domingo, fevereiro 24, 2008

15 Boas Razões para Exigir um Referendo Sobre o Tratado de Lisboa

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Considerações sobre o conteúdo do Tratado Reformador ou Tratado de Lisboa

Autor: Octávio Teixeira, economista

O Tratado Reformador (Tratado de Lisboa) altera os Tratados existentes: o Tratado da União Europeia [Tratado de Maastricht alterado pelos Tratados de Amesterdão e de Nice] (TUE) e o Tratado instituindo a Comunidade Europeia [Tratado de Roma alterado por sucessivos tratados após 1957] (TFUE).

O sofisma do Tratado não constitucional
Uma das razões que José Sócrates invocou para a não realização de um referendo ao novo Tratado (Assembleia da República, 09.01.08) foi: “o Tratado de Lisboa que temos hoje é diferente do antigo projecto de Tratado Constitucional (…) O Tratado, realmente, mudou. Mudou na sua natureza e no seu conteúdo.”
Na mesma linha, o seu “compagnon de route” Vital Moreira afirmou (Público, 10.01.08): “há uma diferença conceptual: o Tratado Constitucional pretendia imprimir uma noção de Estado, de unidade à UE. O Tratado de Lisboa não inclui os símbolos como a bandeira e o hino, nem estabelece a primazia do direito europeu sobre o direito constitucional nacional.”
Estas afirmações relevam, principalmente, da hipocrisia.
De facto, o Tratado de Lisboa não é mais que o Tratado Constitucional com outro nome, e o nome foi alterado exclusivamente para tentar evitar novas rejeições populares. No seu conteúdo, nos seus efeitos e nas suas consequências, é exactamente o mesmo.
É certo que os símbolos da União não integram qualquer artigo no novo Tratado. Mas eles existem e são regularmente utilizados em todo o território da União. Mas mais do que isso. Surge agora uma Declaração anexa ao Tratado, subscrita por 16 Estados – Membros, entre os quais Portugal, assumindo que o hino, a bandeira e o euro são “os símbolos do vínculo comum dos cidadãos à União Europeia e dos laços que os ligam a esta.”
Igualmente é verdade que, formalmente, não foi reposto o artigo 10º do defunto Tratado Constitucional segundo o qual “ A Constituição e o direito adoptado pelas instituições da União no exercício das competências que lhe são atribuídas primam sobre o direito dos Estados Membros”. Mas é impossível ignorar, a não ser por tartufice, que foi aprovada uma Declaração (que vincula juridicamente todos os Estados-Membros) sobre o primado do direito comunitário, rezando: “A Conferência lembra que, em conformidade com a jurisprudência constante do Tribunal de Justiça da União Europeia, os Tratados e o direito adoptado pela União com base nos Tratados primam sobre o direito dos Estados-Membros, nas condições estabelecidas pela referida jurisprudência.” E para que não restem dúvidas mínimas, a mesma Declaração recorda essas condições: “Decorre da jurisprudência do Tribunal de Justiça que o primado do direito comunitário é um princípio fundamental desse mesmo direito. Segundo o Tribunal, este princípio é inerente à natureza específica da Comunidade Europeia”.
Na verdade, todos os elementos constitucionais de um Estado federal (por acréscimo com o handicap da não existência de uma Câmara Alta parlamentar em que os Estados-Membros tenham a mesma representação) constam do novo Tratado da União Europeia (TUE):
- os símbolos, de facto para todos e através da Declaração juridicamente vinculativa para 16 Estados-Membros;
- o primado do direito da União sobre o direito dos Estados-Membros (Declaração respectiva;
- a personalidade jurídica da União (artigo 47 TUE);
- a existência de uma moeda comum (artigo 3-4 TUE);
- a repartição de competências entre a União e os Estados-Membros (artigos 4 e 5 TUE);
- a adopção de um conjunto de direitos fundamentais, como a Carta dos Direitos Fundamentais e a adesão da União à Convenção Europeia dos Direitos do Homem (artigo 6º TUE);
- a criação de uma cidadania da União (artigo 9 TUE);
- o estabelecimento de uma política externa da União (artigos 21 e 22 TUE) à qual, na prática, se devem submeter as políticas nacionais (artigo 24-3 TUE) ;
- a institucionalização do cargo de presidente do Conselho Europeu, com funções de representação externa da União e sem possibilidade de desempenhar qualquer mandato nacional [o chefe de Estado europeu] (artigo 15 TUE;
- a criação de um Ministro dos Negócios Estrangeiros Europeu, alcunhado de Alto Representante da União para os Negócios Estrangeiros (artigo 18 TUE).
Em suma, como cruamente o disse Giscard d’Estaing, o pai do projecto Constitucional derrotado nas urnas em França e na Holanda em 2005, “os Governos Europeus puseram-se de acordo sobre alterações cosméticas à Constituição para que ela seja mais fácil de engolir.”
Realce-se, por último, que o Preâmbulo do TUE foi alterado com o acréscimo de um considerando que afirma que a União se inspira na herança religiosa da Europa, o que significa um recuo ideológico importante, porque em contradição com o princípio da laicidade.

