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Preparem-se, o nosso estilo de vida vai mudar
Entrevista de James Howard Kunstler a Vítor Belanciano, publicada no jornal PÚBLICO de 16 Outubro 2008
Não se tem falado de outra coisa: derrapagem do preço do petróleo e crise financeira global. Responsáveis? O estilo de vida ocidental, dependente do petróleo. Solução? Mudar de estilo de vida. Escreveu-o James Howard Kunstler há cinco anos em O Fim do Petróleo. Vai repeti-lo hoje numa conferência e num debate em Lisboa.
Continuamos a brincar ao faz-de-conta. Entrámos na curva descendente da exploração petrolífera e do gás natural em que assenta o nosso modo de vida, mas insistimos em imaginar reservas inesgotáveis ou artifícios tecnológicos como substitutos.
Di-lo o americano James Howard Kunstler, especialista em urbanismo, jornalista, escritor, autor de O Fim do Petróleo - o grande desafio do séc. XXI (2005), onde relata o que nos espera depois do pico global de produção petrolífera ser superado, gerando mudanças económicas, políticas e sociais épicas.
Conhecido desde que publicou, em 1993, The Geography Of Nowhere: The Rise and Decline of America's Man-made Landscape, editou ensaios sobre planeamento e condição urbana, visando o que classifica como fiasco do modelo suburbano.
Em simultâneo, tem escrito romances. O último, deste ano, World Made By Hand, reflecte o mundo pós-petróleo. Controverso, lúcido, incisivo e profético são epítetos utilizados para falar de alguém que tem antecipado não só a derrapagem dos preços do petróleo, mas também a crise financeira global.
Hoje, às 9h30, no auditório 3 da Fundação Gulbenkian, em Lisboa, Kunstler profere a conferência A longa emergência: o futuro da energia e do urbanismo, no contexto de um ciclo de prelecções promovido pela Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional de Lisboa e Vale do Tejo. À tarde, pelas 16h30, estará num debate no Instituto Superior Técnico.
Diz que o estilo de vida ocidental tem de mudar porque é inconsistente com os reduzidos recursos enérgicos que temos. A crise dos mercados financeiros é mais uma indicação de que o mundo está a mesmo a mudar de forma dramática?
No Ocidente, seja nos EUA ou na Europa, o esgotamento dos combustíveis fósseis tem implicações profundas no complexo sistema que atribui sentido à vida em sociedade. Esse estilo de vida está em vias de se tornar insustentável ou entrar em colapso, à medida que entramos no território desconhecido da redução permanente de petróleo. As finanças são apenas um desses sistemas - aquele que colige e atrai capital. Agora está sob tensão, à beira da ruptura. Em parte por causa do esforço para contornar o previsível fim do crescimento industrial petrolífero, que conduziu a uma série de aldrabices, ou seja, investimentos mutantes que se revelaram fraudulentos.
É claro que o sistema financeiro está ligado com os outros sistemas dos quais dependemos - alimentação, transportes ou comércio, e o falhanço de cada um deles afecta todos os outros.
Tendências que previu em O Fim do Petróleo, como a crise dos mercados financeiros e a aflição causada pela especulação imobiliária, estão a acontecer. Por que não foi feito nada?
Porque os EUA, e o resto do mundo, como costumo dizer, estão a caminhar como sonâmbulos rumo ao futuro. Estamos a enfrentar o fim da era dos combustíveis fósseis baratos, ou seja, o fim da história industrial, e não assumimos que as reservas são finitas, não se renovam, distribuem-se de forma desigual e não temos substitutos.
Isto é mal compreendido pela população, preocupada com o dia-a-dia, e por quem detém poder de pensar e agir. Não é conspiração. É inércia cultural, agravada pela ilusão colectiva de quem vive num ambiente de conforto. Talvez faça parte da natureza das coisas ignorarem-se as condições que as provocam até ser tarde de mais para se fazer seja o que for. Mas era bom que se percebesse que o pico de produção global de petróleo vai mudar a vida económica do mundo.
Há solução para a derrapagem do preço do petróleo?
Ao mesmo tempo que assistimos a distorções no preço do petróleo, existe a presunção de que abrandar as economias mundiais amortecerá a procura de produtos petrolíferos. É optimismo a mais. Existe uma capacidade mínima para operar nos países desenvolvidos e suspeito que as margens são maiores do que se pensa.
Segundo, as distorções de preços criarão mais problemas no futuro, porque muitos investimentos serão adiados ou cancelados porque foram planeados para ser rentáveis apenas com o barril de petróleo a 100 dólares. A situação actual afectará futuras provisões que serviriam para compensar futuros esgotamentos. É complicado. Por outro lado, outros factores continuarão a fazer-se sentir, como as questões ligadas ao "nacionalismo petrolífero", que transformam o petróleo numa arma geopolítica.
