosismo e o santanismo, ou não tiveram tempo, ou nunca se afoitaram a aplicar.
Portugal sempre foi uma identidade bem demarcada no contexto ibérico, porém, neste momento, dada a sua irrelevância económica, começa a assistir-se à perda de voz activa nas instâncias europeias, à deserção e transferência de muitos centros de decisão para Espanha, o que a breve prazo levará à diluição da nossa importância política, passando a ostentarmos, em termos de importância, o estatuto de região. Não é o regime democrático, como alguns sebastianistas pretendem, que é responsável pelo estado deplorável em que nos encontramos, mais sim quem tendo nas mãos as alavancas do poder, sob a capa e em nome dessa mesma democracia, gesto a gesto, passo a passo, empurraram o país para a presente situação. Hoje, tal como em 1926, aquando dos primeiros passos de Salazar pelos corredores do poder, é a questão do crónico défice orçamental que mobiliza, agora de forma contraditória, atabalhoada e imprecisa, alguns arremedos de gestão dos dinheiros públicos. Hoje, com o tempo mais que esgotado, torna-se necessário efectuar um salto qualitativo, já que, para além de alguns simulacros de modernização, panaceias e mezinhas avulsas, que descambaram em outras tantas experiências fracassadas, fomos incapazes de conceber e introduzir, no momento próprio, projectos de crescimento, coerente e sustentado, que fossem considerados e unanimemente aceites como desígnios e causas nacionais.
Será isto uma terceira República que reedita os vícios da primeira, ou apenas mais um lanço descendente, feito de compromissos secretamente lavrados, em tempos de cega globalização, entre mercenários da coisa pública e do apátrida sector capitalista, para que o país se apague?
Bem vistas as coisas, sempre fomos melhores gastadores que investidores. Após o grande crescimento provocado pelos descobrimentos, iniciados no século XV com a dinastia de Avis, a riqueza gerada pelo comércio com as Índias e o Brasil, em que a coroa era o grande beneficiário e administrador, não teve uma aplicação notória, porque faltava gente preparada para gerir e multiplicar a riqueza. Demos novos mundos ao mundo, mas quem disso se aproveitou foram os outros, até que, pouco a pouco, e pelas mais variadas razões, acabámos em Álcacer-Quibir e anexados por Castela, abraçados a um “sebastianismo” redutor.
Sessenta anos depois, e apesar de restaurada a independência em1640, iniciou-se com Portugal um longo e lento processo de declínio, que se veio estendendo até aos dias de hoje. No reinado de D.João V, o ouro que vinha do Brasil foi usado para satisfazer a megalomania e a ostentação real, como a construção do convento de Mafra e a transformação do país numa espécie de palco de uma grande ópera sacra, em que a Igreja era o actor principal. As prioridades da realeza tinham muito a ver com os seus hábitos e desejos sumptuários, e nada a ver com a valorização e beneficiação do país. Excepção deste estado de coisas foi o reinado de D.José e do seu todo-poderoso ministro Sebastião José de Carvalho e Melo (Marquês de Pombal), cultor do despotismo esclarecido, que a par do reforço do poder régio, com a perseguição das vozes e poderes dissonantes, além de reconstruir a Lisboa mártir do terramoto de1755, se abalançou a modernizar o país, equipando-o com indústrias, das quais muitas foram sobrevivendo até aos nossos dias. Porém, eram também muitos os “estrangeirados”, como D.Luís da Cunha, Luís António Verney e outros, que viviam longe do provincianismo lusitano, das arremetidas da Inquisição e do cheiro a carne queimada dos autos-de-fé. Portugal era um deserto onde não havia políticos, nem economistas, nem educação, e os poucos homens de letras, sábios e cientistas que havia, apenas tinham oportunidade de trabalhar em relativa tranquilidade, obtendo estímulos e reconhecimento nos exílios forçados, longe do país, aliás, condição que continua a verificar-se nos dias de hoje, embora com outras motivações. Nos