Barreiro,
4 de Outubro de 1967 (Quarta-feira)
SEGUNDO
dia de aulas. Continua o desassossego, com o pessoal a trocar beijos, abraços e
confidências, depois desta longa separação que foram 3 meses e meio de férias.
Estávamos todos fartos do verão, com saudades uns dos outros. A sala é a mesma
do ano passado, no 1º andar e cheirava a nova, tudo encerado e polido, apesar
do material já ser mais do que velho. Somos o 7.º A e como não chumbou nem veio
ninguém de
novo, a pauta é exactamente igual à do ano passado. Eu sou o n.º 34, e fico
sentada na segunda fila, do lado da janela, cá atrás, que é o lugar dos mais
altos. Hoje
tivemos, pela primeira vez, Organização Política e apareceu-nos um professor
novo, acho que é a primeira vez que dá aulas em Setúbal, dizem que veio corrido
de um liceu de Coimbra, por causa da política.
Já
ontem se falava à boca cheia dele, havia malta muito excitada e contente porque
dizem que ele é um fadista afamado. Tenho realmente uma vaga ideia de ouvir o
meu tio Diamantino falar dele, mas já não sei se foi por causa da cantoria se
por causa da política. A Inês contou que ouviu o pai comentar, em casa, que o
homem é todo revolucionário, arranja sarilhos por todo o lado onde passa. Ela
diz que ele já esteve preso por causa da política, é capaz de ser comunista.
Diferente dos outros professores, é de certeza. Quando entrou na sala, já tinha
dado o segundo toque, estava quase no limite da falta. Entrou por ali a dentro,
todo despenteado, com uma gabardine na mão e enquanto a atirava para cima da
secretária, perguntou-nos:
-
Vocês são o 7.º A, não são? Desculpem o atraso mas enganei-me e fui parar a
outra sala. Não faz mal. Se vocês chegarem atrasados também não vos vou chatear.
Tinha
um ar simpático, ligeiro, um visual que não se enquadrava nada com a imagem de
todos os outros professores. Deu para perceber que as primeiras palavras,
aliadas à postura solta e descontraída, começavam a
cativar toda a gente. A Carolina virou-se para trás e disse-me que já o tinha
visto na televisão, a cantar Fado de Coimbra. Realmente o rosto não me era
estranho. É alto, feições correctas, embora os dentes não sejam um modelo de
perfeição e é bem parecido, digamos que um homem interessante para se olhar. O
Artur soprou-me que ele deve ter uns 36 anos e acho que sim, nota-se que já é
velho. Depois das primeiras palavras, sentou-se na secretária, abriu o livro de
ponto, rabiscou o que tinha a escrever e ficou uns cinco minutos, em silêncio,
a olhar o pátio vazio, através das janelas da sala, impecavelmente limpas.
Enquanto
ele estava nesta espécie de marasmo nós começámos a bichanar uns com os outros,
cada um emitindo a sua opinião, fazendo conjecturas. Às tantas, o bichanar foi
subindo de tom e já era uma algazarra tão grande que parece tê-lo acordado.
Outro qualquer professor já nos teria pregado um raspanete, coberto de ameaças,
mas ele não disse nada, como se não tivesse ouvido ou, melhor, não se importasse.
Aliás, aposto que nem nos ouviu. O ar dele, enquanto esteve ausente, era tão
distante que mais parecia ter-se, efectivamente, evadido da sala. Quando
recomeçou a falar connosco, em pé, em cima do estrado, já tinha ganho o
primeiro round de simpatia. Depois, veio o mais surpreendente:
-
Bem, eu sou o vosso novo professor de Organização Política, mas devo dizer-vos
que não percebo nada disto. Vocês já deram isto o ano passado, não foi? Então
sabem, de certeza, mais que eu.
Gargalhada
geral.
-
Podem rir porque é verdade. Eu não percebo nada disto, as minhas disciplinas,
aquelas em que me formei, são História e Filosofia, não tenho culpa que me
tivessem posto aqui, tipo castigo, para dar uma matéria que não conheço, nem me
interessa. Podia estudar para vir aqui desbobinar, tipo papagaio, mas não estou
para isso. Não entro em palhaçadas.
Voltámos
a rir, numa sonora gargalhada, tipo coro afinado, mas ele ficou impávido e
sereno. Continuava a mostrar um semblante discreto, calmo, simpático.