Institucionalização do directório dos grandes
O novo Tratado reduz substancialmente as decisões do Conselho que devem ser tomadas por unanimidade: “O Conselho delibera por maioria qualificada, salvo disposição em contrário dos Tratados” (artigo 16-3 TUE) passa a ser a regra.
Tendo em atenção a institucionalização da regra da dupla maioria na tomada de decisões, tal significa, em termos práticos, que nenhuma decisão por maioria qualificada pode ser tomada contra a vontade dos quatro maiores Estados da União (Alemanha, França, Itália e Reino-Unido), já que:
- A minoria de bloqueio deve ser composta por, pelo menos, quatro membros do Conselho (artigo 16-4 TUE), e
- A minoria de bloqueio deve ser composta por, pelo menos, o número mínimo de membros do Conselho que represente mais de 35 % da população dos Estados-Membros participantes, mais um membro (238º-3-a) TFUE)

Política Externa e de Defesa Comum (PESC)
A PESC passa a ser concebida como um instrumento integrado na NATO, comandada pelos EUA:
No actual artigo 17 – 4 TUE diz-se a cooperação no quadro da NATO só pode ter lugar “na medida em que essa cooperação não contrarie nem dificulte a cooperação prevista no presente título”.
O novo artigo 42-7 afirma: “Os compromissos e a cooperação neste domínio respeitam os compromissos assumidos no quadro da Organização do Tratado do Atlântico Norte, que, para os Estados que são membros desta organização, continua a ser o fundamento da sua defesa colectiva e a instância apropriada para a concretizar.”
O que é reforçado pelo Protocolo respectivo, explicitando que a PESC reforça a ligação à NATO, “que a PESC da União respeita as obrigações decorrentes da NATO” e “que um papel mais assertivo da União em matéria de segurança e de defesa contribuirá para a vitalidade de uma Aliança Atlântica”.
É alargado o campo de acção da União circunscrito, desde 1992, às “missões de Petersburg” (“manutenção da paz”, “gestão de crises”, “missões humanitárias”, …).
No novo Tratado (artigo 42) define-se um quadro mais amplo, incluindo “a prevenção de conflitos” e “o reforço da segurança internacional”, o que abre portas a todas as acções de apoio à NATO a coberto das missões de “desarmamento”, de “conselho e assistência militar”, de “estabilização” ou de “luta contra o terrorismo”.
O militarismo passa a ser oficialmente encorajado (artigo 42-3): “Os Estados-Membros comprometem-se a melhorar progressivamente as suas capacidades militares. A agência no domínio do desenvolvimento das capacidades de defesa, da investigação, da aquisição e dos armamentos (a seguir denominada “Agência Europeia de Defesa”) identifica as necessidades operacionais, promove as medidas necessárias para as satisfazer, contribui para identificar e, se necessário, executar todas as medidas úteis para reforçar a base industrial e tecnológica do sector da defesa”.
È o único âmbito em que os Estados Membros são encorajados a aumentar a despesa pública!