últimos 500 anos da sua história editorial, Portugal sofreu 420 anos de censura, iniciada com as reais mesas censórias e os autos-de-fé da Santa Inquisição, e a acabar nas rasuras do lápis azul dos Serviços de Censura do Estado Novo e nas apreensões da polícia política, concluindo-se que a publicação de livros em Portugal foi uma actividade cultural levada a cabo com uma taxa de repressão de 84 por cento. Isso explica porque é que os movimentos e as novas ideias que eclodiram além fronteiras, ou chegavam demasiado tarde, ou nunca chegavam, porque é que predominava o analfabetismo e se glorificava a ignorância e a pobreza de espírito, com as vidas ocupadas exclusivamente com a sobrevivência. Isso acaba por explicar também porque temos, na actualidade, 1 milhão de analfabetos, o que correspondente a 9% da população do país, isto sem contar com o analfabetismo funcional e a iliteracia, agravando-se o precoce abandono escolar, causa primeira da baixa qualificação da população e de um atraso congénito. Progressivamente, ia-se desinvestindo nas pessoas, deixando grassar a ignorância, a desqualificação, a boçalidade. Num país eminentemente agrícola, os portugueses limitavam-se a serem pagadores de impostos, arrebanhados aos campos, para as obras que entretanto se iam fazendo, ou para as toscas e indisciplinadas fileiras do exército, quando era preciso travar alguma guerra. Quanto aos outros, que por uma razão ou outra, ficavam fora deste esquema, que se amanhassem.
A primeira República, organizada à volta de um regime eminentemente parlamentar, durou perto de 16 anos e iniciou-se com a implantação da república no dia 5 de Outubro de 1910. Era uma época em que a monarquia, com o regicídio ainda fresco na memória de todos, tinha atingido o ponto mais alto do descrédito, tornando-se incapaz de gerir crises, encontrar soluções e consensos. Naquele dia, a instauração da república esteve a um passo de não se concretizar, por demasiado improviso e falta de coordenação. Quando os revoltosos republicanos, descrentes do sucesso, já debandavam às mãos cheias das barricadas da Rotunda, convictos que a sua aventura havia fracassado, porque o exército se demarcara do golpe e o seu comandante se suicidou, o impensável aconteceu: a família real, com as malas já feitas, decidiu, pelo sim, pelo não, abandonar Portugal, rumo ao exílio em Inglaterra. O poder não caiu na rua. A queda da monarquia acabou por ser uma das mudanças de regime mais pacíficas e indolores que se conhecem, chegando a instauração do novo regime a ser divulgado, nos locais mais recônditos do país, através do telégrafo. Entre incrédulo e atabalhoado, o impreparado aparelho republicano acabou por ocupar o vácuo criado, mas a ambição de poder era desmedida, de tal modo que, num curto espaço de tempo, o antigo grande Partido Republicado acabou por se pulverizar numa miríade de novos partidos, alguns deles bem insignificantes e quase nada representativos.
Desta primeira experiência republicana, em que o país de viu liberto de uma monarquia moribunda e ineficaz, ficou-nos um período algo turbulento, de ânimos exaltados, fruto de um novo regime que experimentava, pela primeira vez, o pleno usufruto do poder, muito embora os seus principais protagonistas já houvessem passado pelas instituições da monarquia constitucional. O aspecto mais marcante deste primeiro período republicano foi o extremo anti clericalismo, que culminou na expulsão das ordens religiosas e a nacionalização dos bens da igreja.
A monarquia havia negligenciado o estado educacional e cultural do país, em benefício de iniciativas de cariz material, como sejam a implantação da rede de caminhos-de-ferro e alguns troços de estradas. A monarquia preocupava-se com as coisas, ao passo que a república, pelo contrário, interessava-se pelas pessoas, criando o Ministério da Educação Pública, promovendo a instalação de centros de ensino e fazendo da disseminação da educação básica uma grande causa.