Qual poderá ser o futuro das grandes companhias criadas num contexto onde os recursos pareciam inesgotáveis e baratos?
No espaço de cinco anos, talvez antes, as companhias de aviação, por exemplo, não existirão tal como as conhecemos. Isso é certo. É inacreditável que os EUA tenham um deplorável serviço de caminhos-de-ferro. Destruímo-lo! Se não encontrarmos uma maneira de o reconstruir, não iremos a lado nenhum neste novo mundo que se descortina. Não custa imaginar que as travessias de oceano por barco voltarão a ser normais ou que a indústria dos camiões morrerá, pelo menos da forma como está organizada.
Acredita-se que através da tecnologia encontraremos substituto para os problemas energéticos. Diz que é uma falácia. A tecnologia é problema, não faz parte da solução?
Sofremos de "tecnotriunfalismo". A maior parte das pessoas não admite a possibilidade de a civilização industrial não ser salva pela inovação tecnológica. Pensam: como podem nações que chegam à Lua não superar estas dificuldades? Esta visão conduziu-nos a um pântano, com investimentos de filosofia errada. A mania, agora, nos circuitos ecológicos americanos, é encontrar maneiras de circular com carros amigas do ambiente. Uma loucura. A solução para a falhada utopia automobilística não é mais carros que circulam de formas diferentes, mas sim bairros, vilas ou cidades onde se circule a pé.
A economia global subsistirá ou a tendência será, como parece defender, regressarmos a uma economia localizada?
Ainda não sabemos se as disfunções nas finanças ou nos recursos energéticos conduzirão a graves problemas geopolíticos, o que, a acontecer, afectará a lógica de comércio internacional. Seja como for, o mundo deixará de encolher, tornando-se, outra vez, maior. A globalização não tornou o mundo mais plano, como se diz. Mudarão radicalmente quase todas as relações económicas entre pessoas, nações e instituições. O comércio mundial não desaparecerá, mas o contexto onde se fará será mais reduzido. Genericamente, viveremos mais localmente.
Há uma corrente de opinião que sustenta ser possível uma transição suave dos combustíveis fósseis para os seus substitutos (hidrogénio, energia solar, etanol...). O que pensa disso?
Acredito que tentarão esses e muitos mais e desiludir-se-ão com todos. Alguns deles, como o etanol, revelar-se-ão fraudes imediatas, pelo menos em termos económicos. Temos é de nos concentrar em conservar o que ainda temos, estabelecer modelos locais, pensar num tipo de desenvolvimento urbano compacto e em paisagens agrícolas menos mecanizadas. A crença de que a "economia de mercado" nos facultará um substituto é ilusão.
Tem reflectido sobre os subúrbios americanos, argumentando que são insustentáveis e sem futuro. No mundo pós-petróleo, o que lhes acontecerá?
O conceito de subúrbio não é reformável. E não o é porque foi concebido para fazer sentido na era dos combustíveis baratos - logo, são insustentáveis. Mas não vamos ter muitas saudades, porque nas últimas décadas produziram apenas alienação, solidão e depressão.
Os subúrbios americanos são uma espécie de réplica artificial da vida no campo. Para além das questões energéticas, o problema deve-se ao facto de serem uma amálgama de cidade e campo?
Sim, topologicamente, são confusos. Nem urbanos, nem rurais, com as desvantagens de ambos e quase nenhuma das vantagens. Têm, por exemplo, congestionamentos de carros e nenhum dos proveitos resultantes da densidade, porque as pessoas estão presas nos carros. Têm paisagem rural, mas quase nenhuma ligação com outras ecologias e organismos vivos. O subúrbio tem inscrito no código genético a palavra entropia, a força da natureza que conduz à morte.
Mas as cidades e as concentrações urbanas não desaparecerão. Como será a vida urbana?
As cidades serão menores em escala. As megacidades não são outra coisa senão a manifestação de uma época onde a energia era barata. As cidades mais afortunadas tenderão a ser densas e compactas, nos centros históricos e margens dos rios que as circundam. A era do automóvel provou que as pessoas toleram ruas e edifícios feios desde que possam fugir desses locais em automóveis bem equipados. Mas se regressarmos a uma escala humana de construção, haverá uma boa hipótese de os bairros urbanos serem mais sustentáveis e bonitos.
Na Europa, o modelo de subúrbio é diferente. Terá mais hipóteses que o americano?