Delimitação de competências entre a União e os Estados-Membros
Teoricamente resultam três tipos de competências: as que relevam da competência exclusiva da União, as que são da competência partilhada entre a União e os Estados Membros e aquelas para as quais “a União dispõe de competência para desenvolver acções destinadas a apoiar, a coordenar ou a completar a acção dos Estados-Membros, sem substituir a competência destes nesses domínios” (artigo 2 TFUE).
E em relação às que são da competência partilhada reza o artigo 2-2 TFUE que “os Estados-Membros exercem a sua competência na medida em que a União não tenha exercido a sua”. Isto é, não se trata verdadeiramente de competências partilhadas mas de uma predominância das acções da União sobre os Estados-Membros.
A listagem dos artigos 2 a 6 TFUE mostra o número impressionante dos âmbitos da competência exclusiva da União (união aduaneira, estabelecimento das regras de concorrência necessárias ao funcionamento do mercado interno, política monetária para os Estados-Membros cuja moeda seja o euro, conservação dos recursos biológicos do mar, no âmbito da política comum das pescas, política comercial comum e celebração de acordos internacionais quando tal celebração esteja prevista num acto legislativo da União) e da competência dita partilhada (mercado interno, política social, no que se refere aos aspectos definidos no Tratado, coesão económica, social e territorial, agricultura e pescas, com excepção da conservação dos recursos biológicos do mar, ambiente, defesa dos consumidores, transportes, redes transeuropeias, energia, espaço de liberdade, segurança e justiça, problemas comuns de segurança em matéria de saúde pública), sendo certo que em âmbitos alegadamente da competência exclusiva dos Estados-Membros a União também pode meter a sua colherada (protecção e melhoria da saúde humana, indústria, cultura, turismo, educação, formação profissional, juventude e desporto, protecção civil, Cooperação administrativa).
É certo que uma parte das políticas sociais e fiscais escapa às competências da União, mas não é menos verdade que, na prática, elas são sobre determinadas pelas políticas económicas e monetárias, as quais relevam da União.

A Comissão soberana
O esquema institucional continua a concentrar os poderes em instâncias não eleitas: a Comissão e o Tribunal de Justiça da União, e o BCE quanto à política monetária.
A Comissão é o verdadeiro Governo da União:
- “controla a aplicação do direito da União, sob a fiscalização do Tribunal de Justiça da União Europeia” (artigo 17-1 TUE), e este tem os poderes de “interpretação” e “de aplicação” dos Tratados (artigo 19 TUE);
- detém o monopólio da iniciativa legislativa, pois “os actos legislativos da União só podem ser adoptados sob proposta da Comissão” (artigo 17-2 TUE);
- “exerce as suas responsabilidades com total independência” (artigo 17-3 TUE);
- como qualquer Primeiro-Ministro, o seu Presidente tem o poder discricionário de nomeação (partilhado com o Conselho) e de demissão dos comissários;
- nos termos do artigo 48 TUE, pode apresentar projectos de revisão dos Tratados e de todas ou de parte das disposições da terceira parte do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, relativas às políticas e acções internas da União;
- é ela que decide apresentar ou não ao Conselho uma proposta de cooperação reforçada que seja apresentada por Estados-Membros, isto é, tem o poder de veto sobre as cooperações reforçadas (artigo 329 TFUE).
A composição da Comissão é alterada: com o novo Tratado deixa de integrar um nacional de cada Estado-Membro e passa a ser composta por um número de membros, incluindo o seu Presidente e o Alto Representante da União para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança, correspondente a dois terços do número dos Estados-Membros (artigo 17-5 TUE).
O Alto Representante da União para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança ocupa um lugar de Vice-Presidente da Comissão.

Papel dos Parlamentos Nacionais
O artigo 7 do Protocolo relativo à aplicação dos princípios da subsidiariedade e da proporcionalidade, explicita o procedimento que aos Parlamentos Nacionais sobre o processo legislativo europeu.
Cada Parlamento nacional dispõe de dois votos.
No caso de um procedimento legislativo ordinário, se uma maioria dos votos atribuídos aos Paramentos Nacionais der uma opinião negativa, o projecto deve ser reanalisado [nos outros casos, um terço dos votos é suficiente, e baixa para um quarto nas questões da liberdade, da segurança e da justiça].
Porém este “poder” é extremamente limitado, se não meramente simbólico.
Por um lado, os Parlamentos Nacionais não se pronunciam sobre o fundo do projecto mas exclusivamente sobre a sua conformidade jurídica com o princípio da subsidiariedade.
Por outro lado, “depois dessa reanálise, a Comissão, ou, eventualmente, o grupo de Estados-Membros, o Parlamento Europeu, o Tribunal de Justiça, o Banco Central Europeu ou o Banco Europeu de Investimento, se deles emanar o projecto de acto legislativo, pode decidir manter o projecto, alterá-lo ou retirá-lo”!
Para além disto, “são informados” dos projectos de actos legislativos, participam nos mecanismos de avaliação da execução das políticas no âmbito do espaço de liberdade, segurança e justiça, participam nos processos de revisão dos Tratados, “são informados” dos pedidos de adesão à União e participam na cooperação interparlamentar entre os Parlamentos Nacionais e o Parlamento Europeu.
Tudo espremido, dá nada.