O excessivo peso institucional do Congresso na vida política do país, e uma permanente anarquia parlamentar, que fazia e desfazia governos entre surtidas monárquicas, arruaças bombistas, tiroteio, assassinatos e revoluções palacianas, foi a característica mais marcante da vida política da primeira república. Portugal era, entre os principais países da Europa, recordista em instabilidade parlamentar, presidencial e governamental, levando a que começasse a grassar o abstencionismo junto do eleitorado, não como censura ou rejeição do jovem regime propriamente dito, mas sim fruto de promessas incumpridas, múltiplas traições e desilusões protagonizadas pelos políticos, que facilmente esqueciam ser a governação a sua principal função. Aqueles consumiam todas as suas energias nas guerrilhas entre partidos adversários, e também nas lutas internas e interesses mesquinhos dos seus próprios partidos, e não a encontrarem soluções para as muitas carências do país e da população. Em dezasseis anos de regime republicano houve sete eleições para o Parlamento, oito para a Presidência da República e quarenta e cinco ministérios, com estes últimos a terem uma duração média de escassos quatro meses. O Parlamento, órgão que interferia em todos os detalhes da vida governativa, se por um lado constituía um poderoso travão às ambições e um filtro da corrupção política, mantendo a governação sob permanente controlo, por outro, apresentava-se como um permanente foco de instabilidade, fazendo cair ministérios, quantas vezes por questões menores e insignificantes.
O país acabou ainda por se envolver na fase final da Primeira Grande Guerra, por força dos compromissos que a aliança com a Inglaterra impunha, bem como a salvaguarda da integridade do seu império colonial, por um lado ameaçado pelos alemães, e por outro, sujeito a uma eventual partilha, caso a derrota dos alemães se concretizasse. Esta intervenção foi levada a cabo por um corpo expedicionário de 50.000 homens, indisciplinados e mal preparados, que foram despejados nos campos de batalha da Flandres em 1917. Lançados no braseiro e enfrentando as divisões alemãs, esta intervenção acabou por se traduzir em 6.000 prisioneiros, 7.000 mortos, inúmeros estropiados e gaseados, e deixando os cofres públicos vazios. De crise em crise e com ditaduras de permeio, o regime sobreviveu mais oito anos, até que sobreveio o golpe militar de 28 de Maio de 1926, capitaneado pelo general Gomes da Costa, que redundou, durante os dois primeiros anos, numa ditadura militar, resvalando depois para a ditadura do Estado Novo.
A segunda República, foi um período marcado pela ditadura de Oliveira Salazar, um professor de finanças, que se arvorou em salvador da pátria e edificou um regime que baptizou de Estado Novo. Grassou durante 48 longos anos, e caracterizou-se por uma inquestionável estabilidade governativa, própria dos governos autoritários. Teve 3 Presidentes da República (Óscar Carmona, Craveiro Lopes e Américo Thomás) e 2 governos, o primeiro, o mais longo de todos, conduzido com mão de ferro pelo todo-poderoso Prof. Salazar, e o último, pelo Prof. Marcello Caetano, que fora em tempos delfim do ditador, e que assumiu as funções, quando o primeiro, física e mentalmente incapacitado por um acidente, foi retirado de funções. Tal estabilidade governativa foi feita à custa do cerceamento das liberdades fundamentais e da instauração de um regime que se arrogava ser, para consumo externo, uma “democracia orgânica”, mas que na realidade não passava de um simulacro caricatural do sistema democrático. Cá dentro grassava um estado policial e repressivo, onde o essencial era saber ler, escrever, contar, rezar e trabalhar sem questionar. Ter acesso a mais altos voos era um privilégio a que muito poucos tinham acesso, sobretudo depois de manifestarem, por obras e pensamentos, a sua inquestionável fidelidade ao regime.