Os europeus nunca perderam o respeito pelo carácter e charme da vida urbana. Não destruíram as suas vilas e cidades, ao longo do "processo suburbano", como nós. A qualidade do urbanismo, a sua escala, é mais sustentável.
Cidades como Paris, Londres ou Lisboa estarão mais preparadas para as mudanças que, presumivelmente, se avizinham?
Absolutamente. Nos próximos anos, os cidadãos de Dallas ou Atlanta sentir-se-ão perdidos nas suas casas gigantes, a quilómetros do nada. Em Lisboa ou Dusseldorf, as pessoas continuarão as suas vidas. Na Europa, até as urbes mais pequenas dispõem de um elevado nível de equipamentos sociais e culturais. Mesmo que houvesse uma grande interrupção no abastecimento de petróleo, a maior parte dos europeus continuaria a sua vida quotidiana.
A ideia de que voltaremos ao estilo de vida local, em vilas, vivendo com menos, comprando localmente, andando de bicicleta, não é demasiado romântica?
As pessoas farão o que a realidade as forçar a fazer.
Voltar ao passado, ao que já conhecemos, é a conduta óbvia quando os tempos são de mudança. É mais difícil olhar em frente, para o desconhecido. Não existe outra opção senão voltar ao passado?
As pessoas são inventivas e flexíveis, mas já se fizeram demasiadas coisas falhadas, em nome da inovação. Existem muitas coisas da nossa vida quotidiana que não necessitam de ser reinventadas. Quarteirões onde se pode andar a pé, por exemplo. Todos os dias, encontro uns idiotas que, periodicamente, querem construir sistemas de transportes, concebidos para funcionarem como os carros. Para quê? É de loucos. Os bairros mais desejáveis das grandes cidades são os mais intimistas.
E na China, no Brasil ou na Índia? O Ocidente andou a dizer-lhes que o seu estilo de vida é que era, e agora que, aparentemente, têm frutos dessa adopção, irão abdicar do que conquistaram?
Também estão a enfrentar imensas mudanças e desafios. Pensa-se que, nos próximos anos, a China irá deter uma espécie de hegemonia global. Duvido. Têm muitos problemas, especialmente de escala, até mais do que as nações ocidentais, por causa da população, da destruição ecológica, da escassez alimentar e da insuficiência de reservas de petróleo.
A China transformou-se rapidamente numa grande economia industrial, mas entrou no jogo tarde de mais. Ou seja, industrializou-se no momento preciso em que se reduzem, em todo o mundo, os recursos necessários a esse processo.
Há anos, afirmou que, genericamente, os líderes políticos eram fracos. Como tem visto a corrida eleitoral nos EUA?
Obama é honesto, inteligente, e espero que venha a ser um digno líder dos EUA. Mas irá passar por desafios e dificuldades terríveis e tenho pena da sobrecarga que vai herdar. Quanto aos problemas energéticos, é difícil perceber até que ponto os candidatos estão informados. Mas o ponto principal é que os cidadãos não têm tido coragem para enfrentar a realidade, independentemente do que os líderes sabem, dizem ou pensam.
O que tem mudado, na sua vida privada, para se preparar para o mundo pós-petróleo?
Tenho uma vida comedida, nada extravagante. A decisão mais importante foi tomada há 30 anos, quando assentei numa vila americana, Saratoga Springs, 300 quilómetros a norte de Nova Iorque. É uma escala e tipo de vida que está de acordo com aquilo que serão as exigências do futuro.
Meu comentário:
Com as actividades humanas a deixarem de depender, exclusivamente, do petróleo e seus derivados, estas mudanças apontadas por James Howard Kunstler, não serão as únicas que se verificarão no estilo de vida ocidental. O impacto profundo nas sociedades terá repercussão sobre os sistemas económicos e políticos, e as próprias relações entre estados, terão forçosamente que se reinventarem, a fim de se adaptarem às novas escalas e necessidades. Haverá novos conceitos de desenvolvimento e de progresso. Ocorrerão grandes alterações nos hábitos e novos valores (re)surgirão, devolvendo às sociedades e aos seus relacionamentos, uma escala mais humanizada. Irão alterar-se as relações laborais, o ensino, o aproveitamento dos tempos livres, senão mesmo a coesão dos laços familiares e de vizinhança. Até o ambiente ganhará. Quer resulte de uma lenta progressão, ou seja fruto de um choque abrupto e doloroso, esta visão já não cabe entre as utopias. Quer queiramos, quer não, acabará por tornar-se uma realidade, e com o passar do tempo as gerações vindouras acabarão por concluir que, afinal, sempre há males que vêm por bem.