Carta dos Direitos Fundamentais
A Carta dos Direitos Fundamentais não integra o articulado dos novos Tratados, mas o artigo 6 do TUE “reconhece-a” e atribui-lhe “o mesmo valor jurídico que os tratados”.
Mas o seu conteúdo é de fraco alcance.
Assim, o direito ao trabalho e ao emprego não consta da Carta, apenas o “direito de trabalhar”. O direito à protecção social igualmente não existe, mas apenas o “direito de acesso às prestações de segurança social e aos serviços sociais”. O que significa que a Carta está aquém da Declaração Universal dos Direitos do Homem e da Constituição da República Portuguesa.
Outros aspectos podem gerar problemas. Por exemplo, os direitos ao aborto e à contracepção não são reconhecidos pela Carta. O que não garante que o reafirmado “direito à vida” (artigo 2 da Carta) não possa vir a utilizado para os contestar junto do Tribunal de Justiça da União Europeia.
No essencial, a aplicação dos direitos contidos na Carta remete para “as práticas e legislações nacionais”. Não é pois criado qualquer direito social europeu susceptível de equilibrar o direito de concorrência que continuará dominante à escala da União. Maxime, os direitos contidos na Carta podem ser restringidos se isso for julgado “necessário”.
Além do mais, e pelo sim pelo não, o seu alcance é explicitamente restringido: ela “não cria quaisquer novas competências ou atribuições para a União, nem modifica as competências e atribuições definidas nos Tratados”. Acrescendo que as disposições da Carta “só serão invocadas perante o juiz tendo em vista a interpretação desses actos e a fiscalização da sua legalidade”, o que reduz o seu alcance jurídico.
Por último, no artigo 6 foi eliminado o nº 4 anterior que referia que “a União deve dotar-se dos meios necessários para atingir os seus objectivos e realizar com êxito as suas políticas”, o que parece confirmar que esta Carta corre um sério risco de não ter qualquer impacto nas políticas da União.
Onde está o “modelo social europeu”?

Incentivo às deslocalizações e ao dumping social
A supressão de todos os entraves ao livre comércio e ao livre estabelecimento de empresas em todo o território da União, em simultâneo com a preservação das disparidades fiscais e sociais entre os Estados-Membros, são um factor de agravamento do dumping social e das deslocalizações. O objectivo é o de conduzir, sob a pressão da “concorrência livre e não falseada” à escala da União, um alinhamento por baixo dos salários e das condições de trabalho, não uma harmonização por cima.
É o que diz o Tratado ao prever que a “harmonização” das “condições de vida e de trabalho” e a “promoção do emprego” resultarão “do funcionamento do mercado interno, que “favorecerá a harmonização dos sistemas sociais”, tendo em conta “a necessidade de manter a capacidade concorrencial da economia da União” (artigo 151 TFUE).
Neste quadro, a vontade de criar “mercados de trabalho aptos a reagir rapidamente às mudanças económicas” (artigo 145 TFUE) significa a oferta da liberdade aos empresários para ajustar a mão-de-obra despedindo e deslocalizando à vontade. Um objectivo facilitado pela sujeição à concorrência das protecções e dos direitos dos trabalhadores, com a limitação do direito à greve através do reconhecimento do “lock-out” (artigo 153-5 TFUE), e substituindo a noção do direito ao trabalho pelo “direito de trabalhar” (artigo 15 da Carta), e a remissão das distorções das legislações nacionais em matéria de protecção dos assalariados em caso de despedimento sem justa causa (artigo 30 da Carta).