Os actuais adeptos do longo consulado salazarista esforçam-se por apagar tudo o que diga respeito ao estado policial-fascista que foi erigido, adaptado do modelo orgânico e institucional de Mussolini e da máquina repressiva do III Reich alemão. Preferem enaltecer outras iniciativas do regime, tais como sublinhar o meritório esforço que o ditador despendeu a equilibrar as contas públicas (o tal défice todo-poderoso) e a promover a acumulação de reservas de ouro, para arrancar o país à extrema pobreza e ao atraso em que a 1ª. República o deixara, objectivo que não concretizou, mascarando-o com uma paz e a segurança feita à custa da limitação das liberdades. Na verdade, o povo pouco mais ganhou que a segurança das prisões e a paz dos cemitérios. Por outro lado, teríamos ficado a dever-lhe também a manutenção do país ao abrigo de todas as consequências geradas pela Segunda Guerra Mundial, não sem que antes disso, em 1936, haja apoiado descaradamente o pronunciamento e a guerra civil espanhola, desencadeada pelo futuro ditador Franco. A vizinhança da novel República Espanhola era coisa que não lhe interessava, já que esta poderia tornar-se uma potencial exportadora para Portugal das "perigosas" ideias e práticas políticas que o Estado Novo estava tão empenhado em erradicar. Na altura da Segunda Guerra Mundial, momento alto em que as democracias se confrontaram com os fascismos, optou por escudar-se numa conspícua e bizarra neutralidade, porque ao envolver-se no conflito, estaria a comprometer os seus desígnios. Salazar era astuto, tinha um projecto pessoal de poder e sabia que só o poderia levar à prática com sucesso, se isolasse o país, disciplinando e silenciando as suas vozes e pensamento. Não queria partilhar esse projecto com ninguém, nem tão pouco tolerava que alguém nele se viesse intrometer. Desde o primeiro momento que pisara os corredores do poder, Salazar sabia o que queria, e para onde ia. O objectivo era submeter o povo à autoridade secular e religiosa, com padrões mínimos de instrução, sem ambições, reduzido à condição de força de trabalho humilde, domesticada e quase-forçada, arredado das ideias e opiniões contrárias ao regime, por uma impiedosa e castradora censura dos meios de comunicação social, permanentemente vigiado e reprimido pela polícia política, que se encarregava de distribuir os adversários políticos do regime, pela colónia penal do Tarrafal, e as prisões do Aljube, Caxias e Peniche.
A riqueza que entretanto ia sendo acumulada pouco ou nada tinha a ver com um tecido económico dinâmico, gerador de riqueza e de trabalho. As grandes fortunas iam-se fazendo à custa da exploração desmedida que o mossuliniano Estatuto Nacional do Trabalho permitia, ao mesmo tempo que o país ia vivendo de uma pseudo-indústria de turismo, do investimento estrangeiro e dos monopólios que estavam nas mãos de meia dúzia de famílias. Em vez de abrir o país ao desenvolvimento e progresso, deixou que o país se fosse exaurindo na exportação de mão-de-obra, através das sucessivas vagas de emigração, vindo depois a encherem-se os cofres do estado com as remessas dessa mesma emigração, num simulacro de prosperidade. As grandes conquista, descobertas, escolas e ideias que irrompiam pelo mundo fora, apenas nos afloravam, quase como meras curiosidades, dissimuladas por entre alguma informação filtrada que ia chegando até nós, importada de forma clandestina. Eleições era uma matéria rigorosamente controlada pelo aparelho repressivo e policial, não deixando que as mensagens oposicionistas chegassem aos destinatários, nem que as urnas fornecessem surpresas. Já em 1948 havia ocorrido um primeiro sobressalto com a candidatura oposicionista de Norton de Matos, mas foi nas eleições presidenciais de 1958, quando se apresentou como candidato da oposição o general Humberto Delgado, um “desertor” das fileiras do Estado Novo, que o regime tremeu. Foi tal o susto (Delgado teria ganho as eleições, caso a sua candidatura não houvesse sofrido toda a espécie de obstruções e os resultados não tivessem sido manipulados) que de imediato o regime procedeu a uma alteração constitucional, acabando com o sufrágio universal do presidente, e deixando a sua eleição/nomeação entregue à assembleia nacional, totalmente dominada pelo regime, travestida das funções de cinzento colégio eleitoral, para o cumprir as futuras investiduras. Quanto a Delgado, que apesar de exilado se mantinha activo, logo incómodo para o regime, viria a ser assassinado pela polícia política, em 1965, junto à fronteira de Espanha.