-
Pois é, não vou sobrecarregar a minha massa cinzenta com coisas absolutamente
inúteis e falsas. Tudo isto é uma fantochada sem interesse. Não vou perder um
minuto do meu estudo com esta porcaria.
Começámos
a olhar uns para outros, espantados; nunca na vida nos tinha passado pela
frente um professor com tamanha ousadia.
-
Eu estudaria, isso sim, uma Organização Política que funcionasse, como noutros
países acontece, não é esta fantochada que não passa de pura teoria. Na prática
não existe, é uma Constituição carregada de falsidade. Portugal vive numa
democracia de fachada, este regime que nos governa é uma ditadura desumana e
cruel.
Não
se ouvia uma mosca na sala. Os rostos tinham deixado cair o sorriso e estavam
agora absolutamente atónitos, vidrados no rosto e nas palavras daquele homem
ímpar. O que ele nos estava a dizer é o que ouvimos comentar, todos os dias,
aos nossos pais, mas sempre com as devidas recomendações para não o repetirmos
na rua porque nunca se sabe quem ouve. A Pide persegue toda a gente como uma
nuvem de fumo branco, que se sente mas não se apalpa.
-
Repito: eu não percebo nada desta disciplina que vos venho leccionar, nem quero
perceber. Estou-me nas tintas para esta porcaria. Mas, atenção, vocês é outra
coisa. Vocês vão ter que estudar porque, no final do ano, vão ter que fazer
exame para concluírem o vosso 7.º ano e poderem entrar na Faculdade. Isso,
vocês têm que fazer. Estudar. Para serem homens e mulheres cultos para poderem
combater, cada um onde estiver, esta ditadura infame que está a destruir a
vossa pátria e a dos vossos filhos. Vocês são o amanhã e são vocês que têm que lutar
por um novo país.
- Não
vão precisar de mim para estudar esta materiazinha de chacha, basta estudarem
umas horas e empinam isto num instante. Isto não vale nada. Eu venho dar aulas,
preciso de vir, preciso de ganhar a vida, mas as minhas aulas vão ser aulas de
cultura e política geral. Vão ficar a saber que há países onde existem regimes
diferentes deste, que nos oprime, países onde há liberdade de pensamento e de
expressão, educação para todos, cuidados de saúde que não são apenas para os privilegiados,
enfim, outras coisas que a seu tempo vos ensinarei. Percebem? Nós temos que
aprender a não ser autómatos, a pensar pela nossa cabeça. O Salazar quer fazer
de vocês, a juventude deste país, carneiros, mas eu não vou deixar que os meus
alunos o sejam. Vou abrir-lhes a porta do conhecimento, da cultura e da
verdade. Vou ensinar-lhes que, além fronteiras, há outros mundos e outras
hipóteses de vida, que não se configuram a esta ditadura de miséria social e cultural.
- Outra
coisa: vou ter que vos dar um ponto por período porque vocês têm que ter notas
para ir a exame. O ponto que farei será com perguntas do vosso livro que terão
que ter a paciência de estudar. A matéria é uma falsidade do princípio ao fim,
mas não há volta a dar, para atingirem os vossos mais altos objectivos. Têm que
estudar. Se quiserem copiar é com vocês, não vou andar, feita toupeira, a
fiscalizá-los, se quiserem trazer o livro e copiar, é uma decisão vossa, no
entanto acho que devem começar a endireitar este país no sentido da
honestidade, sim porque o nosso país é um país de bufos, de corruptos e de
vigaristas. Não falo de vocês, jovens, falo dos homens da minha idade e mais velhos,
em qualquer quadrante da sociedade. Nós temos sempre que mostrar o que somos,
temos que ser dignos connosco para sermos dignos com os outros. Por isso, acho
que não devem copiar. Há que criar princípios de honestidade e isso começa em
vocês, os futuros homens e mulheres de Portugal. Não concordam? Bem, por hoje é
tudo, podem sair. Vemo-nos na próxima aula.
Espantoso.
Quando ele terminou estava tudo lívido, sem palavras. Que fenómeno é este que
aterrou em Setúbal? Já me esquecia de escrever. Esta ave rara, o nosso
professor de Organização Política, chama-se Zeca Afonso.
NOTA
– Texto não assinado, recebido por e-mail.