Os serviços públicos mais ameaçados
O actual artigo 16 do Tratado que institui a Comunidade Europeia reconhece os serviços de interesse económico geral como um “valor comum da União”. No artigo 14 do novo TFUE mantém-se esse reconhecimento, mas acrescenta-se que os princípios em que devem assentar são estabelecidos pelo Parlamento Europeu e pelo Conselho. E esses princípios devem respeitar a sacrossanta lei da concorrência, como explicitamente o recorda o artigo 106 do TFUE. Para além do mais estabelece toda uma série de proibições dirigidas aos Estados Membros e pressiona a liberalização que os Estados Membros são convidados a alargar.
O novo artigo 106 do TFUE é demolidor para os serviços públicos: “As empresas encarregadas da gestão de serviços de interesse económico geral ou que tenham a natureza de monopólio fiscal ficam submetidas ao disposto nos Tratados, designadamente às regras de concorrência, na medida em que a aplicação destas regras não constitua obstáculo ao cumprimento, de direito ou de facto, da missão particular que lhes foi confiada”
Ficam sujeitos à concorrência e é a Comissão que decide de qualquer derrogação possível. Este artigo fornece a base jurídica para a liberalização dos serviços públicos.
E o artigo 107 torna, de facto, quase impossível qualquer ajuda do Estado por razões de interesse geral.
No capítulo dos transportes, as necessárias interconexões das redes são condicionadas à sua abertura à concorrência. As ajudas dos Estados-Membros às empresas de serviços públicos são consideradas como incompatíveis com o mercado interno. Em caso de conflito, a última palavra pertence ao Tribunal de Justiça da União Europeia, um demonstrado guardião empedernido do liberalismo.
Acresce que o artigo 71-2 do actual TiCE, em derrogação do princípio geral aplicável, exigia uma deliberação do Conselho por unanimidade para “as disposições que incidam sobre os princípios do regime dos transportes e cuja aplicação seja susceptível de afectar gravemente o nível de vida e o emprego em certas regiões, bem como a exploração dos equipamentos de transporte”. Este artigo foi alterado, e o novo artigo 91 diz apenas que “são tidos em conta os casos em que a aplicação seja susceptível de afectar gravemente o nível de vida e o emprego em certas regiões, bem como a exploração de equipamentos de transporte.” É uma protecção do serviço público de transportes que desaparece.
É um facto que as instituições europeias distinguem os serviços de interesse económico geral não mercantis e os serviços de interesse económico geral mercantis (que fornecem o acesso a um serviço em contrapartida de um pagamento) que devem ser submetidos às leis da concorrência, portanto à liberalização.
A verdade porém, é que toda a tendência recente tem sido a de considerar o máximo possível os serviços de interesse económico geral como mercantis Veja-se o acórdão do Tribunal de Justiça da União (C-180-184/98) em que se decide que “constitui uma actividade económica toda a actividade que consista em oferecer bens e serviços num mercado.” Com este tipo de definição, quase tudo pode ser considerado como uma actividade económica e, portanto, ser submetido à concorrência e às regras do mercado interno. E em termos práticos aí temos os exemplos da liberalização dos serviços postais, da distribuição de energia e do sector ferroviário.
O Protocolo relativo aos serviços de interesse económico geral pode funcionar como um travão. Designadamente o seu artigo 2, ao afirmar: ”as disposições dos Tratados em nada afectam a competência dos Estados-Membros para prestar, mandar executar e organizar serviços de interesse geral não económicos”.
O problema está em definir quais são esses serviços, já que a definição não consta dos textos. Ora, o que se constata é que, até hoje, a Comissão tem-se recusado a fazê-lo. Num relatório dos serviços de interesse geral, feito por ocasião do Conselho europeu de Laeken no final de 2001, a Comissão dizia que “não é possível estabelecer a priori uma lista definitiva de todos os serviços de interesse geral que devam ser considerados como não económicos”, e acrescentava que “a gama de serviços públicos passíveis de serem propostos num mercado depende de mutações tecnológicas, económicas e sociais”.
O que significa, na prática, que para a Comissão perde pertinência a distinção entre serviços de interesse geral económicos e não económicos, pelo que esse Protocolo corre sério risco de não ter qualquer efeito prático.