Depois disto, imerso numa imensa mediocridade e combatido por largos sectores da sociedade, fosse às claras ou na clandestinidade, o regime ia entrando em decadência. Sendo quase certo que o regime dificilmente sobreviveria ao seu mentor, a guerra colonial que irrompeu em 1961, fruto da mesquinhez e do isolacionismo salazarista, que teimava em ignorar os novos tempos que emergiram após a Segunda Guerra Mundial, e que traziam a marca da promoção e emancipação dos povos, acabou por ser o derradeiro balão de oxigénio que manteve vivo o regime, apenas adiando o colapso que já se vinha anunciando.
Acabaram por ser os militares, endurecidos por essa guerra colonial interminável, que se estendia por três frentes, e cuja vitória militar se tornava cada vez mais improvável, que se rebelaram e desceram à rua em 25 de Abril, apeando o regime, e manifestando a intenção de devolverem, ao país e à república, a sua matriz republicana e democrática. Em boa verdade, quando o regime caiu em 25 de Abril de 1974, para além da exaustão resultante de 48 anos de autoritarismo e de 13 anos de guerra, que consumia homens e recursos, o país ainda era, tal como fim da primeira república, e no dealbar do Estado Novo, em 1926, para além de um anacronismo político, a nação mais pobre e atrasada da Europa.
A terceira República, engloba o período que se estende, desde a revolução do 25 de Abril de 1974, até à actualidade. Desmembrou o estado totalitário, e na fase mais aguda de um conturbado processo revolucionários, procedeu ao desmembramento dos monopólios, a um arrojado programa de nacionalizações e reforma agrária. Levou a cabo a descolonização, acabando por fazer regredir o espaço territorial português para as fronteiras anteriores aos descobrimentos, foi gerador de uma nova Constituição, que reorganizou o país à volta de um regime democrático de matriz semi-presidencial, estruturado à volta de meia dúzia de partidos políticos, que passaram a cobrir, com razoável eficácia, o espectro sociológico do país. Até à data, teve 5 Presidentes da República (o sexto vai tomar posse dentro de dias), 6 Governos Provisórios e 16 Governos Constitucionais. Definitivamente encerrado o processo relativo ao seu passado colonial, com a adesão de Portugal à União Europeia, em 1986, o país passou a deslocar os seus centros de interesse para uma Europa que, sendo já uma potência económica, sem ser ainda uma unidade política, tem vindo a colher novas adesões, que também vão multiplicando as contradições e dificuldades.
Enumerar aqui todos os governos que até hoje se sucederam na ribalta política, seria fastidioso, além de que, dada a sua proximidade temporal, ainda persistem muitas memórias deles. Grosso modo, diremos apenas que todos eles, quase sem nenhuma excepção, enveredaram por promover vagas sucessivas de privatizações, restituindo os mais importantes sectores económicos e financeiros ao grande capital, reduzindo ao mínimo o sector empresarial do estado, mesmo em áreas consideradas estratégicas.
Por outro lado, entre 1985 e 1995, os muitos milhões de euros que entraram no país, vindos da União Europeia, esvaíram-se sabe-se lá para onde, e acabaram por não criar os alicerces duradouros e virados para a criação de riqueza produtiva, ficando muito longe de promover a qualificação dos portugueses, que continua a decair. Tal como o ouro do Brasil referido na introdução, os milhões europeus esvaíram-se em obras de estadão e pouco ou nada contribuíram para a criação de oportunidades, o revigoramento do tecido económico e a consequente elevação das condições de vida do país, ao passo que a agricultura e as pescas, longe de se modernizarem, acabaram desmanteladas e quase reduzidas a actividades de subsistência. Onde foram desaguar aqueles caudalosos rios de dinheiro? Quem deles beneficiou?
