(*) No original, Brave New World foi um romance publicado em 1932, da autoria do escritor inglês Aldous Huxley, onde se prenunciava uma sociedade biológica e psiquicamente manipulada, e onde os resistentes eram classificados como anomalias, destinados a viverem e serem exibidos em “reservas históricas”. O empréstimo que faço daquele título, serve apenas para legendar algumas situações preocupantes com que temos sido brindados nos últimos dias.
Como se já não bastasse a condenação do uso do preservativo, da interrupção voluntária da gravidez, do divórcio, da homossexualidade, da teologia da libertação, da leitura de José Saramago ou do “Código de Da Vinci” de Dan Brown, também agora um excesso de leitura de jornais, navegação na Internet e consumo de programas de televisão, em alternativa à leitura da Bíblia, constituem pecados de reporte obrigatório no acto da confissão. Eis, portanto, os mais recentes pecados enunciados pelo Vaticano, empenhado numa nova cruzada pontifícia, desta vez contra a sociedade do conhecimento e da informação. Não é por acaso que o cardeal Joseph Ratzinger, actual Papa Bento XVI, foi durante muitos anos o prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, herdeira directa dos obscurantistas Tribunais do Santo Ofício, o braço justiceiro da ignóbil Inquisição, a tal que até confundia ataques de epilepsia com possessão demoníaca. Agora, instalado no trono de S.Pedro, está empenhado em fazer cumprir, com rigor e determinação, a sua missão evangelizadora e rectificadora, para benefício do admirável mundo novo que se anuncia, reacendendo nos espíritos, os medos e a santa ignorância dos tempos medievais.
O senhor Van Zeller, o honorável e deplorável presidente da CIP (Confederação da Indústria Portuguesa), diz-se um homem “moderno”, adepto das “novas realidades”, da “competitividade”, inimigo do “proteccionismo parasitário e paralisante” do Estado e do modelo obsoleto, caduco e cadavérico das sociedades que tinham o primado do social. Quanto à “utopia do trabalho estável”, uma velharia do passado, é coisa a que se torna urgente fazer o funeral. Animado destes princípios, não subscreveu as novas regras de atribuição do subsídio de desemprego, e fez questão de afirmar que os cursos de formação da Segurança Social apenas servem para os desempregados, em vez de andarem a catar/arranjar trabalho, terem um pretexto para saírem de casa de manhã, e só voltarem à noite. Fala assim, talvez com saudades do que acontecia há anos atrás (pode-se recuar 40 anos ou mais), quando outros desempregados saíam de casa de manhã e nunca mais voltavam. Acções de formação, requalificação profissional e aquisição de novas competências, são expressões ausentes do seu vocabulário. Este senhor é o mensageiro de um admirável mundo prenhe de “modernidade”, empenhado em recuperar as doutrinas que elegeram o desemprego como uma força de trabalho de reserva, indispensável à satisfação das necessidades do capitalismo guloso e todo-poderoso.
Neste país em que os trabalhadores são sistematicamente acusados de serem os principais protagonistas da endémica crise económica, porque seriam absentistas, pouco produtivos e demasiado reivindicativos, deixando ilesos os patrões incumpridores, pouco dinâmicos e eficazes, com baixa iniciativa e visão empresarial, a bandalheira nacional fez questão de chegar à Assembleia da República. Indiferentes ao facto de os exemplos virem de cima, acabando os seus actos por se reflectirem nos comportamentos da sociedade, no dia 12 de Abril, da totalidade de 230 deputados, não estiveram presentes 120, provocando falta de “quórum” e inviabilizando os trabalhos parlamentares. No entanto, antes de se ausentarem para umas férias da Páscoa alargadas, muitos dos faltosos fizeram questão de assinar o livro de presenças, qual patética manobra de ocultação, para garantirem o vencimento e a reforma. O admirável mundo novo tem destas coisas: para uns há bons vencimentos, mordomias, horário mais que flexível, e uma reforma dourada ao fim de alguns anos, sem abrir a boca nem mexer uma palha, bastando levantar o braço de vez em quando, dando a ideia que estão a fazer coisas importantes para os outros, quando de facto estão a cuidar de si próprios; para outros, sejam eles gente com saber e experiência adquirida a pulso, que vai caindo nas malhas do desemprego, sejam outros que passam meia vida a respigar migalhas nos trilhos da sobrevivência, apenas a referência de que são números para alimentar as estatísticas e outras manobras evasivas, bodes expiatórios para todo o serviço, senão mesmo o papel de eternos maus do filme.
Marcar com o ferrete do anti-social, senão mesmo com a marginalização, alguns comportamentos menos ortodoxos, foi comum noutras épocas, prática que a lenta conquista e progressão dos direitos humanos acabou por banir. Não há muito tempo, ainda vigoravam disposições, que consideravam legítimo retirar às mulheres a sua pensão de viuvez, caso se suspeitasse que viviam em mancebia ou exibiam porte escandaloso. O bom senso e a humanização encarregaram-se de separar as águas, passando a reconhecer que a quebra de um dever não corta o acesso ao usufruto do direito. Ninguém pode ser privado dos seus meios de subsistência, por ter uma conduta ou comportamento socialmente reprovável, tal como alguém que tenha cometido um crime, não pode ser privado do direito de se defender.
Entretanto, a justiça portuguesa achou por bem dar um ar da sua graça, ao voltar a inscrever em alguns dos seus acórdãos, a retoma de ideias defendidas em tempos passados, e que entretanto, por força da evolução das sociedades, tinham passado à história. Entre elas conta-se o reconhecimento da legitimidade de usar (brandos) castigos corporais sobre crianças deficientes (imagine-se os que se poderão aplicar às crianças normais), que os abusos sexuais são mais graves entre homossexuais que entre heterossexuais, que o homicídio de um cônjuge poderá ser objecto de uma sentença atenuada, caso a vítima tivesse comportamento adúltero, ou que a morte de um filho, tem mais significado, valor e impacto no agregado familiar, do que se ocorrer com uma filha. Que admirável mundo novo é este, que volta a recuperar os conceitos mais retrógrados e anti-pedagógicos, que tinham na chibata e no cavalo-marinho, os instrumentos por excelência da disciplina, da educação e instrução? Que admirável mundo novo é este que julga actos reprováveis, não pelos actos em si, mas na base de preconceitos? Que admirável mundo novo é este que, em função do sexo, estabelece preços diferentes para a vida humana, uma coisa que era suposto não ter preço?
A fronteira que separa a sociedade desejável da indesejável, é bem mais ténue do que se imagina. Tem muito a ver com o instinto de sobrevivência, a capacidade que o ser humano tem para se adaptar a novos preceitos e constrangimentos, aceitando-os como bons, sem aferir nem questionar o seu significado, ignorando que são sinais negativos que vão sitiando as sociedades e cerceando os direitos humanos. Não percebe que está a ser narcotizado com ideias simples na forma, mas perversas no conteúdo, que pretensamente querem fazer crer que se está a progredir, quando na realidade se está a regredir.