A concorrência prevalece sobre tudo o resto
O artigo terceiro do Tratado Constitucional afirmava como um dos objectivos da União “proporcionar aos seus cidadãos um espaço de liberdade, segurança e justiça sem fronteiras internas e um mercado interno em que a concorrência é livre e não falseada”.
O presidente Sarkozy apontou como uma das suas grandes conquistas no Tratado de Lisboa a eliminação deste objectivo. A verdade é que, mais uma vez, a alteração é meramente aparente e sofística.
De facto desaparece do artigo 3 do TUE, mas surge num Protocolo interpretando esse mesmo artigo 3: “tendo em conta que o mercado interno, tal como estabelecido no artigo 3º (2.º) do Tratado da União Europeia, inclui um sistema que assegura que a concorrência não seja falseada.” E, através desta remissão para o artigo 3, que respeita aos objectivos da União, temos a reintrodução da concorrência não falseada como objectivo da União. E para que não haja dúvidas, para mostrar que não se trata de um objectivo teórico mas muito concreto e incontornável, o Protocolo refere ainda que,” para esse efeito, a União, se necessário, toma medidas ao abrigo do disposto nos Tratados, incluindo do artigo 352º (308.º) do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia.”
O estabelecimento das regras da concorrência é um privilégio exclusivo da Comissão. Nada foi alterado nas sanções em que incorrem os Estados-Membros que queiram auxiliar um sector económico ameaçado.
A livre concorrência mantém-se pois como objectivo principal, cujo respeito condiciona todas as políticas sociais.

A circulação de capitais sem entraves
A par da concorrência “não falseada”, a livre circulação de capitais constitui o outro pilar do liberalismo expresso dos Tratados da União. Proclamada no artigo 63 TFUE, o princípio de base é perfeitamente claro: “são proibidas todas as restrições aos movimentos de capitais entre Estados-Membros e entre Estados-Membros e países terceiros.” Todas as medidas de salvaguarda utilizadas por um Estado-Membro é definida como uma derrogação sob elevada vigilância, sendo requerida a unanimidade no Conselho para qualquer limitação (qualificada de “recuo”) dos movimentos de capitais, não apenas no interior da União, mas igualmente entre os Estados-Membros e países terceiros. Assim se abrindo a porta para as deslocalizações para países mais generosos para os investidores (baixos salários, fiscalidade reduzida ou nula, …). A interdição de tocar nos movimentos de capitais impede qualquer taxa, qualquer medida capaz de combater o dumping social. (É em nome deste princípio que a Comissão preconiza um regulamento permitindo às empresas que deslocalizem as suas produções para regiões de baixos salários exteriores à União a reimportação sem entraves daquelas produções).
A livre circulação de capitais complementada com a liberdade de estabelecimento e a interdição de qualquer restrição à livre prestação de serviços no território da União, e na ausência de uma harmonização social, deixa em aberto todas as possibilidades de colocar os trabalhadores assalariados da União em concorrência, como gritantemente foi demonstrado com a directiva dos serviços dita “Bolkestein”.

Política comercial: a União Europeia expoente do livre comércio e motor da globalização liberal
O princípio inultrapassável do livre comércio e a eliminação, à escala mundial, de todas as barreiras ao livre comércio é uma pedra angular da actual construção europeia e determina a linha de conduta da União na Organização Mundial de Comércio e nas negociações bilaterais. Este objectivo é claramente explicitado e precisado no artigo 206 do TFUE: “a União contribui … para a supressão progressiva das restrições às trocas internacionais e aos investimentos estrangeiros directos e para a redução das barreiras alfandegárias e de outro tipo.”
Este artigo altera a redacção actual no sentido de uma maior liberalização: o “investimento directo externo” e as “barreiras de outro tipo” são novidade nos Tratados.
Acresce que a expressão “de outro tipo” sugere que as barreiras tarifárias não serão as únicas em causa. Com esta formulação pode visar-se as restrições às trocas assentes em normas ambientais, sanitárias, sociais ou de protecção dos consumidores.
A política comercial comum é um domínio da competência exclusiva da União no quadro do qual poderão expandir-se os poderes exorbitantes da Comissão.
Só a conclusão de acordos comerciais “ no domínio do comércio de serviços culturais e audiovisuais, sempre que esses acordos sejam susceptíveis de prejudicar a diversidade cultural e linguística da União” e “no domínio do comércio de serviços sociais, educativos e de saúde, sempre que esses acordos sejam susceptíveis de causar graves perturbações na organização desses serviços ao nível nacional e de prejudicar a responsabilidade dos Estados-Membros de prestarem esses serviços”, exigem a unanimidade dos Estados Membros. Sendo certo que, de facto, esta formulação remete para os acórdãos do ultraliberal Tribunal de Justiça da União Europeia, pois, em última instância, é ele que decidirá se existe ou não o risco de perturbações.

