terça-feira, setembro 25, 2007

Uma História de Encantar

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O episódio de Abraão e seu filho Isaac é um dos capítulos mais abomináveis da Bíblia. Conta a história de um pai que se dispôs a cortar a garganta ao filho, porque uma divindade paranóica e sanguinária o ordenou, querendo com isso testar, pretensamente, a fidelidade de Abraão.
Dizem os rabinos, padres e catequistas que esta história odiosa é bem demonstrativa da fé inquebrantável daquele patriarca, da sua fidelidade e temor perante os desígnios de Deus. O selvático acto apenas não foi consumado porque no último momento o tal Deus, finalmente convencido da lealdade do ansião, enviou um esforçado e supersónico anjo suster o braço armado do infanticida. Porém, esses mesmos clérigos esquecem-se de revelar que é imenso o exército de criminosos e sado-masoquistas que se inspiram neste e noutros execráveis feitos bíblicos, neles encontrando sentido e razão para as suas taras e perversões.
Se o acontecimento tivesse tido lugar nos tempos modernos, e se o infanticídio de Isaac se concretizasse, porque o anjo não chegou a tempo, e Abraão fosse preso, em tribunal iríamos, certamente, ouvi-lo argumentar em sua defesa, com a seguinte frase lapidar:
- Limitei-me a cumprir ordens que vieram de cima!
Reunido o colectivo de juízes, seria decidido enjaular o arguido, atendendo às suas barbas brancas, até ao juízo final. À luz do direito canónico, seria o anjo, culpado de negligência e descuido, logo condenado a mudar de patrão, isto é, ir acolitar belzebu.
Porém, ficou sempre no ar aquela expressão que tem tanto de fria como de pretensamente evasiva: “limitei-me a cumprir ordens”. Tal e qual como o disseram, quando levados à barra dos tribunais, os comandantes e carrascos dos campos de extermínio do III Reich, os oficiais e a tropa das divisões SS que aniquilaram milhares de civis durante o vandalismo nazi, os esbirros da DINA, polícia política de Pinochet, os assassinos e torturadores da PIDE/DGS, policia política de Oliveira Salazar, os fascistas da OVRA de Benito Mussolini, os voluntários dos pelotões de fuzilamento de Francisco Franco, os “Tonton Macoute” e os “Leopardos” da dinastia Duvalier que tiranizou o Haiti. Tal como também o repetiram os esbirros da SIDE, polícia política da ditadura argentina, o KGB e os guardas dos campos de trabalho do Gulag soviético, os comandos de Fujimori e de Mugabe, os tecno-científicos e assépticos supliciadores do Campo Delta em Guantanamo e Abu Ghraib, os cabecilhas que levaram à prática a chacina organizada pelo regime de Pol Pot, os militares que na Birmânia, em 1988, abafaram os protestos pró-democracia, com a chacina de 3.000 manifestantes, e hoje continuam a sustentar o regime militar do generalíssimo tirano Than Shue e as milícias exterminadoras (algumas acolitadas por monges e freiras católicas) do holocausto ruandês. Isto para só falar de alguns, porque a lista, só dos tempos modernos, é muito mais longa do que se pode imaginar.
Ainda assim, esta história de encantar, do patriarca Abraão e do seu filho Isaac, continua ainda hoje a ser servida às criancinhas, nas aulas de catequese, dando um sublime exemplo de como o amor divino pode e deve suplantar o amor paternal, e não só. Meninos, ponham os olhos no Abraão. Quando vier uma ordem “de cima”, não há “mas” nem “meios mas”. É cumprir e acabou-se!

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