Deixaram-nos muitos milhares de quilómetros de auto-estradas, muitos viadutos, muitos “elefantes brancos” e uma indústria de betão que entra logo em crise assim que abranda a sofreguidão edificadora do estado, ao passo que a reorientação dos recursos e das competências ficaram-se pelas boas intenções.
A modernização e o desenvolvimento do país são, na actualidade, mais uma aparência que uma realidade, mantendo-se o país, apesar das quotidianas injecções de subsídios comunitários, um exemplo de descoordenação, ausência de rigor e sistemática falha de objectivos, o que conduz a que Portugal permaneça como um dos elos mais fracos da cadeia europeia, ocupando insistentemente os últimos lugares do “ranking” europeu.
O próprio Estado e a Administração Pública só aparentemente se modernizaram, sendo muitos os processos ainda tradicionais, que datam do século XIX, dos primórdios da república e do extenso consulado salazarista.
Do mais anónimo cidadão, até ao mais notável empresário, todos exigem ser beneficiários do subsidiarismo crónico que se instalou no país, o qual funciona como um sistema compensatório alternativo, face à ausência de projectos estruturantes, à ineficácia do aparelho administrativo e à mesquinhez e incompetência dos actores políticos. Com a alternância do poder, instalou-se a disseminação de clientelismos, secretas promiscuidades entre o poder político e os agentes económicos, o que potencia a difusão de favorecimentos e a instalação de uma generalizada corrupção, que alastra os todos os sectores da sociedade. Os programas de governo acabaram por tornar-se réplicas de outros anteriores, com ligeiras alterações de interesse e circunstância, onde está ausente qualquer vestígio de inovação e imaginação, sendo rara e minimamente cumpridos, quando não acontece serem cumpridos às avessas.
O guterrismo pensava que conseguia governar o país sem mexer uma palha, e que os problemas se resolveriam por si. O barrosismo pensava que conseguia governar o país virando tudo do avesso. Quanto ao santanismo, até há poucos meses, ainda pensava que conseguia governar como se tudo não passasse de um espectáculo de circo, com distribuição de caramelos pelo meio. Curiosamente, o socialista José Sócrates, apoiado numa maioria absoluta e na cartilha da “dama de ferro”, acaba por levar à prática as políticas que o barrosismo e o santanismo, ou não tiveram tempo, ou nunca se afoitaram a aplicar.
Portugal sempre foi uma identidade bem demarcada no contexto ibérico, porém, neste momento, dada a sua irrelevância económica, começa a assistir-se à perda de voz activa nas instâncias europeias, à deserção e transferência de muitos centros de decisão para Espanha, o que a breve prazo levará à diluição da nossa importância política, passando a ostentarmos, em termos de importância, o estatuto de região. Não é o regime democrático, como alguns sebastianistas pretendem, que é responsável pelo estado deplorável em que nos encontramos, mais sim quem tendo nas mãos as alavancas do poder, sob a capa e em nome dessa mesma democracia, gesto a gesto, passo a passo, empurraram o país para a presente situação. Hoje, tal como em 1926, aquando dos primeiros passos de Salazar pelos corredores do poder, é a questão do crónico défice orçamental que mobiliza, agora de forma contraditória, atabalhoada e imprecisa, alguns arremedos de gestão dos dinheiros públicos. Hoje, com o tempo mais que esgotado, torna-se necessário efectuar um salto qualitativo, já que, para além de alguns simulacros de modernização, panaceias e mezinhas avulsas, que descambaram em outras tantas experiências fracassadas, fomos incapazes de conceber e introduzir, no momento próprio, projectos de crescimento, coerente e sustentado, que fossem considerados e unanimemente aceites como desígnios e causas nacionais.
Será isto uma terceira República que reedita os vícios da primeira, ou apenas mais um lanço descendente, feito de compromissos secretamente lavrados, em tempos de cega globalização, entre mercenários da coisa pública e do apátrida sector capitalista, para que o país se apague?