Os plenos poderes do Banco Central Europeu
O BCE é uma peça central da União liberal. As suas regras de funcionamento foram concebidas como instrumento de uma política monetária estritamente devotada aos mercados financeiros. O principal critério é o de combater a inflação, de forma a garantir que as margens rentistas bolsistas não sejam prejudicadas pela inflação. Daí a sua postura permanente de luta pela austeridade salarial.
As alterações resultantes do novo Tratado vão no sentido de reforçar todo o arsenal de normas liberais. Maxime, a “estabilidade dos preços” passa a fazer parte dos objectivos da União quando, até agora, era apenas um objectivo do BCE expresso no artigo 105 do TiCE. Esse artigo é mantido no novo TFUE, com o número 127 e é reforçado com o novo artigo 282, em cujo nº 2 se reexplicita que “o objectivo primordial do SEBC é a manutenção da estabilidade dos preços”.
Poder-se-á dizer que estas alterações não mudarão a prática. Mas politicamente são significativas.
É institucionalizado o Eurogrupo (artigo 137 e Protocolo relativo ao Eurogrupo) em que “Os ministros dos Estados-Membros cuja moeda seja o euro reúnem-se entre si de maneira informal. Estas reuniões têm lugar, na medida do necessário, para debater questões relacionadas com as responsabilidades específicas que partilham em matéria de moeda única. Nelas participa a Comissão. O Banco Central Europeu será convidado a participar nessas reuniões, que serão preparadas pelos representantes dos ministros das Finanças dos Estados-Membros cuja moeda seja o euro e da Comissão.”
A verdade é que nada pesa em termos de política monetária: são reuniões informais, o BCE participa como mero convidado, e não pode dar quaisquer orientações ao BCE pois a independência deste mantém-se (artigo 130 do TFUE) e continuará a ter como único objectivo a estabilidade de preços, contrariamente ao que se passa com os outros bancos centrais por esse mundo fora.

A regra do pacto de estabilidade orçamental
O novo TFUE retoma integralmente o constrangimento orçamental do pacto de estabilidade, retirando aos Estados-Membros toda a margem de manobra para conduzir políticas de crescimento e de investimentos públicos. Consequências desse constrangimento: a supressão contínua das despesas públicas e sociais e, pela degradação dos serviços públicos, dos sistemas de saúde e de educação, a redução dos postos de trabalho na função pública e a oferta de oportunidades de negócio ao sector privado (privatizações camufladas).
Para que não restem dúvidas, a Declaração relativa aos défices excessivos incita os Estados Membros a uma “reestruturação das receitas e das despesas públicas, sem deixar de respeitar a disciplina orçamental, nos termos dos Tratados e do Pacto de Estabilidade e Crescimento.”

Em suma e em conclusão:
As razões de fundo da rejeição do Tratado Constitucional mantêm-se para este Tratado dito reformador.
A própria disposição que permite ao Reino-Unido ser dispensado de aplicar a Carta dos Direitos Fundamentais é demonstrativa de que os direitos sociais ao nível da União, mesmo reduzidos ao mínimo, não são vinculativos, enquanto as regras do mercado interno o são. O social é uma opção, a concorrência uma obrigação!
O Tratado é marcado, de ponta a ponta, pelo neoliberalismo, tanto nos princípios como nas políticas. Com ele, a União Europeia continuará um espaço privilegiado de promoção das políticas neoliberais.
Marcado, ainda, por um profundo défice democrático que exclui os povos e os cidadãos do processo de construção da União.
O Tratado Constitucional foi rejeitado em referendo. O Tratado “reformador”, que retoma o essencial e substancial daquele, deve ser submetido ao voto dos cidadãos por referendo.

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